Fora de casa
As histórias de torcedores nordestinos que fazem dos bares paulistanos
ponto de encontro para matar a saudade da terra e acompanhar seus times do
coração
Por Gil Luis Mendes e Maurício Targino para o Puntero Izquierdo
“Saudade é um parafuso
Que na rosca quando cai,
Só entra se for torcendo,
Porque batendo num vai
E enferrujando dentro
Nem distorcendo num sai”
(Antônio Pereira, poeta e
cantador de Itapetim-PE)
As histórias a seguir falam sobre
uma saudade que é levada no peito, exatamente abaixo do escudo do clube, de
pessoas que deixaram o Nordeste para morar em São Paulo.
Hoje os motivos das mudanças são
bem diferentes de tempos passados, quando homens e mulheres corriam da seca em
busca de uma vida melhor na parte mais pra baixo do mapa.
O que liga essas gerações é o
pertencimento a um lugar, sentimento que permanece inquieto ao passar do tempo.
Saudade boa é saudade matada, reza um dito daquelas bandas.
O futebol e o encontro entre
semelhantes fazem com que a terra natal fique mais perto.
Noventa minutos e alguns amigos
diminuem distâncias e ausências.
A distância é uma ilusão criada por cartógrafos
Saindo do número 489 da Rua
Wizard, dobra à direita, atravessa para o outro lado da Rua Fradique Coutinho
até chegar ao estabelecimento de número 1100.
O percurso de mais ou menos 250
metros não dura três minutos: é a distância que separa Pernambuco da Bahia no
centro do boêmio bairro da Vila Madalena, na Zona Oeste da capital paulista.
Nesse perímetro, ao menos uma vez
por semana, o Nordeste fica mais perto.
Até o clima frio e seco parece
receber toda a umidade das brisas que sopram litoral abaixo.
Os sotaques e as cores ficam mais
familiares.
Lá e em alguns outros pontos de
São Paulo, o individual da cidade, que para muitos é cinza, abre espaço para o
coletivo mais colorido.
Vermelho e branco; vermelho e
preto; preto e branco; vermelho, preto e branco; vermelho, branco e azul.
O primeiro endereço é um recinto
pernambucano, tem nome de iguaria sul-americana e, dependendo do dia da semana,
é ocupado por uma torcida diferente.
Terças e sextas, é pintado de
vermelho e branco, nas quartas e domingos, recebe as duas cores mais o preto.
Em alguns sábados, dependendo da
tabela das séries A e B do Campeonato Brasileiro, é necessário dividir o salão
para receber as torcidas de Santa Cruz e Náutico.
O segundo logradouro é barulhento
e festivo na mesma proporção em que é organizado e planejado.
É lá que os soteropolitanos que
escolheram três cores para torcer se reúnem para matar as saudades de Salvador.
Sim, o Esporte Clube Bahia é o
maior motivo para esses encontros, mas também relembrar músicas de antigos
carnavais faz parecer que a capital baiana não está tão longe.
Há quem por um motivo ou outro
prefira um lugar só seu.
Com identidade própria.
Além de compartilharem das mesmas
cores e dos mesmos mascotes, torcedores de Sport e Vitória não dividem o mesmo
bairro dos seus rivais na capital paulista.
Os baianos escolheram o bairro de
Pinheiros, próximo ao Largo da Batata, tradicional reduto nordestino na Zona Oeste
paulistana.
Os rubro-negros pernambucanos
fincaram bandeira na Bela Vista, região central.
No bar, na estrada, no estádio
São pouco mais de sete da noite
de sexta-feira em São Paulo, e com o horário de verão o sol ainda brilhava
instantes atrás.
Enquanto muitos seguem presos no
escritório à espera do final de semana, dezenas de nativos da Boa Terra lotam o
bar da esquina entre as ruas Aspicuelta e Fradique Coutinho.
Seria apenas mais um encontro
entre os membros da Embaixada do Bahia na capital paulista, mas este é
especial.
Além da rara ocasião de encontro
fora de dia de jogo — que aconteceria na tarde seguinte, em Barueri (SP),
contra o Oeste, pela Série B — é também a primeira confraternização realizada
com o apoio do clube no lugar escolhido pelos torcedores.
