É um texto longo...
Tem razão de ser...
Conta a história do assassinato
do jornalista esportivo goiano, Valério Luiz de Oliveira, acontecido em julho
de 2012.
Vale cada segundo e cada letra...
É narração de um crime que
envolveu homens ricos, políticos, forças de segurança e magistrados.
A história de um jornalista
esportivo que ousou honrar sua profissão.
Por que mataram meu pai
Um olhar pessoal sobre o
assassinato do jornalista esportivo Valério Luiz de Oliveira e as ligações do
dirigente do futebol goiano acusado de ser o mandante do crime
Por Valério Luiz de Oliveira
Filho
Até 2012 eu era só um advogado
tributarista.
Não que ignorasse as questões da
segurança pública e da violência, mas as pensava de forma abstrata, como
qualquer pessoa.
Após ter concluído o curso de
Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG), passei um ano trabalhando em
um grande escritório do Recife.
Retornei a Goiânia com o objetivo
de montar banca própria, incentivado por meu pai.
Naquele ano, voltei a morar com
ele.
Estava esperando por ele quando
recebi o fatídico telefonema, às 14h22 do dia 5 de julho de 2012.
Na véspera ocorrera nossa última
conversa.
Ele entrara na sala de televisão
para me perguntar rapidamente sobre uma empresa que havia me contatado e fora
dormir.
No dia seguinte saiu cedo, não o
vi.
Fui almoçar em casa para
conversarmos melhor depois do seu programa.
Meu pai era radialista e
jornalista, comentava futebol das 12h00 às 14h00 na Rádio Jornal 820 AM, atual
Rádio Bandeirantes.
Era conhecido como “o mais
polêmico do rádio” por não medir palavras nas ácidas críticas que dirigia às
gestões dos cartolas goianos; citava nomes e fatos concretos, fugindo dos
comentários genéricos adotados por outros profissionais.
Num dia normal, no máximo às
14h15, seu Ford Ka preto já teria estacionado no portão; a rádio ficava ali
perto.
Passaram alguns minutos, olhei o
relógio do celular, mas não me preocupei.
Eis que o aparelho toca.
“Valerinho, pelo amor de Deus, vem aqui para rádio que seu pai tomou um tiro”,
disse Lorena, minha madrasta, aos prantos.
Antes que eu fizesse qualquer
pergunta, a ligação caiu, ou ela desligou.
Não sei.
Telefonei então para o
administrador da emissora, Pedro Gomes, que atendeu de pronto.
“Pedro, que história é essa de
que meu pai tomou um tiro? ”
“Onde você está? ”, perguntou
ele.
“Em casa”, respondi.
“Vou mandar um carro da rádio aí,
que seu pai levou uns tiros. ”
O plural me apavorou.
Alguns minutos depois chegou o
Fiat Uno plotado.
Sentei no banco do passageiro e
Elisvânia, a coordenadora financeira da Jornal, do banco de trás passou a mão
em meu ombro, numa condolência.
No caminho parentes e amigos me
ligavam, mas ninguém dizia nada específico.
Só perguntavam se estava tudo
bem.
Quando o carro chegou na esquina
da Teixeira de Freitas, rua da emissora, não conseguiu seguir devido ao acúmulo
de gente.
Desci e continuei o trajeto a pé
até avistar a cena que mudaria minha vida para sempre: a esquina onde, cercado
por faixas de isolamento, o Ford Ka preto estava parado na diagonal, com as
duas portas abertas e os vidros crivados de balas.
Um detalhe me perturbou
particularmente: o pé do meu pai pendendo para fora do carro, com seu tênis
cinza e aquela meia levantada da qual eu sempre caçoava.
Não tive coragem de me aproximar.
Fiquei parado, incrédulo.
As vozes e as imagens pareciam
oriundas de outro mundo.
Ainda assim, precisei dar a
notícia à minha irmã caçula, que ligava sem parar:
“Nosso pai morreu, Laura”.
Minutos depois chegou meu avô
Manoel de Oliveira, radialista e jornalista há 50 anos.
“Mataram meu filho! ”, gritou.
O choro e os brados daquela voz
poderosa – e conhecidíssima dos goianos – delinearam no rosto de todos a mesma
consternação: como as coisas chegaram a este ponto?
Na cena do crime, o carro cravado
de balas
Cresce a tensão
Em depoimentos na Delegacia
Estadual de Homicídios (DIH), todos os colegas de meu pai, tanto da Rádio
Jornal quanto da PUC-TV, onde era comentarista do programa Mais Esportes,
concordaram em um ponto: recentemente houvera uma escalada nas severas críticas
do jornalista à diretoria do Atlético Clube Goianiense, que numa ascensão
meteórica saíra da série C para a série A do Campeonato Brasileiro, mas
encontrava-se em má fase na competição de 2012.
Uma figura em particular se
destacava: o poderoso empresário Maurício Sampaio, então vice-presidente do
time, cargo que ocuparia até o fim de junho, ou seja, apenas dias antes do
assassinato.
Ele era velho conhecido do meu
pai.
Cinco temporadas antes, em 2007,
meu pai viajara ao Piauí para narrar, pela TV Brasil Central, afiliada da
Cultura em Goiás, o jogo Barras (PI) vs. Atlético (GO), que valia classificação
ao quadrangular final do Campeonato Brasileiro na série C daquele ano.
