Por Marcos Alvito.
Pinçado do blog do Juca Kfouri.
O último jogo transmitido por Ary
Barroso no rádio foi a tragédia do Maracanã em 1950.
Depois da derrota para o Uruguai,
decidiu abandonar para sempre a carreira de locutor esportivo.
Naquele dia nem
mesmo apareceu na Rádio Tupi para comandar a resenha esportiva dominical.
Pelo
menos ele conseguira irradiar Brasil e Uruguai até o fim.
Quando de um jogo
anterior da Copa, a vitória do Brasil sobre a Iugoslávia por 2×0, assim que
Zizinho fez o gol Ary abandonou o microfone.
O mesmo acontecera em um sul
americano na Argentina e no famoso tricampeonato do Flamengo em 1944,
conquistado sobre o Vasco no finalzinho da partida em um gol até hoje
contestado pelos vascaínos.
Além de compositor genial,
radialista, jornalista, boêmio e até vereador pela UDN, o autor de “Aquarela do
Brasil” era acima de tudo um torcedor.
E acima de tudo um torcedor do Flamengo.
Sua parcialidade durante a transmissão dos jogos do seu time de coração era
escancarada. Em 1949, a Rádio Tupi contratou Antônio Maria para dividir com ele
a narração das partidas, fazendo uma dupla muito original: em um Flamengo e
Vasco, por exemplo, Antônio Maria narrava os momentos em que o Vasco estava com
a bola, Ary quando o Flamengo tinha a pelota.
Em todos os jogos Ary e Antônio
Maria defendiam partidos opostos, uma maneira brilhante e divertida de
contemplar todos os torcedores.
Antes da contratação de seu
parceiro de narração, todavia, Ary Barroso era o locutor de um time só.
Depois
que Valido faz o gol que daria ao Flamengo o tricampeonato já mencionado, aos
41 do segundo tempo, Ary Barroso fica tocando sua gaitinha sem parar e quando o
Vasco dá a saída ele não transmite mais nada: larga o microfone e vai para a
beira do campo comemorar alucinado.
Seus colegas tiveram que correr para o
microfone.
À noite, como sempre, Ary participou do programa esportivo da Tupi,
onde o grande debate girou em torno da legalidade ou não do gol rubro-negro.
Os
vascaínos alegavam que Valido teria se apoiado em Argemiro, half esquerdo do
Vasco.
Os rubro-negros diziam que Valido tinha pulado muito mais alto e pronto.
Quando perguntado, Ary não se fez de rogado, mas surpreendeu a todos com a sua
resposta:
“- É verdade. Valido se apoiou no
ombro de Argemiro. Melhor do que isso será a decisão do ano que vem: o Flamengo
vai ganhar com um gol marcado com a mão, cinco minutos depois do tempo
regulamentar, com seu autor em impedimento.”
E coroou tudo com uma sonora
gargalhada.
O vascaíno Sérgio Cabral, que conta esta história, lembra que
depois disso o Flamengo ficou sete anos sem ganhar do Vasco.
A paixão de Ary pelo Flamengo era
tanta que ele recusa um convite para ser o diretor musical da Walt Disney
Productions.
Diante da surpresa de Walt Disney, que lhe pergunta porque não
aceitou, Ary teria dito:
“- Because ‘don’t have’ Flamengo
here”.
O amor pelo rubro-negro levou Ary
a desafiar seu maior medo: andar de avião.
Acontece que o Flamengo queria
contratar um jovem jogador paraguaio chamado Modesto Bria, que no futuro viria
a ser um homem chave na conquista do tricampeonato de 44. O Fluminense,
entretanto, já estava de olho no promissor meio-campista.
Ary toma coragem e
pede um avião emprestado a seu patrão Assis Chateaubriand, vai até o Paraguai,
convence os paraguaios e traz Bria para o Flamengo.
A paixão desmedida, com o perdão
da redundância, traz não somente alegrias e tristezas mas também alguns
problemas.
Ary, que não tinha uma personalidade fácil, criou e teve que
enfrentar muitos problemas por causa da sua obsessão com o Flamengo.
Seu ídolo
maior era Leônidas, o Diamante Negro e foi Ary que batizou o famoso lance como
“bicicleta”. Sérgio Cabral explica que muitos já o haviam praticado, tanto no
Brasil quanto no exterior, mas foi o “marketing” de Ary que associou
definitivamente a jogada ao centroavante do Flamengo.
Quando o Flamengo vende o
craque para o São Paulo por um bom dinheiro, Ary fica furioso: como o presidente
do clube tinha fechado o negócio na sexta-feira da Paixão, Ary Barroso começa a
chamá-lo de “Judas”.
Já Silvio Pirilo, contratado pelo
Flamengo ao Peñarol para substituir Leônidas, passa a ser incansavelmente
perseguido por Ary.