“Não somos uma torcida organizada e fazemos questão de deixar isso
claro”, conta o publicitário Paulo Adriano Moreira, o P.A., morador de São
Paulo há sete anos e atual presidente da Embaixada do Bahia.
Minutos antes, um outro sujeito
contara a história de dois integrantes que foram confundidos com membros de uma
organizada do Bahia aliada à do Palmeiras e, por pouco, não levaram uma surra
de corintianos no metrô da Estação da Luz.
“A única coisa que fazemos aqui é
‘comer água’ [gíria para se embriagar], matar saudades e torcer para o Bahia”,
diz o também publicitário Lucas Ferraz, que desembarcou na capital paulista
seis anos antes.
A conversa toda acontece na
calçada. Dentro do bar, só se ouve clássicos da axé music e cantos da torcida
do Bahia, executados por uma banda cujos integrantes se revezam ao microfone e
nos instrumentos.
Um deles é Rubens Moura, cujo
filho Gabriel mudou-se de Salvador para São Paulo há três meses.
“Meu pai tá lá dentro tocando e cantando. Ele diz que veio me visitar,
mas acho que foi só desculpa pra vir ao jogo”, conta Gabriel em meio a
risadas.
“Moro sozinho e esse bar meio que virou minha casa, e essa galera,
minha família.”
No dia seguinte, muitos dos que
foram ao bar não sabem dizer a que horas a festa terminou.
“É capaz de ter gente lá até agora”, diz um deles.
É meio-dia, e uma equipe de TV
faz entrevistas e imagens do grupo, que aumenta na mesma proporção em que latas
e garrafas de cerveja são esvaziadas.
Dois ônibus — chamados de 59 e
88, em alusão aos dois títulos nacionais do Bahia — estão estacionados próximos
ao Museu de Arte de São Paulo à espera dos torcedores que irão a Barueri.
Um sujeito bigodudo e barulhento
chega e é abordado por vários torcedores.
É o segurança Alberto Gomes, o
Beto.
“Vim a São Paulo passear e fui ficando. Já são 12 anos aqui”.
Figura folclórica entre os
tricolores baianos exilados na capital paulista, ele se desculpa por não ter
ido à confraternização, pois havia marcado para ir ao pagode com a esposa.
“Comi tanta água quanto vocês, então tá tudo certo”, diz ele
enquanto abre uma cerveja.
Enquanto os batuques soam alto na
parte traseira do ônibus 59, P.A. e outros integrantes debatem a possibilidade
de passar no hotel onde o time está hospedado.
A intenção é surpreender os
jogadores com um corredor humano até o ônibus que levará o time ao estádio.
O barulho quebra o fator
surpresa.
Os jogadores — e os
hóspedes — escutam tudo de dentro do hotel.
Alguns deles se mostram realmente
tocados com a demonstração de apoio, outros parecem não se importar tanto.
A Arena Barueri está a menos de
dez quilômetros.
O taxista Deusdete não quis
revelar seu sobrenome.
Lá se vão mais de três décadas
desde que deixou a pequena Santaluz, aos 18 anos, rumo a São Paulo.
Lembra com exatidão o dia em que
chegou: 15 de fevereiro de 1985, véspera de sábado de Carnaval.
Duas semanas depois, viu seu
primeiro jogo do Bahia na capital paulista: derrota por 2 x 0 para o
Corinthians no Pacaembu.
“Desde então vou pra tudo que é jogo do Bahêa em São Paulo. Pacaembu,
Morumbi, Canindé… só não fui a Santos”.
Pai de uma filha são-paulina e um
filho palmeirense, não se incomoda com as escolhas da prole.
“Sou um desportista. Respeitaria até se eles fossem Vitória”,
sorri.
A fila para comprar ingresso toma
uns 15 minutos de espera, seguidos de outros 25 para entrar.
O conferente Júnior Braga
acompanhou de perto a construção do estádio, inaugurado em 2007: desde 1994 ele
mora a alguns metros dali.
A bola já está rolando e ele
vocifera contra o 3G, que não atualiza a transmissão em tempo real pelo
celular.
“Se sair gol a gente vai saber”, diz o pedreiro Ailton Soares, que
veio de Diadema (SP), onde mora desde 1998.