Hospedado no mesmo hotel do clube
goianiense, ele afirmou ter descoberto uma tentativa de compra da partida.
Duas temporadas depois, em 2009,
Valério denunciou o uso de drogas por alguns jogadores nas dependências do
clube.
Foi processado.
Quem compareceu à audiência foi o
próprio Maurício, mas a ação judicial não seguiu adiante.
Nada se compara, porém, àquele
sinistro primeiro semestre de 2012, quando as críticas à diretoria rubro-negra
se intensificaram, chegando a uma tensão pública e notória.
“Uma vaca na árvore”, dizia o
jornalista sobre a presença do Dragão na elite do futebol brasileiro.
“Se um dia você estiver andando e
vir uma vaca na árvore, pode até não saber como ela subiu lá, mas sabe que vai
cair. ”
O time de Campinas – bairro mais
antigo de Goiânia, precedente, aliás, à construção da capital – era figura
constante na zona de rebaixamento do campeonato.
“O Atlético está na série A, mas
não é time de série A, não”, disparava meu pai em seus programas.
O jornalista atribuía a escalada
do clube campineiro a uma injeção de dinheiro oriunda de “patrocinadores
tenebrosos”, como a Linknet, envolvida no escândalo que derrubou José Roberto
Arruda do Governo do Distrito Federal após a Operação Caixa de Pandora, da
Polícia Federal, e a Delta Construções, protagonista da famosa Operação Monte
Carlo, que resultou na cassação do então senador Demóstenes Torres (DEM-GO).
Não por acaso, Valdivino de
Oliveira, enquanto presidente do Atlético Goianiense, foi secretário da Fazenda
do governo Arruda e posteriormente eleito deputado federal pelo PSDB.
Outro deputado federal, Jovair
Arantes, líder do PTB na Câmara e principal articulador da “bancada da bola”,
era membro do Conselho Deliberativo do Dragão Campineiro.
Já Carlinhos Cachoeira e
Demóstenes Torres, então acusados de lobistas da Delta em Goiás, eram – e ainda
são – amigos pessoais de Maurício Sampaio.
Em suma, meu pai, torcedor do
Atlético, afirmava que a diretoria atleticana usava o brasão do clube para
captar dinheiro escuso e criticava Sampaio, em particular, por supostamente
utilizar recursos para a aquisição de jogadores que mal seriam testados em
campo e serviriam apenas de lucro nas futuras negociações com outros cartolas.
Em 2012, com 49 anos de idade,
meu pai tinha 35 de carreira, trabalhara em praticamente todos os veículos de
rádio e televisão de Goiás como repórter convencional ou comentarista
esportivo.
Começara ainda adolescente,
puxando fio de microfone no campo do Estádio Serra Dourada, e sempre levou o
jornalismo a sério.
No fundo, era só isso.
Já que estava comentando futebol,
comentaria de verdade.
Afinal, para que discutir a
qualidade técnica de um jogador que mal seria utilizado?
O trabalho do meu pai seria só
comentar futebol, se esse fosse apenas futebol.
Acontece que não é.
Os clubes no Brasil se
transformaram em agremiações de velhos políticos, coronéis.
Escondem verdadeiras máfias.
Não bastasse a triste campanha no
Brasileirão de 2012, o Atlético perdeu a final do Campeonato Goiano.
A diretoria do Dragão culpou a
Federação Goiana de Futebol, acusando-a de escolher árbitros favoráveis ao time
adversário.
Comentando a polêmica na PUC-TV,
em meados de junho, meu pai reabriu uma antiga ferida: “Querem que a Federação
roube o título para vocês?
O problema é que lá no Atlético
tem muito disso, nego acostumado a fazer mutreta, a tentar comprar resultado,
como lá em Piauí, né, senhor Maurício Sampaio? ”.
As críticas prosseguiram nos
programas seguintes.
Meu pai comentava, em debates ao
vivo com outros jornalistas, boatos de que Sampaio chegara a pagar a torcida
organizada rubro-negra para pichar os muros do próprio clube com xingamentos a
jogadores, e até a dirigentes, se ocasionalmente caíssem no desagrado do
vice-presidente.
Logo as represálias começaram atingindo,
primeiro, outro profissional da imprensa.
Também comentarista esportivo,
Charlie Pereira era colega do meu pai na PUC-TV e trabalhava para Maurício na
Rádio 730 AM.
Sim, o cartola e então cartorário
era, e ainda é, “dono” de rádio.
Adquiriu o controle da emissora
no início de 2012, em sociedade com o advogado Neilton Cruvinel Filho e o
apresentador Joel Datena, filho do popular apresentador José Luiz Datena.
A 730 é a rádio mais tradicional
do jornalismo esportivo goiano.
Meu avô, com sua popular “Equipe
do Mané”, manteve uma bem-sucedida programação esportiva na então Rádio Clube
durante os anos 1980. Em 1997, a emissora foi reinaugurada por Jorge Kajuru sob
a alcunha “Rádio K do Brasil”, em homenagem a Juca Kfouri.
Só em 2003 ela foi batizada de
“730”, referência à frequência da onda de transmissão.
E foi na 730 que Charlie recebeu
o ultimato: ou ficava na rádio ou na TV. Sampaio não queria nenhum dos “seus”
dividindo bancada com meu pai.