Se Pirilo perdia um gol, ele não perdoava: ‘Imaginem se
Leônidas perderia um gol desses. Nunca!’.
Pirilo respondeu com gols e marcou 39
gols no campeonato de 1941, batendo o recorde dos campeonatos cariocas
(Leônidas fizera 30 no ano anterior).
Em 1943, Ary tenta se redimir e faz uma
vaquinha entre amigos, arrecadando mais de cinco mil cruzeiros para dar ao
centroavante.
Pirilo, ainda sentido com as críticas, aceita o dinheiro mas doa
a quantia a uma instituição de caridade. Anos depois, defendeu-se dizendo que
as críticas eram uma forma de desafiar Pirilo.
Sabendo da sua loucura pelo
Flamengo, os adversários o provocavam.
Tim, habilidoso ponta direita do
Fluminense na década de 1940, era muito criticado por Ary Barroso por não
soltar a bola.
Ary vivia esbravejando no microfone: ‘Solta a bola, Tim!’.
Pois
bem, depois de uma vitória do Fluminense sobre o Flamengo, Tim, ao ser
entrevistado chama a atenção do repórter para uma interessante “coincidência”:
as críticas a ele eram muito mais duras em dia de Fla x Flu.
E completou,
sarcástico: ‘Pode ficar tranquilo, Ary Barroso, que não vou soltar a bola,
não.’.
O curioso é que Ary já torcera
para o Fluminense.
Pelo menos até 1929, quando fora ver um Fluminense x Andaraí
nas Laranjeiras.
O então time de Ary precisava vencer de qualquer maneira para
ter chances de ser campeão.
Ainda no primeiro tempo, todavia, para desespero de
Ary, o Fluminense estava perdendo de 3×0.
Um diretor desavisado, pede a Ary que
toque um pouco de piano ‘para divertir os sócios’.
Furioso, diz que não veio
ali pra divertir ninguém e sim para ver seu Fluminense perder o campeonato.
Depois disso, é suspenso do clube e mais tarde expulso por não pagamento de
mensalidades, o que não era culpa dele e sim do clube que não enviou ninguém
para cobrá-las como de costume.
O Fluminense perde o campeonato e o torcedor.
Ary fica entre o Botafogo e o América mas acaba tornando-se Flamengo depois de
passar a frequentar o clube a convite do ex-jogador Telefone (zagueiro entre
1920-3).
A pior rivalidade de Ary,
todavia, não era com o Fluminense e sim com o time da cruz de Malta.
Em 1941
Ary resolveu dar palpite na eleição do Vasco, apoiando seu amigo Ciro Aranha e
criticando duramente ao microfone os outros candidatos.
Resultado: foi
simplesmente proibido de entrar em São Januário, palco dos maiores jogos antes
da construção do Maracanã.
Ary era Ary.
Não se conformou com a proibição, muito
pelo contrário.
Antes de um Vasco e Fluminense, instalou todo seu equipamento
em um telhado de uma casa de onde se podia ver o campo.
Os vascaínos descobrem
Ary e estendem várias faixas impedindo a visão e a transmissão do jogo.
Ary não desistiu e no domingo
seguinte, quando seu Flamengo jogaria contra o Botafogo, pediu permissão ao
diretor do Colégio Pio Americano para transmitir o jogo do alto da escola, ficando
no telhado com um binóculo, em uma posição incômoda e sem grande visão do jogo,
razão pela qual ia conferindo a transmissão do locutor de outra rádio.
Cansado,
Ary simplesmente antecipa o final da partida três minutos antes, para o
desagrado dos alunos que estavam acompanhando o jogo e a transmissão.
Mas isto
parece ter sido providencial, porque poucos minutos depois de Ary sair do
colégio dezenas de vascaínos chegaram ao local, furiosos, xingando o locutor de
todos os palavrões possíveis.
A Associação Brasileira de
Imprensa, percebendo a gravidade da situação, intervém e obriga Ary Barroso a
fazer as pazes com Antônio Campos, presidente de Vasco, dando a briga por
encerrada com um aperto de mão diante de dezenas de repórteres.
Mas as relações
com a torcida do Vasco continuaram tensas.
Contratado para animar um programa
de calouros em um circo em Madureira, Ary gonga uma moça, eliminando-a do
concurso.
O que ele não sabia é que ela era irmã de Isaías, um jogador do
Vasco.
A plateia, achando que fosse perseguição de Ary, cerca o compositor, que
só conseguiu sair do circo com ajuda policial.
Nem todas as suas brigas,
todavia, eram causadas pelo amor ao clube da Gávea.
Em 1942, quando do
Campeonato Sul-Americano de futebol, a Rádio Mayrink Veiga, concorrente da
Tupi, consegue um contrato de exclusividade para transmitir os jogos.
Ary acha
um desaforo que somente Oduvaldo Cozzi tivesse o direito de transmitir os jogos
do Brasil.
