terça-feira, junho 30, 2015

Pep Guardiola e o engima de Kasparov... O texto é longo, mas vale cada minuto.

No dia 14 de julho será lançado o livro de autoria do ex-atleta, jornalista e escritor catalão Martí Perarnau...

O título do livro, é:

“Guardiola Confidencial”

Abaixo o prefácio escrito por André Kfouri e publica no blog de Juca Kfouri...

O que André conta no prefácio é sensacional; vale cada letrinha, mesmo sendo longo.

Boa leitura e divirtam-se.

Momento 1

O enigma de Kasparov

Nova York, outubro de 2010

Garry Kasparov balançou a cabeça enquanto terminava o prato de salada.

Usou as mesmas palavras pela terceira vez:

“É impossível”.

Já falava com um tom de irritação na voz.

Pep Guardiola insistia em lhe perguntar as razões pelas quais considerava ser impossível competir com o jovem mestre Magnus Carlsen, o mais promissor enxadrista do momento.

O jantar transcorria em clima amigável.

Guardiola e Kasparov haviam se conhecido semanas antes, e desde o início o técnico catalão demonstrou abertamente seu fascínio pelo grande campeão.

Kasparov encarna qualidades que Pep admira profundamente: rebeldia, esforço, inteligência, dedicação, persistência, força interior…

Daí o entusiasmo ao conhecê-lo pessoalmente e encontrá-lo para dois jantares, em que conversaram sobre competitividade, economia, tecnologia e, é claro, esporte.

Guardiola se afastara da elite do futebol poucos meses antes e começava a gozar de um ano de tranquilidade em Nova York.

Deixara para trás, no FC Barcelona, um período triunfal — o mais brilhante, bem-sucedido e apaixonante da história do clube catalão, talvez inigualável: seis títulos em sua primeira temporada, além de catorze troféus dos dezenove possíveis em quatro anos.

Os resultados de Guardiola eram excepcionais.

Mas, para alcançá-los, ele havia se esgotado.

Exausto e descontente, disse adeus ao Barcelona antes que os danos provocados fossem irreversíveis.

Em Nova York, ele queria começar de novo e viver um ano de paz, esquecimento e tranquilidade.

Precisava preencher um reservatório de energia que tinha se esvaziado e passar mais tempo com a família, que pouco via pelos compromissos de trabalho.

Sua intenção era conhecer novas ideias e dedicar-se aos amigos.

Um deles era Xavier Sala i Martín, professor de economia da Universidade Columbia e tesoureiro do Barça em 2009 e 2010, a última etapa de Joan Laporta como presidente do clube.

Sala i Martín é economista de prestígio internacional e um bom amigo dos Guardiola.

Morando em Nova York há muito tempo, ele foi essencial para que a família de Pep vencesse algumas reservas em relação à cidade norte-americana: os filhos não dominavam o inglês e Cristina, a esposa, ocupava-se demais com o negócio da família na Catalunha.

Assim, não entendiam bem o que Guardiola propunha.

Sala i Martín encorajou a família a curtir a experiência de viver em Nova York, que acabou sendo muito melhor do que esperavam.

Sala i Martín também é amigo íntimo de Garry Kasparov.

No outono, a família Guardiola convidou o economista para visitar sua casa em Nova York.

“Sinto muito, mas esta noite tenho um compromisso: marquei de jantar com o casal Kasparov”, desculpou-se, antes de sugerir a Pep que o acompanhasse.

Guardiola ficou encantado com a ideia, assim como o próprio Kasparov e sua esposa, Daria.

Foi um encontro fascinante.

Não falaram de xadrez nem de futebol, mas de invenções e tecnologia, da coragem de romper paradigmas, das virtudes de não se acovardar diante da incerteza e da paixão.

Falaram muito da paixão.

Kasparov expôs de forma clara suas ideias pessimistas sobre os avanços tecnológicos.

Segundo ele, o mundo está estacionado economicamente porque o potencial tecnológico serve basicamente para jogos e novos inventos não possuem a relevância dos antigos.

Na opinião de Kasparov, a invenção da internet não pode ser comparada à da eletricidade — que provocou uma autêntica transformação econômica, permitindo o acesso da mulher ao mercado de trabalho e multiplicando por dois o volume da economia mundial.