O jornalista na PUC-TV
O jornalista deixou então a PUC,
fazendo com que um dos coordenadores do programa, Daniel Santana, procurasse
Maurício na intenção de dissuadi-lo da absurda exigência.
O encontro se deu no 1º
Tabelionato de Protestos e Registro de Pessoas Jurídicas, Títulos e Documentos
de Goiânia, vulgo “Cartório WSampaio”, que o cartola ocupava interinamente (sem
concurso) desde 1988, ano do falecimento do antigo tabelião, seu pai, Waldir
Sampaio.
“Quem não está comigo está contra
mim”, foi sua resposta segundo Daniel.
Ainda em meados de junho de 2012
surgiram boatos de que Maurício deixaria a diretoria do Dragão em razão de
desavenças financeiras com o clube.
Instado a comentar o assunto, meu
pai afirmou que o “deselegante” e “aborrecido” Sampaio era “descartável” e, por
fim, pronunciou a expressão que seria celebrizada pelas crônicas policiais:
“Meu amigo, você pode ver em
filme de aventura, quando o barco está enchendo de água, os ratos são os
primeiros a pular fora”.
A frase acirrou ainda mais os
ânimos.
No dia 19 de junho, o Atlético
Clube Goianiense enviou cartas à PUC-TV e à Rádio 820 proibindo-as de entrar
nas suas dependências, vestiários ou em quaisquer instalações ocupadas pelo
time.
O documento, assinado pelo presidente
Valdivino de Oliveira e o vice Maurício Sampaio, classificava meu pai como
“persona non grata”.
A partir daí meu pai começou a
demonstrar uma incomum ansiedade.
Falava em abandonar o jornalismo
e passou a portar, secretamente, uma pistola taser.
Um dia eu o flagrei guardando o
objeto.
“Para proteção”, disse,
constrangido.
Um jornalista seu amigo, André
Isac, conta tê-lo procurado naqueles dias com uma denúncia séria contra o
Atlético, um furo de reportagem.
“Ele parecia mais carregado e
disse: ‘Olha, vou te pedir uma coisa: não fala disso não, porque não vale a
pena. Essas pessoas são muito perigosas’”, relatou André.
Dias depois, minha madrasta diria
à Polícia Civil ter ouvido do esposo que Maurício “estava fazendo de tudo para
que fosse demitido da rádio e da TV, inclusive oferecendo patrocínios mensais”.
Uma carta anônima
Meu pai foi sepultado na manhã do
dia 6 de julho, com presença massiva da imprensa goiana, de familiares, amigos
e autoridades, inclusive o governador de Goiás e o prefeito da capital.
Lembro de, ao me aproximar do
caixão, fixar-me na sua mão esquerda, que estava enfaixada.
Uma bala a atingira quando ele
fez “posição de defesa”, segundo os peritos e legistas.
A maior referência da minha vida
estava ali, envolta em flores.
Meu pai, a quem devo meu nome.
Desde aquela manhã a imprensa só
falava sobre o crime.
Todos os parentes, amigos e
conhecidos eram gentis comigo, fazendo o possível para me distrair.
Mas isso ficou ainda mais difícil
quando uma carta anônima chegou às redações de todos os jornais de Goiânia.
Com o título “Nada muda na PM
goiana”, a denúncia foi amplamente divulgada e caiu como uma bomba tanto na
Secretaria de Segurança Pública quanto em meu coração.
Dizia: “O assassinato do
jornalista Valério Luiz, filho do Mané de Oliveira, tem ligação direta com o
Tenente Coronel (e se ‘deus’ abençoar e o Governador assinar, futuro coronel)
Urzeda que todos sabem é intimamente ligado à diretoria do Atlético, uma das
principais vítimas dos comentários da vítima (meu pai) ”.
A seguir, o texto era ainda mais
preciso:
“Quem executou o jornalista foi o
SD Figueiredo do CME2, se houver um reconhecimento do mesmo pelas testemunhas
não haverá dúvidas.
Estão organizando uma acusação
contra um menor de idade, que ou irá assumir, ou irá morrer, e a arma do crime
será plantada com esse indivíduo, podem anotar isso aí, se não der tempo dessa
informação chegar no comandante Urzeda”.
Depois de lê-la, lembro de
perambular horas a fio pelo parquinho do prédio da minha tia, pensando.
Sentia-me ridiculamente pequeno e
impotente.
Era horrível a sensação de que
forças muito maiores, inclusive do Estado, se movimentaram para matar meu pai.
Não hesitariam, pensei, em
atingir a mim e à minha família.
Decidi sair à rua o mínimo
possível.
O tal tenente-coronel Urzeda era
não só “intimamente ligado à diretoria do Atlético” como foi diretor de
relações públicas do time até as vésperas do assassinato.
Renunciou no dia 19 de junho, por
escrito, em solidariedade a Maurício Sampaio, a quem chamou de “homem de personalidade
forte, leal, amigo, de conduta ilibada”.
Mesmo assim, em constantes
entrevistas, inclusive no velório, prometia “ajudar nas investigações”.
Em resposta, minha família
mostrou a delicada posição do tenente-coronel e pediu seu afastamento do caso.
Fomos atendidos.
