sábado, outubro 08, 2016

Memórias de Johan Cruyff...

Cruyff: “Futebol é cometer erros e não se frustrar”

Mítico holandês deixou escrita em uma autobiografia sua peculiar filosofia sobre a vida e o esporte

Por Luis Martín para o El País

Em uma livraria de Londres foi realizada na última quarta-feira a apresentação mundial de 14 The Autobiography, de Johan Cruyff, evento do qual participaram como mestres de cerimônias seu filho Jordi e Pep Guardiola, e que teve como moderador o jornalista Jaap de Groot, que colaborou com Johan na redação do volume, escrito em holandês quando o treinador já estava a par de sua doença.

Falecido em 24 de março de 2016, Cruyff estava revisando o livro, uma obra de 319 páginas, um compêndio de frases, histórias e arrazoados que desvenda de maneira cronológica a vida do Magro, seu amor à família, sua gratidão ao Ajax e a razão pela qual interpretou o futebol como o fez.

E como sempre fez, dá opinião sobre quase tudo, porque para tudo teve uma reflexão em vida. Este jornal teve acesso às páginas de suas memórias.

“Tudo o que sei aprendi por experiência”, proclama de cara.

Avisa: “Quando perdi meu pai, minha vida ficou determinada pelo Ajax”.

Desde a primeira página, na qual anuncia que “o importante é aprender”, Johan demonstra sua imensa gratidão ao clube de Amsterdam, que marcou uma vida cuja máxima está no prólogo:

“O desejo de perfeição e de melhorar a mim mesmo”.

“Tudo o que fiz”, insiste Johan, “foi aprendendo com a experiência e olhando para o futuro”.

Define-se como “bastante engenhoso” e admite que não tirou muito proveito da passagem pelo colégio:

“Para mim, tudo começava na rua”.

Ou em uma sala de cirurgia, onde seu pai morreu quando ele era menino.

“Sempre me preocupou morrer jovem”, conta.

E explica como se salvou na Clínica Sant Jordi de uma arteriosclerose:

“Enquanto estive doente, não fiquei nervoso. Se havia tantas pessoas dedicadas a cuidar de mim não era possível que fosse continuar doente. O mundo inteiro estava fixo no cirurgião e eu sabia que ele iria se esforçar ao máximo. Era uma sensação agradável”, relata.

“Parecia um camarão”

Cruyff se lembra de como, sendo menino e magrela –“parecia um camarão”—, aos oito anos o deixaram entrar no De Meer antes de uma partida para passar o ancinho pelo gol.

“Essas sensações, preparar o campo para meus heróis, estou certo de que influíram na pessoa em que me transformei.”

Deixa entrever seu respeito reverencial por Jany van der Ven, Rinus Michels e Vic Buckingham, seus primeiros treinadores.

A morte do pai, quando tinha 12 anos, o marcou.

Quando passava diante do cemitério, falava com ele, lhe fazia perguntas sobre o colégio, o futebol.

"Mas não sou muito crente e ninguém voltou da morte. Um dia o testei e lhe disse que parasse o meu relógio."

E o relógio parou.

Bem de Johan, como seu gosto pelos números.

Apesar de ser um aluno medíocre, ele justifica isso pelo tempo que ajudou na quitanda familiar:

“Não ia até a caixa registradora e somava mentalmente”, diz.

Também aplicava os números à vida familiar.

“Nós nos casamos no segundo dia do duodécimo mês. Dois mais doze são 14, meu número. Um casamento duas vezes bom... se há uma mulher de jogador de futebol que nunca buscou publicidade, é ela”.

A vida com Danny mudou sua maneira de se envolver com o futebol:

“A responsabilidade que adquiri em casa, transferi para o vestiário e o jogo. Não me preocupava comigo mesmo”.

Em seu processo de interpretação futebolística, jogar beisebol ajudou:

“Era muito bom e me ensinou a entender muitas coisas que pus em prática no futebol porque no beisebol você tem de se antecipar. Aprendi a estar um passo à frente”.

Recorda seu talento para jogar como goleiro – “era realmente bom”– e considera que aprendeu rápido:

“O futebol é um processo que consiste em cometer erros, analisá-los e não se frustrar. Se não tivesse cometido erros eu teria perdido coisas fantásticas”.

Seu objetivo sempre foi um:

“Jogar de forma bonita e no ataque”.

Teve muito presentes os ensinamentos de Michels.

Lembra-se de como se escondia nas árvores para não correr muito nos treinamentos pelas florestas e como na partida de 0x5 no Bernabéu fez um movimento tático surpreendente:

“Em Madri vivia Theo de Groot, jornalista amigo de Michels e vizinho de Gregorio Benito”. Este segredou toda a tática a De Groot. “O eixo de seu jogo é que eu teria uma marcação por zona, que a última linha do Madrid faria. Quando Michels soube disso, me pediu que jogasse mais atrás. Os quatro defensores ficaram desconcertados”.

Escolheu a Espanha ao brigar com o pessoal do Ajax por várias razões:

“Tinha falado com Rexach em Mallorca algumas vezes... Gostava de Barcelona e, além disso, iria receber o dobro e pagaria a metade de impostos. Criei um laço que se reforçou quando voltei como treinador”, diz.

“Quanto mais tempo passava na Espanha, mais evidente era a importância da política no jogo... como jogador estrangeiro era intocável, de modo que podia provocar Franco de vez em quando”.

Considera que suas diferenças com Rexach têm a ver com sua mentalidade holandesa:

“Ele me expressava sua opinião, mas não agia. Deixava-se levar. Eu expressava minha opinião e apresentava uma solução”.

Situação política

Garante que vê a situação na Catalunha igual à de 40 anos atrás:

“A coisa está 50-50. Em caso de secessão, a população se dividiria: é isso o que querem? Como holandês estou acostumado a chegar a acordos a partir de opiniões distintas. Isso não se fez na Espanha, ninguém está disposto a ceder. Nem os que querem separar-se nem os que querem continuar juntos, nem em Madri”.

Elogia Guardiola:

“Tem uma grande personalidade e uma mente inteligente. E embora não se apoie em conselhos, gosta de conhecer minha opinião”.

Recorda que quando o nomearam, apenas comentou com ele:

“Devia ser capaz de dizer ao presidente: ‘Saia do vestiário, aqui mando eu’”.

Argumenta que Busquets será um bom treinador.

“Gostaria de ver Neymar e Messi sem Iniesta e Busi”, afirma.

Johan reconhece que sua carreira afetou muito a sua família, e a ninguém como Jordi, que em 1983 ficou no Ajax quando ele foi para o Feyenoord, que abandonou sua vida e seus amigos para o seguir em Barcelona.

“No Barcelona teve de escutar que, se jogava, era por ser meu filho. Transformaram o garoto em um jogo político contra mim. Núñez arrastou meu filho para a lama. ”

Confessa que poucas coisas o deixaram mais feliz do que ajudar na Fundação.

Avisa que “a criatividade está sendo atacada” e é necessário “voltar à base porque, se você vai comer, precisa de uma faca e um garfo”.

Mas é “otimista” em relação ao futuro do futebol.

Ele não o verá, mas seu legado perdura.

Nenhum comentário: