terça-feira, julho 28, 2020

Como a gravidez de jogadoras de futebol tem sido tratada no mundo...

Imagem: Glamour Imagens

Como a gravidez de jogadoras de futebol tem sido tratada no mundo

Por Marcus Arboés/Universidade do Esporte

Recentemente, a atacante Cristiane, do São Paulo e da Seleção Brasileira, anunciou o congelamento dos óvulos, planejando uma gravidez futura, após a aposentadoria, em conjunto com a sua noiva.

Ela não é a primeira jogadora a tomar a decisão de ser mãe apenas após pendurar as chuteiras, e isso traz à tona uma questão que faz parte do futebol feminino e que deve ser lembrada e observada com atenção: a gravidez de atletas.

Em diversos esportes, desde os com maiores investimentos aos de menor visibilidade, existem inconsistências e muitas atletas acabam prejudicadas por exercerem a escolha de ser mãe.

Isso não é diferente no futebol, seja pela maneira como essas jogadoras são enxergadas ou por questões trabalhistas.

Os contratos de mulheres, futebolistas ou de quaisquer profissões, em muitos países, são discutidos e atacados devido à possibilidade de gravidez.

No caso de esportistas, não só os vínculos empregatícios como os de patrocínio podem ser afetados.

Apesar de ser uma questão que nem sempre vem à tona, é necessário sempre observar de que maneira as diferentes culturas e legislações atuam em relação à gravidez de jogadoras de futebol e qualquer outro direito, no intuito de que a modalidade evolua e alcance alguma igualdade futura com o futebol masculino.

Qual é o papel da FIFA?

Antes de apresentar e levantar qualquer discussão sobre a maneira com a qual os países e as federações lidam com essas situações, é preciso entender de que modo a entidade internacional responsável pelo futebol as trata.

A FIFA possui um sistema educativo chamado “FIFA Medical Network”, em que há publicações de cursos relacionados à saúde.

Dentre esses, há um sobre saúde de atletas mulheres, que possui três lições relacionadas à gravidez.

Assim como em diversos outros campos do esporte, o posicionamento é aberto, com diretrizes voltadas a sugestões que possam não ferir a liberdade individual de atletas, ainda que atuando de forma passiva, já que cada país pertencente ao núcleo da FIFA possui a sua legislação e a sua visão sobre esses casos.

Basicamente, se considera que a decisão de continuar jogando (ou não) futebol de alto nível é da jogadora, desde que ela esteja ciente dos riscos possíveis.

A sugestão dos autores é de que, caso opte por continuar jogando, as atividades nutricionais devem ser acompanhadas com zelo, assim como ter observação obstétrica.

Além da possibilidade óbvia de um trauma, são listados os aspectos do desempenho de uma futebolista que podem ser afetados pela gravidez:

• A capacidade de mudança de direção é reduzida;
• Pode aumentar o risco de lesões;
• A náusea e a fadiga da gravidez podem reduzir ou anular o prazer do exercício;
• A anemia fisiológica pode prejudicar a resistência.

Na mesma lição, quando o texto trata das atividades pós-parto, há apenas uma análise crítica da falta de coesão nas diretrizes desses exercícios.

Ou seja, os casos de gravidez são tratados de forma individual, de lugar para lugar, de clube para clube, já que há uma inconsistência entre as referências de pesquisa.

Escolha da jogadora ou imposição do mercado?

É ideal e positivo crer que a escolha de continuar jogando seja realmente das jogadoras.

Muitas atletas, que desejam ser mães, no entanto, não têm tanto poder de escolha e acabam postergando o sonho, para que ele não interfira na carreira.

Isso é compreensível, já que são nove meses longe das atividades — num esporte em que as carreiras são curtas —, ou com os riscos acima citados, além do período de readaptação pós-parto.

E, ainda, por cima, existem as questões contratuais e legislativas, que acabam sendo um problema para elas.

Muitos países, federações e clubes, ainda atuam de maneira retrógrada em relação a isso, mas também é importante entendermos de que forma a comunidade do futebol recebe a gravidez das jogadoras.

Ainda que seja uma questão pessoal, existem interferências diretas da comunidade na vida profissional delas.

Diante desses pilares, seguirão aqui observações de exemplos de diferentes países e como cada um deles lida com essas questões, citando casos de jogadoras, clubes e organizações.

No Brasil

Quando falamos de gravidez no futebol brasileiro, já nos lembramos do tão repercutido caso da lateral-esquerda Tamires, do Corinthians e da seleção.

Mãe aos 21 anos, ela teve que parar de jogar futebol duas vezes — uma por causa da gravidez, outra para cuidar do filho.

No entanto, sua inspiradora trajetória é isolada, não à toa, era a única mãe entre as 23 atletas que disputaram o último Mundial.

A própria Tamires entende que a sorte dela foi ter sido mãe ainda muito jovem, para que pudesse ter a chance de voltar a jogar futebol e, depois dos 30 anos, chegar ao auge da carreira para disputar uma Copa do Mundo.

Além disso, há outra singularidade no caso dela: o fato de o marido ter assumido as maiores responsabilidades com o filho, enquanto ela se dedicava à carreira.