Manifestação que ocorreu 21 de julho de 2012
Ainda em julho, no dia 21,
fizemos um protesto por justiça no Estádio Serra Dourada, antes do jogo Goiás
(GO) vs. Avaí (SC), que valia pelo Campeonato Brasileiro da série B de 2012.
Os jogadores do Verdão entraram
em campo vestindo camisetas estampadas com a foto do meu pai e a inscrição:
“Não deixem que o povo esqueça
esse crime”.
Faixas da Associação dos
Cronistas Esportivos do Estado de Goiás (Aceeg) exigiam resposta das
autoridades.
Semanas e semanas se passaram, no entanto, sem nenhum avanço.
Outubro, novembro e dezembro
foram marcados pela troca do secretário de Segurança Pública e por audiências
com o governador Marconi Perillo, que, em duas ou três oportunidades, convocou
ao Palácio das Esmeraldas os delegados encarregados do inquérito e, na presença
do meu avô, requereu empenho.
A imprensa não só lembrava
constantemente o caso como fazia uma espécie de diário das investigações,
principalmente o Jornal Opção, através de renitentes notas de seu editor-geral,
Euler Fagundes de França Belém.
Em fevereiro de 2013, sete meses
depois do crime, quando a ansiedade já ficava insuportável para mim, foi o
próprio Euler que me ligou.
“Valério, está sabendo das
prisões no caso do seu pai? ”
Corri para a delegacia.
Era meio-dia, e jornalistas se
amontoavam em volta da delegada Adriana Ribeiro.
Ela falou sobre um açougueiro,
Marcus Vinícius Pereira Xavier; um sargento da PM, Djalma Gomes da Silva; e um
empregado de Maurício Sampaio, Urbano de Carvalho Malta.
Comentava-se que o assassinato
fora organizado pelo sargento e por Urbano.
Mas faltava uma peça no
quebra-cabeça.
Na manhã seguinte, li a notícia
na internet, incrédulo.
Maurício Sampaio acabara de ser
preso.
Ao cabo de quase oito meses de
investigação, a Polícia Civil encerrou o inquérito, indiciando o cabo Ademá
Figuerêdo Aguiar Filho como o autor dos disparos, o açougueiro como partícipe,
o sargento Djalma como primeiro operador, Urbano de Carvalho Malta como o
segundo operador.
O empresário e cartola Maurício
Borges Sampaio foi apontado como mandante.
Eis o que diz o inquérito.
Como se mata um jornalista
Marcus Vinícius Pereira Xavier,
vulgo Marquinhos, possuía um açougue no bairro Parque Amazonas, em Goiânia, e
tinha como cliente o sargento Djalma Gomes da Silva.
Paralelamente ao açougue,
mantinha uma vida criminosa, com passagens pela polícia por assalto e roubo de
carros.
Devido à amizade com o PM, era
acobertado e em troca repassava informações sobre outros bandidos.
Segundo Marquinhos, Da Silva o
procurou no açougue solicitando ajuda a “um amigo”.
Dias depois, em 3 de julho,
reapareceu na companhia de Urbano de Carvalho Malta.
Precisavam “passar um susto” em
um indivíduo, disseram, a mando do “patrão de Urbano”. Pediram que Marcus
arrumasse uma motocicleta – a sua foi rejeitada por ser amarela, chamativa.
Providenciou então a Honda CG
preta de seu pai, além de uma camiseta velha e um capacete. Mais tarde, Da
Silva voltou ao açougue sozinho e deixou um revólver calibre 357 carregado.
Dois dias depois, era chegada a
hora.
Naquela manhã, Marquinhos foi
avisado que Figuerêdo passaria perto das duas da tarde.
O policial chegou em um Fiat
Palio azul-escuro, vestiu a camiseta, o capacete, pôs o revólver na cintura e
acelerou com a moto rumo à Rádio Jornal 820 AM, ali perto.
Não muito depois, os objetos e a
Honda foram devolvidos.
Marcus queimou a camiseta.
A arma estava descarregada.
O inquérito relata que uma das
testemunhas viu um motoqueiro parado na contramão da avenida T-5, como se
esperasse algo.
Ele dobrou na estreita rua da
emissora ao mesmo tempo que a testemunha, que desacelerou a moto, com medo, e
foi ultrapassada.
Em segundos soaram os estampidos.
Um comentarista da Jornal, Alípio
Nogueira, saiu para checar o barulho.
Ouviu uma voz dizer “liga para o
Da Silva”.
A voz era de Urbano de Carvalho
Malta, que, logo após a fuga do atirador, abriu a porta do carro e se inclinava
sobre a vítima ainda agonizante.
“Vou ligar pra ambulância”,
respondeu Alípio, sem entender.
Os primeiros a chegar, contudo,
foram equipes especializadas da Polícia Militar.
Segundo relatos de uma
testemunha, intimidaram trabalhadores braçais de uma construção contígua, que
poderiam ter visto demais.
Da Silva fazia segurança para
Maurício em dias de jogos.
Em troca, recebia dinheiro e
isenção de mensalidade para os filhos numa escola de propriedade do cartola.
Assim como o colega, Figuerêdo
costumava acompanhar o ex-vice do Atlético ao Estádio Serra Dourada.
Tanto o cabo quanto o sargento
eram seguranças também de Joel Datena.
Na véspera do homicídio, Urbano
de Carvalho Malta se mudara para um casebre em frente à Rádio Jornal, onde não
pagava aluguel e mantinha vigilância sobre a rotina de meu pai.