O ex-campeão mundial de xadrez explicou que a verdadeira influência da internet na economia produtiva, não na financeira, é muito inferior à que teve a eletricidade.

Deu como exemplo o iPhone, cuja capacidade processadora é muito superior à dos computadores da Apollo 11, os AGC (Apollo Guidance Computer), que possuíam cem vezes menos memória ram que um smartphone atual.

Segundo Kasparov, os AGC serviram para levar o homem à Lua, mas agora usamos a potencialidade de um telefone celular para matar passarinhos (referindo-se ao game popular Angry Birds).

Sala i Martín, um homem de raciocínio prodigioso, assistiu maravilhado à conversa entre Kasparov e Guardiola:

“Foi fascinante ver dois homens tão inteligentes improvisando um diálogo sobre tecnologia, invenções, paixão e complexidade”, disse.

O encantamento mútuo foi tamanho que, poucas semanas mais tarde, eles se encontraram para um segundo jantar — ao qual Sala i Martín não pôde comparecer porque estava na América do Sul, mas que teve a presença de Cristina Serra, esposa de Pep.

Naquela segunda noite, sim, se falou de xadrez.

Guardiola ficou surpreso com a intensidade de Kasparov ao falar sobre o norueguês Magnus Carlsen, visto por ele como o indiscutível futuro campeão mundial — o que de fato aconteceu um ano depois, em novembro de 2013, com a vitória sobre Viswanathan Anand por 6,5 a 3,5. Kasparov rasgou elogios ao jovem mestre (de 22 anos na época), a quem chegou a treinar secretamente em 2009, e também detalhou algumas fraquezas que deveria corrigir se quisesse dominar por completo o mundo do tabuleiro.

Foi então que Guardiola perguntou se Kasparov se sentia capaz de vencer o emergente campeão norueguês.

A resposta o surpreendeu:

“Tenho capacidade para derrotá-lo, mas é impossível”.

Guardiola imaginou se tratar de uma frase politicamente correta que continha toda a diplomacia que um homem impetuoso como Kasparov era capaz de demonstrar.

E por isso insistiu:

“Mas, Garry, se você tem capacidade, por que não conseguiria vencê-lo? ”.

A segunda tentativa obteve a mesma resposta:

“É impossível”.

Guardiola é teimoso, muito teimoso, e não largou o osso que Kasparov lhe atirara.

Insistiu uma terceira vez, enquanto o enxadrista ia se encerrando cada vez mais em sua concha protetora, os olhos fixos no prato, como naqueles tempos em que precisava defender uma posição frágil no tabuleiro.

“É impossível”, voltou a dizer com certo ar de lamúria.

Guardiola mudou de tática, afastou o prato de salada, que mal havia tocado, e decidiu esperar outra oportunidade para sondar as razões pelas quais Kasparov se sentia incapaz de vencer o jovem Carlsen.

Não só por curiosidade, mas porque tinha consciência de que a resposta podia guardar um dos segredos do esporte de alto nível.

Fazia só quatro meses que Pep abandonara o comando do Barcelona, depois de construir um cartel de vitórias único e inimaginável.

Tinha deixado o clube porque se sentia vazio, desgastado, esgotado, incapaz de levar mais glórias a uma equipe que havia se fartado de tantas conquistas.

Foi o primeiro e único na história do futebol a conseguir os seis títulos possíveis em uma mesma temporada.

Mas Guardiola renunciou ao Barcelona por esgotamento e agora, já renovado e recuperado, ciente de que a energia voltava ao seu corpo — e, sobretudo, à sua mente —, via-se diante de um dos grandes mitos do esporte, o qual lhe repetia sem hesitar que ainda possuía as capacidades para vencer, mas que era impossível fazê-lo.

Sentiu curiosidade, é lógico.

O enigma de Kasparov continha muito mais que uma anedota para contar aos netos; nele se encontrava a resposta para o que Guardiola desejava saber há muito tempo: por que se desgastara tanto no Barcelona?

E, principalmente, como evitar tanto desgaste no futuro?

Se eu tivesse que definir Pep Guardiola, diria que ele é um homem que duvida de tudo.

A origem dessas dúvidas não é a insegurança nem o medo do desconhecido: é a busca da perfeição.