“É melhor entrar com o placar em 0 x 0”, diz seu colega de
profissão Enildo Rodrigues, que mora em Cotia (SP) há 14 anos.
“Vai que o Bahia faz 1 x 0 agora e toma o empate na hora que a gente
entrar”, pondera.
O vizinho da Arena Barueri não
conhecia os outros dois.
O recém-formado trio mostra
entrosamento ao lembrar do time bicampeão baiano em 1993–94.
“Com Marcelo, Raudinei e Naldinho não tinha para ninguém”, diz
Júnior, antes de atravessar a catraca e correr rumo às arquibancadas.
O primeiro tempo já está quase na
metade e os minutos não vistos parecem não fazer falta.
Nada de interessante acontece em
campo, ao contrário do setor de visitantes, lotado por quase três mil
tricolores.
A cantoria e a batucada são
constantes.
O apoio, incondicional.
Mas o time do Bahia não ajuda e o
placar imaculado faz justiça ao futebol visto.
Sentado no primeiro degrau da
arquibancada, o vidraceiro André Magalhães é outro a sentir falta do time de
1994.
“Se tivéssemos um Paulo Emílio na armação, um Naldinho, um Marcelo
Ramos no ataque, já estaríamos ganhando o jogo”.
Para André, foi o maior Bahia que
ele viu jogar.
Nascido no bairro da Ribeira, foi
frequentador assíduo da Fonte Nova até 1999, quando se mudou para São Paulo.
Mesmo indo à terra natal pelo
menos a cada dois anos, não foi ao estádio que agora é arena.
“A última vez que pisei na Fonte Nova foi em 96 ou 97, contra a
Portuguesa (N.A. foi em 1996, Bahia 1 x 3 Portuguesa). Engraçado que o primeiro
jogo que vi em São Paulo também foi contra a Portuguesa”, relembra.
“Tinha o Daniel Alves, teve gol daquele atacante que depois jogou no
Ceará… Sérgio Alves”
(N.A. O jogo terminou em 2 x 2).
A despeito de todo o apoio
efusivo da esmagadora maioria do público, foi o Oeste que saiu na frente.
Sem esfriar o ânimo, a torcida
empurrou o time rumo ao empate e seguiu fazendo barulho até o apito final.
A euforia das últimas horas deu
lugar a uma indisfarçável frustração.
“Está vendo esse estádio? Guarde bem cada detalhe. Ano que vem
estaremos aqui novamente”, diz alguém na arquibancada, sugerindo que o time
continuará na segunda divisão por mais uma temporada.
No bar ao lado do estádio,
torcedores do tricolor baiano jogam dominó enquanto a jukebox toca o hino
oficial do Bahia repetidas vezes.
Ao lado do ônibus, um dos torcedores
mostra algumas manchas na pele do atabaque.
“Sabe o que são? Sangue. Sangue que demos pelo time, sangue que esses
caras não deram hoje.
Nem cumprimentar a torcida depois do jogo eles vieram”, lamenta um
torcedor.
“Quer moleza, vai torcer pro Barcelona. Bora, Bahêa, minha porra”,
grita outro.
A toca do Leão
Walfrido Freire Neto está com
virose.
É início de tarde de domingo, e
logo mais o Sport terá uma partida dura contra o líder do Brasileiro, o
Palmeiras.
Ele gostaria que o motivo da falta
de apetite — praticamente não se alimentou nas últimas 24 horas — fosse o
nervosismo pré-jogo.
Quando o assunto é Sport Club do
Recife, não é de fraquejar.
Mas este jogo, disputado a poucos
metros do apartamento onde mora e cujo estádio pode ser visto da janela, parece
exigir mais do que o da semana anterior, contra o Vitória.
Walfrido fez uma viagem-relâmpago
ao Recife apenas para assistir à partida, na qual puxou o grito de guerra do
time no meio das arquibancadas.
“Mesmo morando há mais de dez anos em São Paulo, Recife sempre parece
estar mais perto do que a esquina de minha rua”, diz ele.
A torcida que fundou seis anos
antes — e que se tornou o primeiro consulado oficial do clube — ajuda a matar a
saudade da capital pernambucana.