O imóvel pertence a Maurício
Sampaio.
Nos depoimentos do inquérito,
consta que Urbano chegou a levar Marquinhos até lá e dizer “esta é a casa em
que eu trabalho”.
O tráfego de ligações foi intenso
entre todos os acusados naquele 5 de julho, tendo sido identificada até mesmo
uma chamada feita da cena do crime, de Urbano para o cartório WSampaio.
Estava clara a circunstância: à
medida que se aproximavam as 14h, Urbano se colocou na calçada e, por celulares
“bodinhos” – comprados e registrados num CPF laranja apenas para o crime –,
comunicou-se com Figuerêdo, deixando-o de sobreaviso.
Quando meu pai saía da emissora,
uma última e curta ligação, de 10 segundos, registrada às 13h59min17s, deu a
ordem fatal.
Meses depois, o pai de Marcus
relatou que o filho lhe confessou a participação no assassinato numa ocasião em
que assistiam a notícias a respeito.
O irmão dele também confirmou, e
um primo acrescentou que, segundo Marcus, o mandante foi Maurício Sampaio.
Duelo nos jornais, duelo nos tribunais
Já no dia 28 de fevereiro foi
julgado o primeiro habeas corpus (HC) impetrado a favor de Maurício Sampaio.
A sala de sessões da 1ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça mal comportava tanta gente.
O relator, o desembargador José
Paganucci Júnior, votou pela manutenção da prisão temporária, mas outro
desembargador, Gerson Santana Cintra, surpreendeu a todos.
Gerson Santana, que sempre atuara
no cível e apenas havia dias estava na 1ª Câmara Criminal, expôs uma fundamentação
mais longa que a sustentação oral do advogado de defesa e votou pela soltura.
O voto foi acompanhado pelo
presidente da sessão, Ivo Fávaro, ao passo que a desembargadora Avelirdes
Pinheiro optou por manter a prisão.
Um quinto magistrado, Itaney
Francisco Campos, chegou atrasado e não pôde votar.
Como o empate beneficia o réu,
por dois votos a dois o Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) concedeu o habeas
corpus.
No dia seguinte, o juiz Lourival
Machado da Costa, da 2ª Vara Criminal de Goiânia, substituiu a prisão
temporária por prisão preventiva, e em 2 de março o cartola estava encarcerado
novamente.
A essa altura, segundo
jornalistas amigos nos contaram, funcionários da Rádio 730 haviam sido
acionados para defender o patrão em rasgados editoriais.
Nas páginas dos jornais, nos
digladiávamos com o então chefe de jornalismo da emissora, Nilson Gomes,
ex-assessor de Demóstenes Torres e detentor da língua mais ferina de Goiás.
“Liberdade para Maurício Sampaio
é o mínimo a se fazer pela democracia”, chamava o título de um dos seus artigos
no jornal Diário da Manhã.
Respondi com dureza, dias depois,
no mesmo jornal:
“ ’Pela democracia? ’ Talvez o
pior defeito das palavras seja não poderem se defender quando usadas
cretinamente […]. Não precisamos que nos ensine o que é democracia. Nós nos
lembramos da Constituição e não confundimos seus artigos, incisos e alíneas com
os do Código Civil, Parte Especial, Livro I, Título VI, Capítulo I: 'Da Compra
e Venda' ”.
A tréplica chamou-me de acusador
e analfabeto.
No meio desse turbilhão, um
segundo habeas corpus foi impetrado.
O julgamento aconteceu em tempo
recorde.
Muito criticado pelo atraso no
julgamento anterior, que resultou na soltura do cartola, o desembargador Itaney
justificou-se e dessa vez proferiu extenso voto mantendo a prisão preventiva.
Uma tremenda vitória, inesperada.
Pensei que a situação estava
estabilizada pelo menos até o interrogatório dos réus.
Por isso, foi com surpresa e
curiosidade que ouvi, ainda em abril, sobre o terceiro habeas corpus.
Ao folhear a petição, me
assombrou a engenhosidade da manobra.
Em entrevista a um jornal
goianiense, a viúva do meu pai comentara ter ouvido “que pessoas ligadas a
Maurício Sampaio estariam procurando Marcus Vinícius […], oferecendo dinheiro”.
Aproveitando a deixa, um dos
advogados de defesa, Ruy Cruvinel Neto, requereu ao 4º Distrito Policial de
Goiânia a instauração de investigação de calúnia por parte de Lorena.
O responsável pelo distrito,
delegado Manoel Borges de Oliveira, esperou alguns dias e mandou seu adjunto,
Everaldo Vogado da Silva, instaurar inquérito.
Então Manoel Borges foi até a
carceragem onde se encontrava Marquinhos e pediu para conversar “informalmente”
com ele.
Sem a presença de advogado, ao
açougueiro foi requisitado assinar termo de depoimento no qual constava a
frase:
“Que não tem conhecimento da
participação de Maurício Sampaio no episódio que resultou na morte de Valério
Luiz”.
Manoel Borges não assinou a
diligência de próprio punho, solicitou que o adjunto assinasse em seu lugar e
repassou tudo à defesa de Maurício.
A partir desse momento, a
estratégia foi esperar as férias do desembargador Itaney.
