Imagem: Autor Desconhecido
Armando Nogueira, Clarice Lispector, futebol e nós, bem-aventurados!
Quando Clarice Lispector presenteou todos com suas palavras sobre a
paixão nacional e provou que futebol e literatura podem fazer a mais linda
tabelinha de todos os tempos.
Por Pedro Henrique Brandão Lopes, do Universidade do Esporte
O ano era 1968. 30 de abril foi o
dia em que Clarice Lispector publicou no Jornal do Brasil uma crônica
intitulada “Armando Nogueira, futebol e
eu, coitada”.
Dias antes, Armando Nogueira
havia provocado no mesmo JB:
“De bom grado eu trocaria a vitória de meu time num grande jogo por uma
crônica de Clarice Lispector sobre futebol”.
A reconhecida e consagrada
escritora não precisava responder sobre um assunto tão popular e que, para o
senso comum, passa tão longe da literatura e dos romances, time em que ela era
craque, camisa 10 e faixa.
Quem diria que uma intelectual
como Lispector se interessaria por futebol?
Mesmo com um perfil nada parecido
com o de uma torcedora e num tempo em que às mulheres era negado o direito de
opinar sobre o esporte bretão, a escritora não só respondeu Armando Nogueira na
crônica publicada no JB, como era botafoguense praticante — ainda que não nas
arquibancadas, mas “sofredora do sofá pela TV” — e devolveu a provocação com um
desafio:
“Meu primeiro impulso foi o de uma vingança carinhosa: dizer aqui que
trocaria muita coisa que me vale muito por uma crônica de Armando Nogueira
sobre, digamos, a vida. Aliás, meu primeiro impulso, já sem vingança, continua:
desafio você, Armando Nogueira, a perder o pudor e escrever sobre a vida e você
mesmo, o que significaria a mesma coisa”.
Com muito talento a escritora vai
nos colocando dentro da crônica, prendendo o leitor ao texto como o time de
coração nos prende à arquibancada a cada lance de perigo contra ou a favor.
Mas é o coração botafoguense que
grita alto e alerta Armando Nogueira:
“Mas, se seu time é Botafogo, não posso perdoar que você trocasse,
mesmo por brincadeira, uma vitória dele nem por um meu romance inteiro sobre
futebol”.
Mesmo que a torcedora grite, a
escritora pondera que “não pode se deixar
levar pelos excessos”.
Guia o leitor que, porventura,
ainda se pergunte porque uma renomada escritora, uma intelectual, estaria
escrevendo sobre futebol, e esclarece: “não
poderia eu me isentar a tal ponto da vida do Brasil”.
Clarice usa toda sua
sensibilidade para responder aos incautos que no Brasil, futebol é muito mais
que um jogo.
Não deveria ser um assunto
relegado ao populacho, sendo mais uma das tantas exoticidades que a elite atribuí
à turba, ainda que seja o futebol patrimônio da ralé, deveria ser tratado pelos
intelectuais como parte integrante da vida do brasileiro.
Vai além, como escritora
reconhece no futebol e nas experiências proporcionadas pelo entorno da paixão
nacional, a matéria prima indispensável para erguer as obras literárias mais
sensíveis, justamente por imitar a vida e a paixão de pessoas comuns pela vida
e suas coisas.
Lá pelas tantas, Lispector
entrega o filho “traidor” que
abandonou o Clube da Estrela Solitária e “para
agradar ao pai veste a casaca do Flamengo”.
Fala de como são as tardes de
futebol pela TV com o outro filho, o botafoguense, que sem paciência ou com uma
“impaciência piedosa” e “um tanto de ternura pela mãe”, responde
rapidamente às tolas perguntas que faz a genial escritora e leiga espectadora
de futebol.
Depois se entrega; primeiro ao
Botafogo, se declarando uma apaixonada torcedora; e em seguida ao leitor,
quando conta seu pecado de na vida ter ido uma única vez ao estádio para
assistir de “corpo presente” a um
jogo do Fogão contra quem, confessa, nem sequer se lembra: “Sinto que isso é tão errado como se eu
fosse uma brasileira errada”.
A escritora segue crônica adentro
aproveitando para desmentir e desmistificar um bordão tradicional do futebol: “Não, não imagine que vou dizer que futebol
é um verdadeiro balé. Lembrou-me foi uma luta entre vida e morte, como de
gladiadores”.
Arremata com a genialidade dos
grandes escritores e dá uma nova dimensão de beleza ao futebol:
“O futebol tem uma beleza própria dos movimentos que não precisa de
comparações”.
A autora de “A hora da estrela” ainda teria tempo para equiparar uma vez mais
vida e futebol ao falar sobre seu desconhecimento sobre o esporte mais amado do
brasileiro.
Clarice abriu de vez o coração
para encerrar a crônica e cravar de uma vez por todas a sua paixão pela vida na
medula de cada leitor:
“Então, na minha avidez por participar de tudo, logo de futebol que é
Brasil, eu não vou entender jamais? E quando penso em tudo no que não
participo, Brasil ou não, fico desanimada com minha pequenez. Sou muito
ambiciosa e voraz para admitir com tranquilidade uma não participação do que
representa vida. Mas sinto que não desisti. Quanto à futebol, um dia entenderei
mais. Nem que seja, se eu viver até lá, quando eu for velhinha e já andando
devagar. Ou você acha que não vale a pena ser uma velhinha dessas modernas que
tantas vezes, por puro preconceito imperdoável nosso, chega à beira do ridículo
por se interessar pelo que já devia ser um passado? É que, e não só em futebol,
porém em muitas coisas mais, eu não queria só ter um passado: queria sempre
estar tendo um presente, e alguma partezinha do futuro”.
Clarice Lispector morreu um dia
antes de nascer.
Isso mesmo, nasceu num dia 10 de
dezembro e de tanto querer a vida acabou encontrando a morte num dia 09 de
dezembro, em 1977, um dia antes de completar 57 anos de idade.
Dispensa apresentações, mas em
1968, naquela crônica publicada no Jornal do Brasil, respondeu e desafiou
Armando Nogueira, declarou seu amor pelo futebol, pelo Botafogo e pela vida.
“Estrelas
são os olhos de Deus vigiando para que corra tudo bem”
Lispector escreveu isso sobre
estrelas, mas gostava mesmo era de uma única estrela, a Estrela Solitária do
Clube de General Severiano, o Botafogo de Futebol e Regatas.
Armando Nogueira foi o pai do
jornalismo esportivo moderno, o poeta das crônicas esportivas foi também o
homem que criou o padrão de telejornalismo que conhecemos.
Entre tanta genialidade em prosa,
verso, chutes, passes e dribles, não é preciso mesmo trocar nada por coisa
alguma, Armando Nogueira por Clarice Lispector, provocação por desfio, Botafogo
por Flamengo ou qualquer time pelo clube de coração.
Mas se podemos ter a provocação
genial de Armando Nogueira e o futebol romanceado por Clarice Lispector, o
futebol literário, cativante e instigante de Armando Nogueira e a “ignorância apaixonada” que nos apaixona
por Clarice Lispector, somos nós, então, bem-aventurados.