De tanto se encontrarem no setor
de visitantes dos estádios paulistanos quando o Sport jogava na cidade, Walfrido
e outros torcedores perceberam que seria interessante se reunir para ver também
partidas transmitidas pela TV.
Assim, a vitória magra por 1 x 0
sobre o América-MG, pela Série B, na noite de 31 de agosto de 2010, marcou a
fundação da Leões de Sampa.
A aproximação entre torcedores,
que em sua maioria não se conheciam no Recife, facilitou a organização de
viagens para jogos do Sport em cidades próximas — ou nem tanto — da capital
paulista.
“Fui de ônibus daqui até o Paraguai por causa desse time”, conta
Gilmar Cândido, apelidado de Nego Doce, que mora em São Paulo desde 2003.
“Assim que o time se classificou para enfrentar o Libertad na Copa
Sul-Americana (de 2013) fui logo pedindo folga no trabalho”, diz.
“Não quis nem saber se algum conhecido iria junto.”
Algumas das histórias de Nego
Doce se tornaram folclóricas na Leões de Sampa.
Certa vez foi de São Paulo a
Curitiba sem checar a previsão do tempo para a capital paranaense.
“Como eu ia só assistir ao jogo e voltar logo depois, fui só com a roupa
do corpo e a carteira”, conta.
Por roupa do corpo entenda-se uma
camisa regata no mínimo inadequada para encarar a temperatura abaixo de dez
graus naquela tarde.
No bar que atualmente serve de
sede para a Leões de Sampa, no bairro da Bela Vista, é fácil perceber que o
jogo do Sport está para começar.
Não apenas pelas camisas
rubro-negras que começam a chegar por volta de uma ou duas horas antes do apito
inicial.
Há todo um ritual de preparação
do ambiente.
Bandeiras, faixas e toalhas de
mesa nas cores vermelha e preta deixam o lugar com cara de Ilha do Retiro.
O cardápio de pratos nordestinos,
a cerveja gelada e os instrumentos musicais completam a atmosfera, que volta e
meia causa um certo espanto aos frequentadores “comuns”.
O jogo da noite é contra o
Vitória, adversário direto na luta contra o rebaixamento.
A tensão que parecia ter se
dissipado com o gol de Diego Souza aos cinco minutos de jogo retorna com toda a
intensidade em dois pênaltis contra o Sport marcados em um curto intervalo de
tempo.
Ambos desperdiçados pela equipe
baiana.
Ao contrário do que se poderia
sugerir, o nervosismo não dá trégua.
Alguns lidam com isso esvaziando
garrafas de cerveja em ritmo acelerado.
Outros se arriscam a puxar
algumas canções de incentivo ao time — algumas compostas pelos próprios
integrantes da Leões de Sampa — acompanhados pelos instrumentos que se revezam
entre aqueles com algum talento musical e outros nem tanto.
Há quem prefira rezar para
encarar o tempo que parece não passar.
Mas passa.
O juiz apita o fim do jogo.
O Sport segue fora da zona de
rebaixamento.
Uma semana depois, o exorbitante
preço do ingresso no Allianz Arena atrai menos torcedores do Sport do que o
esperado.
O espectro da violência entre
torcidas também parece afugentar os visitantes.
Isso é percebido logo na entrada,
quando um oficial da Polícia Militar pede para que todos entrem logo, pois “se eles (a torcida do Palmeiras) resolverem
vir para cima de vocês a gente (a PM) não pode fazer milagre”.
Dentro do estádio, a empolgação
vista no bar é quase inexistente.
Cadeiras estreitas, fiscais que
pedem para que os torcedores assistam sentados e toda a sorte de restrições
tiram a magia outrora proporcionada por um estádio de futebol.
Ao final, o placar desfavorável
de 2 x 1 é menos incômodo do que as falhas de arbitragem, cruciais para o
resultado.
Mas a maior derrota parece mesmo
ser a impossibilidade de fazer no estádio uma festa semelhante à que o bar na
Bela Vista recebe toda vez que o Sport joga.