No dia 30 de abril, início do
descanso do magistrado, foi protocolado o famigerado habeas corpus sob a
justificativa do novo depoimento de Marquinhos.
O desembargador substituto
submeteu-o a julgamento e, por três votos a dois, Sampaio foi solto mais uma
vez.
Com a grande repercussão
negativa, o delegado-geral da Polícia Civil de Goiás afastou Manoel Borges do
4º Distrito Policial de Goiânia e determinou a investigação da sua conduta.
Teve então início outro episódio
folclórico: afirmando-se injustiçado, o delegado convocou coletiva de imprensa
e apresentou um vídeo, a gravação do clandestino depoimento tomado de Marcus Vinícius
na Delegacia Estadual de Homicídios.
Aos repórteres, alegou ter
gravado a ocasião “para se preservar”, pois já antevia “perseguições futuras”.
As imagens, feitas por um celular
e sem o consentimento do depoente, ironicamente serviram de prova tanto contra
o delegado quanto contra o ex-vice do Atlético, pois não corroboraram o termo
de depoimento usado no habeas corpus: não continham a frase que teoricamente
inocentava Maurício Sampaio.
Os corregedores concluíram que
Manoel Borges inseriu informações falsas em documento público (depoimento de
inquérito) visando beneficiar Sampaio.
Até hoje, no entanto, nenhuma
punição administrativa foi aplicada ao delegado, que hoje comanda o 7º Distrito
Policial de Goiânia.
Os pecados do padre
Na véspera do julgamento de um
embargo contra o último habeas corpus concedido a Maurício, um inusitado
encontro no TJ estadual me deixou boquiaberto.
Envolveu um padre muito popular
em Goiânia, Luiz Augusto, que não só visitara Maurício Sampaio na cadeia como
testemunhara em seu favor, relatando as gordas doações oferecidas à paróquia, e
dera até entrevistas apregoando a inocência do réu.
Estava eu visitando os gabinetes
de todos os desembargadores da 1ª Câmara Criminal e entregando memoriais
explicativos sobre como o delegado Manoel Borges, em conluio com a defesa de
Sampaio, os induzira a erro.
Ao chegar a vez da desembargadora
Avelirdes Pinheiro, pediram-me que esperasse na recepção, pois ela estava com
alguém na sala.
Minutos depois, aparecia a
magistrada no corredor, acompanhada do padre Luiz Augusto, para orar com os
servidores.
Ao me avistarem, ficaram brancos.
Num gesto constrangido, o
religioso chamou-me para junto aos outros.
Neguei balançando a cabeça.
Daquela oração eu não
participaria, pois, mandar padre conversar com desembargadora católica
fervorosa um dia antes de ela votar embargos sobre a soltura de um assassino
definitivamente não era obra de Deus.
Ao fim do pai-nosso, Luiz Augusto
e Avelirdes vieram conversar comigo.
Por ironia, o padre é quem tinha
pecados a confessar.
Justificou-se alegando não ter
condições de saber se Maurício é culpado ou inocente.
“Mas em entrevistas o senhor
afiançou a inocência”, respondi, acrescentando que a condição de religioso
conferia credibilidade a tais declarações perante os fiéis.
O pároco prometeu então jamais
tocar no assunto novamente.
Hoje, responde a processo por
receber salário da Assembleia Legislativa goiana como funcionário fantasma,
conforme revelou uma reportagem especial do Fantástico.
Uma canetada, a liberdade e o Facebook
Com Maurício solto, em 27 de maio
iniciaram-se as audiências de instrução.
Eu e dois promotores de justiça
fazíamos as perguntas da acusação.
Do outro lado amontoavam-se
advogados que conversavam na orelha uns dos outros sem parar.
No segundo dia de audiência, 28
de maio, os advogados de Da Silva, Figuerêdo, Urbano e Marquinhos, ancorados no
habeas corpus concedido a Sampaio, pediram a soltura de seus clientes.
O Ministério Público requereu
vista dos autos para se manifestar, mas o juiz negou.
Então, em 30 de maio, um dia
antes de entrar de férias, o juiz Antônio Fernandes de Oliveira revogou todas
as prisões preventivas, numa canetada só.
Critiquei publicamente a decisão,
pois o interrogatório dos réus não estava concluído e um deles, o açougueiro, disse
em seu depoimento ter sido ameaçado de morte por Da Silva.
Com a soltura dos réus, Marcus
Vinícius não compareceu em juízo para ser interrogado. Desapareceu.
Meses mais tarde recebi uma
ligação de uma senhora do Real Conquista, periferia de Goiânia, dando pista do
seu paradeiro.
A sogra do açougueiro possui um
salão de beleza naquele bairro e comentara com clientes que a família estaria
em Portugal.
Como saber com certeza e provar
isso para a Justiça?
Foi quando soube que a esposa de
Marquinhos mantinha uma conta no Facebook.
Entrei no perfil sem grandes
expectativas, mas, acreditem, estava tudo lá: fotos do casal na tranquila
região de Caldas da Rainha.
Uma delas continha até
agradecimentos a Deus pela “segunda chance”.
Imprimi as imagens imediatamente,
enviei à imprensa e pedi nova prisão preventiva.
Sem demora, o juiz Lourival
Machado me atendeu.
