Matéria publicada no blog Copa Pública.
Vendidas como o principal legado
da Copa de 2014 para população, obras de mobilidade urbana são abandonadas; só
no mês passado foram seis.
“A Copa do Mundo funciona como uma espécie de catalisador. Temos uma
grande oportunidade de executar planos de investimentos e de melhorar a
qualidade dos serviços nas grandes cidades, sobretudo o transporte público.”
A declaração, feita em setembro
de 2011 pelo então ministro do Esporte, Orlando Silva, resume a principal
justificativa do governo para que a população saudasse a realização da Copa no
país: o legado para as 12 cidades-sede, que seriam beneficiadas com as obras de
mobilidade urbana, necessárias não apenas para a competição, mas para os que
residem ali. Um ano e quatro meses depois, porém, vários empreendimentos
projetados para melhorar o transporte público e o trânsito foram cancelados –
ou substituídos por obras de menor impacto.
A Matriz de Responsabilidades –
documento do Ministério do Esporte que elenca todas as obras de infraestrutura
para a Copa – previa 50 intervenções de mobilidade urbana e orçamento de R$
11,59 bilhões quando divulgada em janeiro de 2010. Dessas 50, até agora foram
canceladas 13 obras em dez cidades-sede: em Manaus, o Monotrilho Leste/Centro e
o BRT (sigla para Bus Rapid Transit, o corredor de ônibus) do Eixo
Oeste/Centro; em São Paulo, excluiu-se o Monotrilho da Linha 17-Ouro; em Brasília,
o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos, metrô de superfície; em Curitiba, a
requalificação das vias do Corredor Metropolitano, em Natal, a reestruturação
da Avenida Engenheiro Roberto Freire; em Salvador, o BRT no Corredor
Estruturante Aeroporto/Acesso Norte; em Fortaleza, o Corredor Expresso
Norte-Sul e o BRT Projeto Raul Barbosa; em Belo Horizonte, o BRT Pedro
II/Carlos Luz; em Porto Alegre, o BRT Assis Brasil, e os BRTs Aeroporto/CPA e
Coxipó/Centro, em Cuiabá).
Outras 16 obras de mobilidade
foram incluídas posteriormente e são 53 as obras que constam hoje na Matriz,
mas a maioria de menor porte do que as canceladas ou interrompidas, e quase
sempre realizadas no entorno dos estádios – e, portanto, relacionadas com
acesso aos jogos, não com a mobilidade das cidades-sede. Por isso, o orçamento
tem hoje quase 3 bilhões a menos do que o previsto: é de R$ 8,6 bilhões. Só na
última revisão do documento, no mês passado, seis obras de mobilidade foram
substituídas por outras oito obras de entorno. De prioridade máxima, o legado
para as cidades-sede vai se reduzindo.
Em Salvador, por exemplo, em vez
de um corredor do ônibus ligando o Aeroporto Internacional ao norte da cidade,
serão feitas duas pequenas intervenções no entorno da Arena Fonte Nova, o
estádio da Copa na Bahia, com custo de R$ 35,7 milhões, o que representa R$ 532
milhões de redução do investimento previsto. Nem o governo municipal – que
queria o corredor de ônibus previsto – nem o governo do estado da Bahia, que
pretendia incluir na Matriz o metrô de Salvador, em vez do corredor, tiveram os
projetos contemplados. Por enquanto a população ficou sem corredor de ônibus e
sem metrô – depois de uma negociação com o governo federal, o governo estadual
conseguiu incluir o metrô, com orçamento de 3,5 bilhões de reais, no PAC de
Mobilidade Urbana. Que nada tem a ver com a Copa.
São Paulo teve um caso
semelhante: em vez do Monotrilho da Linha 17-Ouro, que ligaria o bairro do
Morumbi ao Aeroporto de Congonhas, com orçamento previsto de R$ 1,881 bilhão,
ganhou intervenções viárias no entorno do estádio do Corinthians, orçadas em
317,7 milhões.
POR QUE AS OBRAS PARAM?
Além dos projetos que não saíram
do papel, há casos mais graves de obras interrompidas por suspeitas de
irregularidades. Em Brasília, por exemplo, as obras do VLT (Veículo Leve sobre
Trilhos), que ligariam o aeroporto ao Terminal Rodoviário da Asa Sul
integrando-se ao metrô, começaram em setembro de 2009, foram incluídas em
janeiro 2010 na Matriz de Responsabilidades da Copa do Mundo com orçamento de R$
364 milhões, e paralisadas em setembro do mesmo ano pela Justiça por suspeitas
de irregularidades. O responsável pela execução da obra era o governo
distrital, que também contribuiria com R$ 3 milhões de custos.
A liminar que paralisou as obras
foi concedida pelo juiz José Eustáquio de Castro Teixeira, da 7ª Vara de
Fazenda Pública do DF, ao aceitar a denúncia do Ministério Público do Distrito
Federal e Territórios (MPDFT), que apontou fraude na concorrência do Metro-DF
com o intuito de favorecer duas empresas: a Dalcon Engenharia e Altran/TCBR.
Segundo o Ministério Público, ambas seriam sócias ocultas e a vencedora da
licitação, a Dalcon Engenharia, teria repassado R$ 1 milhão para a empresa
“concorrente”. O ex-presidente do Metrô-DF, José Gaspar de Souza, foi acusado
de manter vínculos estreitos com as duas empresas e exonerado em abril de 2010
pelo então governador do DF, Rogério Rosso (PMDB).
Em abril de 2011, o mesmo juiz
exigiu que fosse aberta uma nova licitação para o VLT. Um ano depois, o secretário
de Obras do DF, David de Matos, declarou que o primeiro trecho da obra do VLT
não ficaria pronto até 2014 por causa dos atrasos provocados pelo cancelamento
da licitação e a obra foi oficialmente retirada da Matriz a pedido do
governador Agnelo Queiroz em setembro do ano passado.