Antes do Brasil e Argentina, vai até Montevidéu disposto a
transmitir o jogo de qualquer jeito.
Seu rival, todavia, pede a intervenção
policial para fazer valer o contrato de exclusividade e consegue impedir Ary.
Não seja por isso. Ary viaja até Buenos Aires e de lá “transmite” o jogo a
partir da escuta da transmissão do próprio Cozzi e de um locutor argentino.
Em Buenos Aires, aliás, tinha
ocorrido uma das maiores aventuras de Ary como locutor.
Fora alguns anos antes,
em 1937.
A final foi entre Brasil e Argentina, no campo do San Lorenzo.
O
Brasil perdeu de 2×0, graças ao juiz segundo Ary e outros jornalistas
brasileiros.
Ary, que transmitia o jogo das cadeiras, não poupava “elogios” ao
árbitro e torcia apaixonadamente pelo Brasil em meio a um mar de argentinos.
Microfone em punho, invade o campo para protestar contra uma marcação do juiz e
a certo momento larga tudo para ir incentivar os jogadores brasileiros, tendo
que ser substituído.
A torcida argentina arremessa objetos na sua direção e ele
tem que sair de campo protegido pela polícia.
A gaitinha não era o único
elemento musical presente nas transmissões futebolísticas de Ary Barroso.
É
muito interessante notar a relação que Ary Barroso estabelecia entre a narração
de um jogo e a música.
Certa vez a Tupi, rádio na qual trabalhava, faz um
concurso para locutor esportivo.
Apareceram mais de 400 candidatos dos quatro
cantos do Brasil.
Ary é que ficou encarregado de selecioná-los.
Pedia que
lessem textos em francês, inglês e espanhol e depois que transmitissem jogos da
categoria juvenil.
Ficava horas ouvindo as gravações e reclamava da falta de
musicalidade.
Já sem esperanças, reúne os candidatos e dá-lhes uma aula:
“- Transmissão esportiva é como
uma escala de piano. O meio do campo é o dó. Aí, vocês percorrem a escala:
dó-ré-mi-fá-sol-lá-si e, depois, voltam para o dó. Entenderam?”
Mineiro de Ubá, onde começou o
seu amor pelo futebol, Ary Barroso era o goleiro do Aimorés Futebol Clube, onde
agarrava de óculos e tudo devido a sua miopia.
Sua carreira artística foi toda
desenvolvida no Rio, onde chegara com 18 anos, mas Ary também foi locutor em
Minas Gerais por um breve período.
Aproveitando uma brecha do campeonato
carioca de 1943, fatura uns trocados transmitindo jogos para a Rádio Guarani de
Belo Horizonte.
Anunciado como “O maior locutor esportivo do continente”,
transmite dois amistosos do Botafogo: contra o América Mineiro e contra o
Atlético.
É muito bem tratado, apresenta um show de artistas locais na Pampulha
e recebe homenagens.
Mas como era de se esperar, não perdoa o fato de chover
ininterruptamente durante a sua estada na capital mineira: logo faz um samba
com o título Chove, chuva, de uma vez.
Ary Barroso estreou no rádio por
acaso, em 1936, para substituir Afonso Scola, locutor esportivo da rádio
Cruzeiro do Sul, acometido de uma úlcera no estômago.
O novato deu um show ao
microfone, misturando informações com comentários pessoais, muita irreverência,
bom humor e frases de efeito.
Foi ele o inventor do “repórter de campo” e o
criador de um programa diário sobre futebol: Esportes na Batata.
Apesar de toda a originalidade de
Ary Barroso, de seu estilo inconfundível, de suas marcas registradas como a
gaitinha e as brincadeiras, não devemos tomar sua trajetória como excepcional.
Ela é, na verdade, um exemplo da interdependência entre o campo jornalístico e
o campo esportivo no caso brasileiro, sem falar no campo artístico-musical.
O
próprio Ary parecia ter consciência deste triângulo amoroso entre
imprensa-música e futebol: certa vez criticou aqueles que não consideravam
Silvio Caldas o maior cantor de sambas do Brasil, dizendo que era a mesma coisa
que “falar em futebol e não citar Domingos da Guia”.
O rádio foi um instrumento
fundamental para a popularização do futebol no Brasil e para a difusão da
música popular, mas a recíproca era também verdadeira: o futebol e a música
eram as principais atrações do rádio, aquilo que trazia para este meio uma
audiência massiva.
O que explica o papel ímpar de Ary Barroso é o fato dele
estar bem inserido nos três campos ao mesmo tempo, um reforçando o outro: era
jornalista, locutor esportivo e compositor.
Sua postura de torcedor apaixonado,
por mais verdadeira que fosse, expressando sua alegria por meio dos sons da
gaita, parecia fundir estes três campos em um.