O mandado de prisão foi entregue
às autoridades lusitanas e o nome Marcus Vinícius Pereira Xavier, incluído
entre os procurados pela Organização Internacional de Polícia Criminal, a
Interpol.
Em 7 de agosto de 2014, o Serviço
de Estrangeiros e Fronteiras português capturou o fugitivo.
Seguiu-se o processo de
extradição, que só foi finalizado em 28 de novembro de 2014, com a chegada do
açougueiro ao Brasil.
Hoje ele está detido no Complexo
Prisional Odenir Guimarães, em Aparecida de Goiânia, e ainda não se sabe com
que dinheiro transportou a família inteira para a Europa, onde viveram por mais
de um ano.
Ligações também no Judiciário
A cada ano completado desde o
covarde homicídio do meu pai, realizamos uma manifestação pelas ruas de
Goiânia.
No primeiro deles, 5 de julho de
2013, centenas de pessoas ocuparam a Praça Cívica para homenageá-lo e pedir
justiça.
Em 3 de outubro daquele ano,
realizamos na Assembleia Legislativa de Goiás uma audiência pública chamada
“Imprensa por Valério”, exigindo a proteção dos profissionais da imprensa.
Visitamos duas vezes a Secretaria
Nacional de Direitos Humanos, em reuniões com as ministras, além da Associação
Brasileira de Imprensa (ABI) e da Associação Brasileira de Jornalismo
Investigativo (Abraji).
Fizemos, ainda, um pedido pela
federalização do caso, em reunião com o procurador-geral da República.
Participei do 6º Fórum Liberdade
de Imprensa e Democracia, realizado em Brasília, com a presença do Committee to
Protect Journalists (CPJ), que, no mesmo dia, entregou à presidente Dilma
Rousseff um relatório com 12 episódios de jornalistas assassinados no exercício
da profissão desde a sua posse em janeiro de 2011.
Entre as mortes listadas, a do
meu pai.
Tantos esforços de divulgação do
caso foram engendrados em razão de um temor específico: o peso da influência de
Maurício Sampaio no Tribunal de Justiça de Goiás.
Afinal, eram quase 25 anos à
frente de um cartório milionário, o WSampaio, que em 2013 foi o 4º cartório
mais rentável do Brasil, chegando a faturar R$ 5 milhões por mês.
Soube mais sobre os meandros das
ligações do tabelionato ao buscar uma fiscalização do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) daquele ano.
Encontrei graves irregularidades
identificadas no cartório WSampaio, o que me levou a redigir uma Ação Popular
pedindo o afastamento de Sampaio.
Entre elas, pagamento de notas
fiscais frias emitidas por empresas de fachada, algumas abertas por
funcionários do próprio cartório; cobrança de emolumentos acima das tabelas
fixadas pela Corregedoria do Tribunal de Justiça, lesando milhares de
consumidores; registros de documentos em sistema paralelo, fora dos livros
oficiais; e até a assunção de despesas do Atlético Clube Goianiense, segundo
consta no relatório do CNJ.
Mesmo assim, magistrados do TJ de
Goiás mantinham no cargo cartorários interinos, como Maurício Sampaio, passando
por cima das determinações do CNJ.
Num exemplo marcante, uma série
de decisões de um famoso juiz local, Ari Ferreira de Queiroz – que, na TV,
chegou a criticar a prisão preventiva de Maurício Sampaio pelo assassinato –,
concedeu uma espécie de monopólio de registro de veículos ao Cartório WSampaio.
Eis o que aconteceu: o
Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran-GO) estava anotando em seus
registros os novos veículos financiados que saíam às ruas.
Maurício Sampaio, então, ajuizou
ação visando impedir o Detran de realizar tais registros antes que os contratos
de financiamento (alienação fiduciária e arrendamento mercantil) fossem
registrados primeiro nos Tabelionatos de Protesto e Documentos de Goiânia.
O juiz Ari concedeu liminar
determinando que todos os contratos de financiamento de veículos do estado de
Goiás fossem obrigatoriamente registrados em um dos Tabelionatos de Documentos
da Capital.
Na prática, existiam apenas dois,
mas o segundo, por alguma razão, negou-se a fazer os registros.
Como consequência, se alguém
financiasse um carro fosse em Goiânia ou Terezinha de Goiás, extremo norte do
estado, teria de registrar o contrato com o tabelião Maurício Borges Sampaio.
Com essa série de decisões, o
rendimento da serventia multiplicou-se.
Dizem que o dinheiro seria
repartido em propinas, mas nunca consegui informações aprofundadas.
Sei, no entanto, que Sampaio
desenvolveu até um software de comunicação direta com o Detran.
O sistema informava ao órgão
quais contratos já estavam registrados no tabelionato.
Na época, o presidente do Detran
era Edivaldo Cardoso, flagrado pela Polícia Federal em comprometedores diálogos
com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, de quem Sampaio é amigo.
A rede parecia não ter fim.
Finalmente, em junho de 2013, o
Ministério Público propôs uma Ação Civil Pública por ato de improbidade
administrativa, pedindo o afastamento de Maurício e o bloqueio de quase R$ 16
milhões em seus bens.
A esta altura, a liminar de Ari
Queiroz que concedera o monopólio estava suspensa pela presidência do Tribunal
de Justiça e se desenrolavam no CNJ procedimentos tanto contra o suspeito juiz
quanto contra Sampaio.