Itinerantes de vermelho e branco
Muitos do que vestem vermelho e
branco no bar na Vila Madalena no início da noite de sábado ainda não moravam
em São Paulo quando um grupo de torcedores do Clube Náutico Capibaribe decidiu
formar a Confraria Timbus da Garoa, após um empate sem gols contra o Santo
André em novembro de 2011.
O resultado garantiu
matematicamente o acesso da equipe à Série A no ano seguinte.
O economista Saulo Moraes havia
chegado a São Paulo pouco tempo antes e estava no jogo que marcou o começo da
confraria.
“No início, assistíamos aos jogos em um bar lá no Itaim, mas ele não
abria aos domingos, o que era um problema nos jogos do Pernambucano e da Série
A”, conta.
“Passamos então a assistir na casa de Bruno [Fernandes, empresário e
uma espécie de “presidente” da Confraria] ou no bar dele em Higienópolis”.
“Conta logo que você faz campanha contra esse bar”, interrompe em
meio a risos a administradora Marina Correia, moradora de São Paulo há dois
anos e meio.
Saulo explica, também rindo.
“Não é campanha contra, é porque o outro bar ficava na esquina da rua
que eu moro. Pra vir aqui é quase como ir à Arena Pernambuco”, emenda.
A saída do estádio que recebeu
quatro partidas da Copa do Mundo de 2014 e o retorno aos Aflitos é uma
unanimidade entre os cerca de 25 torcedores distribuídos pelas mesas.
Faz pouco mais de seis meses que
eles decidiram se reunir no Empanadas Bar, mesmo local em que os torcedores do
rival Santa Cruz já veem as partidas do clube há mais tempo.
“Não tivemos choque de horários este ano, nem teremos no ano que vem,
já que vamos subir para a A e eles vão cair para a B”, ironiza o
administrador Rafael Romanguera, que se mudou do Recife para a capital paulista
em 2014 e tornou-se uma espécie de “primeiro-ministro” da Confraria Timbus da
Garoa.
“E se levarem a Coisa [apelido do Sport entre os rivais pernambucanos]
junto vai ser melhor ainda”.
Mas para seguir pensando na volta
à Série A como querem todos e no troféu da Série B como profetiza Romanguera, o
Náutico precisa vencer o alvinegro cearense.
A retranca e a catimba do Vozão,
no entanto, são adversários duros.
Em um primeiro tempo de poucas
chances, o zero não sai do placar.
O panorama pouco muda na etapa
final, apesar de o time pernambucano criar mais chances.
Em um curto espaço de tempo, dois
gritos de gol são frustrados pela marcação de impedimento.
“E a regra que diz que não pode marcar dois impedimentos em menos de
cinco minutos? Juiz ladrão!”, grita Marina com um misto de humor e
nervosismo.
“Toda vez que Marina vem o Náutico não ganha”, afirma outro na
mesa.
O Ceará se fecha no campo de
defesa, e o relógio já marca os acréscimos de jogo.
Ninguém se atreve a sair do bar
ou a mover um músculo.
Uma falta no lado direito do
ataque transforma o nervosismo em um último fio de esperança.
A bola é alçada na área, e o
zagueiro Igor Rabello desvia para as redes.
O grito de gol toma conta do bar
e dos arredores.
Sem que ninguém tenha pedido,
cinco cervejas são servidas de uma só vez à mesa.
Ninguém entende direito de onde
vieram até que descobrem ser um presente de Wolfgang Haag, diretor-presidente
da divisão brasileira de um laboratório de veterinária.
Haag passava pela frente do bar
com a esposa no exato instante em que saiu o gol.
Apaixonado por futebol, o alemão
que se mudou para o Brasil em 2015 chegou a jogar nas divisões de base do Colônia.
“Vi essa festa e tive que parar e aproveitar um pouco dela”, diz
ele em português.
“Agora você tem um time para torcer no Brasil”, dizem os eufóricos
alvirrubros enquanto entregam a bandeira do Náutico para o mais novo membro da
torcida.
Ainda estamos juntos
Raul Holanda é a única pessoa no
Empanadas Bar com uma camisa do Santa Cruz.
Senta, pede uma cerveja e conta
os minutos esperando a chegada de algum outro tricolor.
O segundo torcedor a chegar no
recinto não usa o uniforme coral, mas sua camiseta tem as três cores do clube
pernambucano.