Ele sabe que alcançá-la é impossível, mas a persegue do mesmo modo.

Por isso, muitas vezes tem a sensação de que seu trabalho está inacabado.

Guardiola é obcecado pelas dúvidas.

Acredita que só pode encontrar a melhor solução depois de examinar todas as opções.

Lembra, nesse aspecto, o mestre enxadrista que analisa todas as jogadas possíveis antes de realizar o movimento seguinte.

A obsessão por esclarecer as dúvidas é um traço da essência de Pep, capaz de dar voltas e mais voltas em torno de qualquer assunto que envolva o jogo antes de tomar uma decisão.

Quando estuda como encarar uma partida, ele não duvida da vocação do seu time: todos ao ataque, com a bola e para ganhar.

Mas esses são conceitos muito amplos, e Guardiola desenha com traços finos.

Suas grandes ideias são imutáveis, contudo se compõem de muitas pequenas ideias, que ele vai destrinchando na semana que antecede a partida.

Pensa e repensa sobre a escalação, a entrada de um jogador em vez de outro, os movimentos que cada atleta fará em função do adversário, a sintonia de algum jogador com um companheiro, como trabalhar as linhas da equipe diante do ataque inimigo…

A mente de Guardiola se parece com a do enxadrista que calcula e analisa todos os movimentos, próprios e do adversário, para antecipar mentalmente o desenvolvimento da partida.

Jogue contra quem jogar, a preparação será idêntica: não haverá um segundo de descanso até que ele estude e avalie todas as opções.

E quando terminar, voltará de novo a todas elas.

É o que Manel Estiarte, seu braço direito no Barça e no Bayern, chama de “lei dos 32 minutos”, em alusão à dificuldade de fazer Pep se desconectar do futebol.

Estiarte emprega todos os recursos ao seu alcance para de vez em quando conter a obsessão do treinador e obrigá-lo a se distrair, mas sabe por experiência própria que a distração não dura mais de meia hora:

“Você o leva para comer em um restaurante para que se esqueça do futebol, mas depois de 32 minutos já vê que ele começa a divagar. Os olhos miram o teto, ele faz que sim com a cabeça, diz que está escutando, mas não olha para você, já está pensando outra vez no lateral esquerdo do time adversário, nas coberturas do volante, nos apoios ao ponta… Passou meia hora e ele volta a suas digressões internas”, explica Estiarte.

Se os jogadores estiverem fechados com ele, se o Bayern o apoiar, Guardiola não se desgastará tanto com a tensão causada pela análise constante das variáveis.

Às vezes, Estiarte o manda embora de Säbener Straβe, a cidade esportiva do Bayern, para que ele se desconecte.

Nesses dias, Guardiola volta para casa e passa um tempo com os filhos, brinca com eles, mas meia hora depois vai até um canto que preparou no final de um corredor, que não chega sequer a ser um quarto pequeno, e recomeça suas divagações.

Passaram-se 32 minutos e é preciso repassar novamente todas as dúvidas, apesar de ser a quarta vez no dia em que as examina.

Por tudo isso, a resposta de Garry Kasparov era tão importante.

Daí vinha sua insistência em resolver o enigma.

Por que um mestre lendário como Kasparov, cujas capacidades são excepcionais, considerava impossível derrotar um rival?

Foram Cristina e Daria, as esposas, as rainhas daquele tabuleiro nova-iorquino, que desvendaram o enigma.

Levaram a conversa novamente para o rumo da paixão, desse ponto passaram à exigência e ao desgaste emocional e, por fim, desembocaram na concentração mental.

“Talvez seja um problema de concentração”, sugeriu Cristina.

Daria deu a resposta:

“Se fosse só uma partida e durasse apenas duas horas, Garry poderia vencer Carlsen. Mas não é assim: a partida se prolongaria por cinco ou seis horas, e ele não quer viver outra vez o sofrimento de passar tantas horas seguidas com o cérebro funcionando a todo vapor, calculando possibilidades sem descanso. Carlsen é jovem e não tem consciência do desgaste que isso provoca. Garry tem, e não gostaria de voltar a passar por isso durante dias a fio. Um conseguiria se manter concentrado por duas horas; o outro, por cinco. Por isso seria impossível ganhar”.

Naquela noite, Guardiola dormiu pouco e pensou muito.

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