Não tardou até o cartorário ser
afastado, e o juiz, aposentado compulsoriamente.
A última batalha
Finalmente, em 30 de abril de
2015, Marcus Vinícius, Urbano Malta, Ademá Figuerêdo, Djalma da Silva e
Maurício Sampaio foram mandados a júri popular pela unanimidade do Tribunal de
Justiça de Goiás.
Mas ainda não há data para o
julgamento.
No momento, encontram-se em
tramitação os recursos especiais e extraordinários dos réus para os tribunais
superiores (STJ e STF), última fase antes do júri.
Com exceção de Marquinhos, os
acusados continuam livres e agora utilizam outras estratégias na batalha.
Entristece-me ainda hoje ouvir
pessoas repetindo: “Santo, não era”; ou “Se morreu, alguma coisa fez”.
Esse preconceito foi inflado por
páginas anônimas e perfis fake na internet.
Acusaram meu pai de envolvimento
com mulheres casadas, drogas, prostituição, infantilmente tentando enquadrá-lo
em quaisquer estereótipos sociais que afastassem o apoio popular na nossa luta
por justiça.
Num momento de particular
inspiração para a crueldade, usaram a expressão “Valério Cheira-pó Luiz”.
Em 19 de fevereiro de 2015,
conseguimos decisão liminar na 2ª Vara Cível de Goiânia para tirar do ar uma
das páginas.
Mas, para azar dos detratores,
meu pai, apesar de intempestivo, era testemunha de Jeová desde os 25 anos e
homem de hábitos espartanos.
Além disso, era profissional
renomado, com trajetória conhecida por todos, e filho do maior nome do
jornalismo esportivo de Goiás, Manoel de Oliveira, meu avô, hoje o deputado
estadual mais votado da história.
Não seria fácil estereotipar
Valério Luiz, e não conseguiram.
Ainda assim, é sintomático que,
para conseguirmos o indiciamento, a denúncia e um curso normal de processo,
tenhamos precisado confrontar diretamente militares, um tenente-coronel, um
delegado, dois juízes de direito, setores da imprensa e até um padre.
É surreal como um só homem
conseguiu instrumentalizar tantos agentes públicos a seu favor.
A cooptação de policiais é
especialmente problemática.
Aqui em Goiás é comum as classes
ricas arregimentarem parte da tropa para bicos como seguranças, não raro
pagando mais que a corporação e assim pervertendo as relações normais de
lealdade dos militares no seio social.
“Maurício Sampaio, amigo da
Rotam”, essa era a inscrição de uma camiseta encontrada na sua casa durante o
cumprimento de um mandado de busca e apreensão em 2013 – a Rotam é um
destacamento especializado da Polícia Militar goiana inspirado na Rota
paulista.
E, pra mim, ela simboliza as
bases da nossa sociedade subdesenvolvida: dinheiro e arma.
Lembram-se de que Figuerêdo
chegou ao açougue de Marquinhos em um Fiat Palio azul-escuro?
Pois bem.
Inadvertidamente, Da Silva, em
sua defesa prévia, juntou aos autos um documento restrito do comando ao qual
pertencia (Comando de Missões Especiais – CME) cujo teor discrimina o
contingente e as viaturas descaracterizadas do grupo em 2012, entre as quais
justamente um Palio azul.
Para mim, isso sugere que a
própria estrutura oficial do comando foi usada no crime.
Em janeiro deste ano, Maurício
Sampaio retornou à diretoria do Atlético Clube Goianiense, dessa vez não na
condição de vice-presidente, mas de presidente.
A cerimônia de posse contou com
as presenças de Valdivino de Oliveira e do tenente-coronel Wellington Urzeda,
atualmente comandante de um recém-criado Batalhão de Operações Especiais –
Bope.
Indignada, parte da imprensa
local anunciou um boicote ao clube, fato repercutido nacionalmente.
Há uma ironia nessa história, que
meros comentários sobre futebol tenham atingido um grupo de poder inteiro.
Isso porque, como já disse, o
futebol não é só futebol.
Meu pai nem imaginava a
profundidade das conexões aqui narradas, mas, quando o cartola e agora
ex-cartorário, do alto da soberba, ordenou tão escandaloso assassinato, atraiu
os olhares para si e deixou aparentes esquemas, que por isso ruíram.
Como consentiam em dar tanta
força a um homem só, a ponto de o deixarem se julgar em condições para decidir
sobre vida e morte?
Fiz essa pergunta repetidamente a
mim mesmo, enquanto lembrava do meu pai envolto em flores no caixão.
Em lugares patrimonialistas,
corruptos, dominados por máfias e ranços coronelistas, a segurança individual
existe até não cruzarmos o caminho de algum “coronel”, que, infiltrado nas
instituições, pode neutralizá-las para fazer valer a lei da força.
A Morte Rubra invadira o castelo
da nossa família, era preciso sair, influir no lado de fora: criei uma
associação de apoio a vítimas de assassinato, o Instituto Valério Luiz, e
ingressei numa pós-graduação em Criminologia e Segurança Pública pela
Universidade Federal de Goiás.
Assim segue a nossa luta,
enquanto esperamos a definição de uma data para o júri popular a fim de
obtermos, no caso do meu pai, justiça, e não o acréscimo dos absurdos índices
de impunidade do Brasil quando se trata de jornalistas assassinados.