O terceiro e último componente do
grupo a chegar naquela noite de quarta-feira é Fábio Trummer.
Ele está vestido todo de branco.
Marquinhos, garçom e conterrâneo
do trio, não estranha o baixo quorum.
Já fazia tempo que, pouco a
pouco, os torcedores do Santinha estavam diminuindo gradativamente a frequência
no bar.
Puxou pela memória e lembrou-se
que há menos de um ano, no final de uma noite de sábado, um ônibus parava em
frente ao estabelecimento e cerca de 30 ensandecidos tricolores invadiam o
local enrolados em bandeiras comemorando o retorno à Série A do Campeonato
Brasileiro, voltando da cidade de Itu (SP), onde o time havia vencido o Mogi
Mirim por 3 a 0, encerrando um ciclo que durou dez anos e teve duras passagens
por todas as divisões do futebol nacional.
Encostado no balcão e olhando
para mesa com apenas três copos, o garçom, que também torce para o Santa Cruz,
mas veste a camisa do Náutico nos dias de jogos do alvirrubro no mesmo local,
teve outras recordações.
No começo do ano, era complicado
arrumar o salão para receber mais de uma dezena de torcedores e, ao passar das
semanas, aquele número só aumentava.
Por muitas vezes, torcedores de
clubes paulistas se uniam aos santacruzenses por empatia pelo time e pela
torcida. Em dois domingos consecutivos do mês de maio, dois títulos.
Os gritos, a confiança, a alegria
e as bandeiras foram sumindo no segundo semestre.
“Eu vim porque estava com saudades de vocês, não pela porcaria desse
time”, disse um dos presentes na mesa com quatro cadeiras e um lugar vazio.
“Eu não abandonei o time na Série D, vou abandonar agora que está na A”,
retrucou Raul.
Ao saber que o encontro
resultaria nesse texto, Fábio foi enfático:
“Pode colocar aí, a gente vem ver jogo no bar, vai para estádio, como
visitante, levar chuva na arquibancada, pega um monte de vírus no computador
com os links piratas, quando o jogo não passa na TV, mas ver o time jogar que é
bom, até agora nada”.
Durante a partida contra o
Botafogo, que deu a lanterna da competição para o time pernambucano, foram
raras as jogadas que prenderam a atenção do grupo ali reunido.
Enquanto Keno tentava pela quarta
vez puxar um contra-ataque pelo lado esquerdo do ataque tricolor, o assunto era
erro de estratégia e de planejamento da diretoria.
Quando Uillian Correia perdia
mais uma bola na intermediária, a ruindade de Doriva era amaldiçoada pelos
três.
Com o meio campo insistindo em
modorrentas trocas de passes, era mais vantagem planejar como fariam para
assistir ao show da Banda Eddie, grupo liderado por Trummer.
Na falta do Arruda, segundo maior
orgulho dos corais perdendo apenas para a própria torcida, a parte radicada em
São Paulo tenta matar a saudade do concreto das arquibancadas em cadeiras de
madeira.
Há um ano eles se reúnem
semanalmente no Empanadas: não dão nome ao grupo, não têm embaixada, mas podem
se considerar uma torcida organizada, no sentido mais romântico do termo.
Talvez nem seja a intenção ser
algo tão bem estruturado como é feito por torcidas rivais ou ter algum apoio da
diretoria do clube.
Se planejar para ir ao estádio
juntos quando o clube vai à cidade, tomar cerveja e voltar a ter alguns hábitos
comuns de sua terra já deixam o grupo pra lá de satisfeito.
Existe um ar de desconfiança
entre os garçons do Empanadas, todos eles nordestinos.
Não falam abertamente, mas se
entreolham e ressaltam o semblante de dúvida.
Olham para as três cadeiras
ocupadas, que um dia foram trinta, e ficam a se perguntar por quanto tempo os
torcedores do Santa Cruz vão permanecer frequentando o bar que tem nome de
iguaria sul-americana e nenhum sotaque portenho.
Talvez eles não saibam que teimosia
e perseverança são qualidades que se misturam e viram uma característica
própria da torcida do Santa Cruz.
