Que riqueza?
Quatro em cada cinco jogadores de
futebol no Brasil ganham até R$ 1.000
Salários acima de R$ 50.000
existem só para 0,8% – no país do futebol, atletas ganham menos do que
serventes de obras, catadores de lixo e tratadores de porcos
Por Rodrigo Capelo
Barcelona no ataque, três contra
dois.
O espanhol Pedro domina na meia
lua da grande área da Juventus e toca para Neymar.
Toque de esquerda para ajeitar a
bola, chute com a mesma perna no contrapé do veterano Buffon.
O placar em 3 a 1, com o gol nos
acréscimos, dá ao Barcelona o quinto título da Liga dos Campeões.
É a consagração do brasileiro,
artilheiro da competição ao lado de Messi e Cristiano Ronaldo, com quem
formaria mais para frente, em terceiro na Bola de Ouro, o trio de melhores
jogadores do mundo em 2015.
A rápida ascensão foi para lá de
lucrativa.
Aos 24 anos, Neymar ganha do
clube só em salários, por mês, algo em torno de € 900 mil.
São R$ 4 milhões no câmbio atual.
Fora outros milhões em acordos
publicitários que mais do que dobram a remuneração.
Mas esta não é uma reportagem
sobre Neymar.
Esta é a história da fábrica de
ilusões do futebol brasileiro que se inspira em figuras como ele.
Jogador de futebol “de verdade”
ganha menos do que servente de obras.
Não é metáfora, nem exagero.
A diretoria de registro e
transferência da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) modernizou sistemas e
pôde, pela primeira vez, diagnosticar com mais precisão o estado de saúde do
futebol brasileiro.
E ele está doente.
Ao todo, há registrados 28.203
atletas profissionais no Brasil.
Deles, 23.238 ganhavam até R$
1.000,00 mensais em 2015.
O servente, segundo o Ministério
do Trabalho, teve salário médio inicial de R$ 1.000,17.
Não só ele.
Ganham mais do que 82,4% dos
jogadores de futebol brasileiros também o ascensorista, o catador de material
reciclável, o chapeleiro de senhoras, o garçom e o tratador de porcos.
Há, claro, quem ganhe mais do que
o diretor de produtos bancários, profissional com salário médio inicial mais
alto do país segundo o ministério, que chega à empresa com R$ 30.394,85
mensais.
Existem 226 jogadores de futebol em
solo brasileiro com contracheques acima R$ 50.000,01.
Ora, ora, então esses atletas
faturam pelo menos o dobro do que o banqueiro, provavelmente pós-graduado e com
currículo de três páginas, às vezes sem nem terem terminado o ensino médio.
É verdade.
Só que eles representam 0,8% de
todos os profissionais desta modalidade.
São a exceção.
Só um em cada centena ganha
efetivamente mais do que um banqueiro.
Na verdade, você acha que futebol
paga salários obscenos porque só esses jogadores chegam à mídia – só jogos
deles em grandes clubes são televisionados, só eles aparecem em programas, só
fofocas sobre carrões, mulheres e “parças” deles ganham repercussão.
A desigualdade entre a elite e a
larga base da pirâmide também existe em outros países.
Na Inglaterra, números da
Associação de Futebolistas Profissionais (PFA, em inglês) obtidos pela Sporting
Intelligence mostram que, em 2009/2010, um jogador da Premier League, a
primeira divisão, ganhava média de £ 96.863 por mês.
Um da quarta divisão, £ 3.237
mensais, ou 3,3% do que fatura o colega mais rico.
A razão é a mesma: no Brasil e na
Inglaterra os clubes do topo dispararam em arrecadação depois que valorizaram
contratos de televisão e patrocínio, reformaram estádios e criaram programas de
associação.
Os times de baixo continuam sem
ter acesso a essas fontes de receita.
Os mercados se comportam da mesma
maneira.
O que nos difere é que os pobres
do Brasil são mais pobres do que os da Inglaterra.
E, também, que os britânicos,
divididos em um sistema de ligas que passa da décima divisão, jogam o ano todo.
A realidade do jogador invisível
piora consideravelmente quando se acrescenta outro dado da CBF sobre um termo
que assusta qualquer brasileiro: desemprego.
Dos 28.203 atletas profissionais
que tinham contrato assinado em 2015, somente 11.571 chegaram a janeiro de 2016
com contrato ativo.
Quer dizer que 59% dos jogadores,
seis em cada dez, ficaram desempregados no decorrer da temporada.
A taxa de desemprego para todo o
país, que bota medo no governo de Dilma Rousseff, está na casa dos 9%.
Como tanta gente pôde ficar sem
clube em tão pouco tempo?
Houve 7.973 rescisões de
contratos, equivalentes a 48% de todos os jogadores que perderam o emprego na
temporada.
Outros 52% são de pessoas cujos
contratos foram feitos para acabar antes do fim do ano mesmo.
Aí entra uma das justificativas
para salário baixo e desemprego alto: falta calendário.
A maioria dos clubes contrata em
dezembro, funciona de janeiro a abril, durante campeonatos estaduais, e fecha
as portas durante todo o restante da temporada.
Se não tem jogo, não entra
dinheiro, e aí não tem jeito.
Todo mundo vai para a rua se
aventurar em outras profissões para botar comida na mesa.
A maioria daqueles 16.632
jogadores de futebol que perderam o emprego no decorrer de 2015 tentou
encontrar trabalho compatível com seu nível de instrução.
Talvez alguns tenham virado
serventes de obras, catadores de materiais recicláveis e garçons, profissões
que pagam tanto quanto o futebol, mas não têm o mesmo apelo emocional na cabeça
do atleta.
Por que alguém sonha em ser
jogador de futebol no Brasil?
Desinformação.
Reprodução de clichês.
A ideia de virar um Neymar e
enriquecer da noite para o dia, estatisticamente restrita a 0,8% dos jogadores
brasileiros, faz com insistam na ilusão do futebol.
Um comentário:
Fernando, o que vou comentar talvez não mude a análise que está posta. Claro que salários milionários ficaram para poucos jogadores. Por outro lado, a análise baseada em contratos registrados na CBF também é imprecisa. Muita coisa é paga "por fora" a começas pelos próprios salários, mas também premiações, direito de imagem (que é para poucos, eu sei) e os tais "bichos". Também há o interesse dos clubes de "mascarar" reais salários para recolher menos INSS e tributos.
Postar um comentário