Procurada pela Pública, a
Secretaria de Comunicação do Governo do Distrito Federal (SECOM-DF) divulgou
nota dizendo que “a retirada do VLT da Matriz de Responsabilidade da Copa será
compensada pela readequação da DF 047, que liga a estação de passageiros do
Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek até a parte central da capital,
com a implantação de uma via exclusiva dedicada a ônibus de passageiros,
turistas e delegações.” E afirmou: a distância do estádio Mané Garrincha até o
centro de Brasília é de 3 km, “o que facilita e incentiva o acesso a pé”.
A POPULAÇÃO DE MANAUS FICOU SEM
OBRAS DE MOBILIDADE
Em termos de mobilidade urbana,
Manaus ganharia duas obras importantes, previstas desde 2010: o Monotrilho
Norte/Centro e o BRT no Eixo Leste/Centro, que seriam integrados. Ambas as
obras, porém, foram excluídas da Matriz de Responsabilidades da Copa.
A obra do monotrilho, orçada em
R$ 1,307 bilhão, foi licitada em março de 2011 e quatro meses depois tornou-se
alvo de investigação do Tribunal de Contas do Estado do Amazonas (TCE-AM). O
relatório do TCE qualificou o projeto básico da obra de “incompleto e
deficiente” e fez 32 restrições a ele – desde a falta de estudos técnicos
preliminares até a ausência de estudos tarifários, dos custos de desapropriação
e de justificativas para os valores apresentados. Sobre o edital, alvo de
outras 27 restrições, o TCE disse que “não atende aos requisitos da Lei de
Licitações e Contratos (8.666/93)”.
O relatório também registrou que
os órgãos responsáveis pelo projeto básico do monotrilho (Secretaria Estadual
de Infraestrutura) e pela licitação (Comissão Geral de Licitação) não se
manifestaram mesmo quando acionados. E pediu a anulação da licitação, “por
estar eivada de vícios que a tornam ilegal”, recomendando multar os chefes dos
órgãos públicos envolvidos. Também solicitou o envio de cópias dos documentos
da licitação ao Ministério Público do Amazonas para prosseguir com a
investigação e à Caixa, que não liberou os recursos para a obra. Ainda assim, o
projeto foi levado adiante pelo governo estadual, que executou todas as etapas
que não dependiam de recurso federal.
Já o BRT tinha o custo previsto
de R$ 290,7 milhões. O edital de licitação foi lançado em outubro de 2010.
Tanto a CGU quanto o Tribunal de Contas do Amazonas, em fevereiro de 2011,
apontaram falhas no projeto. Ainda naquele mês, em ação conjunta, os
Ministérios Públicos, estadual e federal solicitaram explicações da Prefeitura,
responsável pela execução da obra, e recomendaram à Caixa Econômica Federal
(CEF) que não liberasse recursos antes da correção dos erros.
Em outubro de 2012, no primeiro
encontro entre o prefeito eleito, Artur Neto (PSDB), e o governador do
Amazonas, Omar Aziz (PSD) foi anunciado que as obras não ficariam prontas para
a Copa. “A capacidade da Arena da Amazônia é de 42 mil pessoas, isso cabe
facilmente no Sambódromo. As pessoas vão, estacionam e ninguém reclama da
mobilidade. No dia da Copa se decreta feriado municipal e não vai ter
problema”, minimizou Aziz.
À Pública, o coordenador da
Unidade Gestora da Copa (UGC) em Manaus, Miguel Capobiango, disse que as
críticas feitas ao monotrilho são de natureza técnica e não jurídica e que por
isso o governo do Amazonas tocou o projeto mesmo com pareceres contrários da
CGU, do Ministério Público e do TCE. “Entendemos que eles não tinham caráter
definitivo, por isso seguimos com o projeto”, justifica. As obras do monotrilho
foram incluídas no PAC de Mobilidade Urbana e devem estar prontas, segundo ele,
no fim de 2015, ou início de 2016.
PURA “PROPAGANDA”, DIZ
ESPECIALISTA.
Para o engenheiro Lúcio Gregori,
ex-secretário de Transportes na gestão da prefeita Luiza Erundina em São Paulo
(1989-1992), o equívoco começa ao pensar em soluções de mobilidade urbana a
partir de megaeventos esportivos. “Esse tipo de investimento voltado à
realização de eventos esportivos foi feito na Europa, como em Barcelona, mas as
cidades europeias já dispõem de um bom sistema de transporte. Aqui, a
mobilidade urbana em geral é muito ruim e a tese de que os eventos esportivos
transformariam a mobilidade urbana nas cidades brasileiras me parece mais
propaganda do que outra coisa. Teriam de ser feitos investimentos de outra
natureza para realmente gerar mobilidade, sem a premissa de prazos, custos, e necessidades
específicas dos megaeventos”, diz Gregori.
Na visão de Lúcio, a discussão
sobre mobilidade urbana no Brasil e na Copa ainda esconde uma disputa de
mercado entre modelos de transporte. “Há uma discussão disfarçada sob um manto
de tecnicalidade, mas que na verdade disfarça a disputa de mercado: o BRT
versus o VLT versus o Monotrilho”. São três disputas, diferentes fornecedores,
diferentes efeitos no sentido de quem fornece o que para esses sistemas e quem
lucra com essa operação. A mobilidade urbana está virando um prato em que
vários comensais estão interessados. “Também não é possível fazer uma discussão
séria sobre mobilidade urbana no Brasil pautado nessa disputa de mercados,
investimentos e lucratividade”, conclui.
O blog Copa Pública é uma experiência
de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada
pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não
ficar de fora.