Eles já fizeram de tudo para
acompanhar o time, como garimpar rádios pela internet para conseguir ouvir uma
partida da Série C no Acre.
Salvador é quase no Largo da Batata
Em 1983, Raimundo Rodrigues e
Marcos Gabiza estavam no mesmo barco.
Um remava e outro dava a direção
para qual caminho a embarcação deveria seguir.
Juntos levantaram a taça de
campeão baiano de remo defendendo as cores do clube que amam.
Trinta e três anos depois, não
mais dentro da água, mas no Bar Castelo de Viana, em São Paulo, eles voltam a
estar juntos graças ao Esporte Clube Vitória.
Acompanhados por mais de 20
pessoas trajadas de vermelho e preto, eles riem, se abraçam, bebem e aguardam
pelo início de mais uma partida do rubro-negro no Campeonato Brasileiro.
Naquele domingo, a esquina da Rua
dos Pinheiros com a Bianchi Bertoldi lembrava Salvador.
O frio, que por cinco meses era
constante nos dias paulistanos, foi embora dando lugar a uma temperatura
semelhante à que faz na maior parte do ano na cidade do Barradão.
Em frente à TV mal dá para ouvir
o que narrador e comentarista dizem.
Pouco importa o que eles falam;
todos ali presentes sabem que a situação do time na competição não é das
melhores.
A luta para ficar longe da zona
de rebaixamento e permanecer na Série A faz parte da rotina há algum tempo.
Eram comuns, nas conversas, as
lembranças dos dois pênaltis consecutivos perdidos por dois jogadores diferentes
na partida anterior contra o Sport.
Estava difícil, mas o retrospecto
negativo da equipe não alterou a rotina da Vitória Sampa em dias de jogos.
O grupo foi criado em 2015 com a
intenção de organizar os torcedores do rubro-negro baiano na capital paulista.
Boa parte dos integrantes se
encontrava apenas nos dias em que o time atuava em São Paulo.
Conversavam algo sobre a partida
em questão e não passavam disso.
Até o dia em que Raimundo,
chamado por todos de Rai, teve a inciativa de distribuir nas arquibancadas um
convite para quem quisesse entrar em um grupo do WhatsApp.
Hoje, mais de 200 pessoas fazem
parte desse grupo e metade pertence à Vitória Sampa.
A reunião, além de deixar mais
próxima uma saudosa Bahia, serve também para outras finalidades.
“Nosso grupo não se reúne apenas para torcer. Fazemos ações sociais,
por exemplo, visitando recentemente uma creche, onde distribuímos mantimentos.
Quem colaborou na campanha hoje vai participar de um sorteio para ganhar uma
camisa do time”, explica Rai.
Há 26 anos, Ademilton Ramos
deixou sua terra natal para morar no Sudeste.
Se hoje grande parte dos
torcedores que não podem acompanhar seus times de perto por morarem em outros
locais não encontram tanta dificuldade para ter notícias do seu time graças à
internet e à TV a cabo, o mesmo não ocorria no início da década de 1990.
“Quando queria saber como andava o Vitória tinha que ligar para casa, e
os parentes me contavam as novidades. Depois passei a assinar a Placar que
mensalmente soltava umas trinta palavras para falar sobre o Vitória”,
lembra Ademilton largando o copo no balcão e com os olhos fixos na tela.
Era o final de primeiro tempo, e
o Cruzeiro vencia os donos da casa por 1 a 0.
Para cortar o clima de tensão e
silêncio do bar, Marcos Gabiza gritava o seu bordão já conhecido pelos outros
torcedores.
“Me apoie!”
Depois do berro, repetido por
alguns, eram entoadas as mesmas músicas que também reverberavam no Barradão.
O estádio localizado no bairro de
Canabrava ganhava uma extensão em plena Zona Oeste de São Paulo.
Os cânticos faziam Carlos Eduardo
Batista, em sua cadeira de rodas, lembrar dos tempos que frequentava as
arquibancadas em Salvador.
“O Barradão faz muita falta. A gente se junta para ver o jogo aqui, mas
é claro que não é a mesma coisa.”
No intervalo do jogo, o clima era
de revolta.
Se a diretoria do clube, que não
oferece nenhum tipo de apoio ao grupo de torcedores que se reúne em São Paulo,
atravessasse as portas do ambiente naquele momento, seria execrada.
Boa parte do time também não foi
poupado.
Para aliviar a raiva trazida nos
primeiros 45 minutos de partida, só com um gole de cerveja gelada.
E foram muitos.
Os piores impropérios contra os
jogadores e os que administram o clube estavam guardados para o final do jogo.
Grande parte da ira rubro-negra
foi causada, além da derrota, por uma única jogada.
Pênalti para o Vitória. Cárdenas
põe a bola em cima da marca e toma distância.
Em São Paulo, com os olhos
cerrados por trás dos óculos de grau, Davi Conceição põe as mãos na cabeça.
Kieza se posiciona ao lado da
grande área e fica de joelhos.
Ademilton repete o gesto do
camisa 9 e se posta no chão.
Pela terceira vez, com três
jogadores diferentes, a mesma cena.
Fim de jogo.
Algumas cabeças baixas, outros
conformados que, até o final do campeonato, toda partida terá o mesmo
sofrimento e a certeza de que a Vitória Sampa estará junta e que o Castelo de
Viana será um pedaço de Salvador todas as vezes que o rubro-negro jogar.
Melhor sozinho em um estádio do que acompanhado na frente da TV
Nem em seus piores sonhos Paulo
Barbosa poderia prever que testemunharia seu amado time sofrer uma goleada
vexatória.
Os 4 a 0 do primeiro jogo da
semifinal da Série C contra o Guarani era mais uma das tantas alegrias que o
ABC lhe proporcionou em 2016.
Campeão potiguar, acesso
garantido para a segunda divisão no próximo ano e rebaixamento do rival para a
Série D.
A iminente classificação para a
final do campeonato não permitia o sorriso sair do rosto.
Faltavam poucos minutos para que
domingo se tornasse segunda-feira, e Paulo, incrédulo, via o placar registrar
que seu time, do Rio Grande do Norte, fora eliminado da competição após perder
por 6 a 0.
Se fosse no Nordeste e o jogo em
questão fosse uma partida de dominó, o resultado seria chamado de “buchuda”.
No setor de visitantes do Brinco
de Ouro da Princesa, ele pôde compartilhar toda a sua perplexidade com os
poucos abecedistas que dividiam com ele a arquibancada.
Paulo é um torcedor solitário
que, por vezes, é obrigado a fazer sua peregrinação ao templo sagrado do
Frasqueirão, em Natal.
Os quase três mil quilômetros de
distância que separam São Paulo de Natal são recompensados por poder estar ao
lado dos seus.
Na capital paulista, isso não é
possível.
Sem haver uma organização entre
os alvinegros natalenses, o jeito é se virar sozinho para acompanhar a saga do
ABC.
Por conhecer seu enérgico
temperamento e as reações mais primitivas que o futebol provoca nas pessoas,
Paulo confessa que, se não for em estádio, prefere estar sozinho em frente a um
aparelho de televisão.
“Eu particularmente não gosto de assistir jogo em casa ou em bares com
outras pessoas porque eu fico nervoso e não gosto de me distrair com outras
coisas que não seja a partida”.
Segundo Paulo, já houve
tentativas de reunir os torcedores abecedistas em São Paulo após alguns
contatos feitos através de grupos do Facebook, mas o evento não se repetiu
muitas vezes durante os três anos e meio que o estudante reside na capital
paulista.
O surgimento do canal Esporte
Interativo e as transmissões feitas pela TV Brasil facilitaram a vida dos
torcedores das últimas divisões do Campeonato Brasileiro e também daqueles que
não têm o estadual mostrado em TV aberta.
Quando nenhum dos jogos é transmitido
pela televisão, o jeito é apelar para links das rádios potiguares.
Para uma pessoa que é viciada em
concreto de arquibancada, a palidez e frieza de uma transmissão pela TV é um
martírio, por isso Paulo não mede esforços para ver o ABC de corpo presente.
Belo Horizonte, Ribeirão Preto,
Campinas, Salvador; o potiguar marcou presença em todos esses lugares correndo
atrás do seu time.
Junto com o time ele sabe que
nunca estará sozinho.