Na realidade das jogadoras brasileiras, existem outros padrões de estrutura familiar em que, muitas vezes, isso não é possível.

Apesar de ser comprovado por especialistas que uma atleta pode recuperar o bom rendimento após a gravidez, ainda há o medo do desemprego.

No Brasil, a legislação assegura que não haja rescisão contratual em casos de gravidez, mas isso não diminui o receio das atletas.

Muitos contratos são de curto prazo e só estipulam ajudas de custo e ainda existe o problema da profissionalização do futebol feminino no país.

Essa é uma luta recente da categoria no nosso país e no mundo todo.

Muitas jogadoras que vivem do futebol estão à mercê do amadorismo e até precisam de uma profissão secundária, ou seja, não possuem sequer carteira assinada.

As agremiações, recentemente começaram a agir para fazer o futebol feminino crescer no país, e podemos ver como os brasileiros aderiram à modalidade quando recordes de audiência foram batidos ao ver a seleção feminina jogar mundiais e olimpíadas — e isso é ótimo —, mas não anula a baixa visibilidade/público do esporte fora de eventos maiores.

Isso existe devido ao preconceito estrutural que há com a modalidade, seja por retorno financeiro ou por um aspecto cultural machista ainda enraizado no brasileiro.

Se existe preconceito com a modalidade por si só, imagine que uma jogadora, num cenário ideal em que o clube renova seu contrato, engravida.

Como os torcedores receberiam a informação?

Guardadas as devidas proporções, vale o paralelo com o futebol masculino, neste caso, quando um atleta machucado permanece recebendo seu salário integral enquanto está no departamento médico e a torcida cobra produtividade.

Aqui, a comunidade do futebol já não se importa muito com a realidade das atletas, imagine a de uma atleta grávida.

Nos Estados Unidos

Se no Brasil enfrentamos todos esses problemas, os Estados Unidos, apesar de também existir parte preconceituosa na sociedade, parecem estar alcançando um cenário ideal.

Ainda que não exista igualdade salarial e que isso tenha sido discutido amplamente, inclusive como problema global na modalidade, as coisas parecem estar indo bem.

A seleção foi campeã mundial e detém a hegemonia no futebol feminino, o esporte se populariza a cada temporada, as atletas possuem maior voz e visibilidade, ainda que várias conquistas não tenham sido alcançadas no âmbito da igualdade.

Se observarmos todos os pontos, talvez o mais preocupante seja o dos riscos ou a questão do encurtamento da carreira.

Podemos utilizar vários exemplos de jogadoras cujas situações foram bem mais práticas, mas não necessariamente fáceis, até pela realidade do futebol local.

A craque Alex Morgan (foto), da seleção americana e do Orlando Pride, foi mãe pela primeira vez há pouco mais de um mês.

Antes disso, ela treinou até o sétimo mês de gestação, ainda que em atividades com menos exposição ao risco.

Sendo uma figura carismática, ela estampou capa de revista durante a gestação e não teve problemas com a patrocinadora.

A questão do patrocínio, especificamente, no caso dela, da Nike, é algo a se ressaltar.

Antigamente, algumas atletas acabavam não atingindo as metas de rendimento por causa da gravidez, tendo redução nos valores.

A Nike reconhece isso e, só recentemente, passou a suspender a cláusula de desempenho durante 12 meses em casos de atletas gestantes.

Outra atacante, também do Orlando Pride, Sydney Leroux, já foi mãe duas vezes.

Depois de parar pela segunda vez para o período de gestação, ela foi ovacionada por um estádio inteiro ao voltar para os gramados, e sequer era o estádio do seu time.

Isso mostra como os torcedores são receptivos e abraçam a escolha das atletas no país.

Na Espanha:

Se nos Estados Unidos o apoio ao esporte por parte dos torcedores tem crescido, na Espanha é maior ainda.

No entanto, se no Brasil o estado assegura os direitos trabalhistas, na Espanha, mesmo com um nível de rendimento maior, existe uma crise que dura há anos.

Os campeonatos de futebol feminino na Espanha, ano após ano, vão se tornando mais populares, a seleção tem se fortificado e as torcidas têm comprado a ideia e valorizado mais a modalidade.

O recorde de público em uma partida de futebol feminino, inclusive, é do Campeonato Espanhol.

Apesar disso, a modalidade enfrentou, por anos, problemas para alcançar a profissionalização.

São vários direitos trabalhistas que foram cobrados pelas futebolistas, cujo regimento perante elas e os clubes eram as leis desportivas.

Os acordos financeiros de apoio entre Federação, clubes e jogadoras não tiveram um desfecho, a ponto de uma greve no futebol feminino espanhol ter iniciado no final de 2019.

O problema chegava a ser tão absurdo, que existiam cláusulas “antigravidez” nos contratos, ou seja, os clubes poderiam rescindir com jogadoras que engravidassem, sem pagar indenizações.

Muitas jogadoras não tinham coragem de denunciar e o estado não entrava na discussão para tentar contribuir com mudanças no esporte.

Só em junho, a Federação Espanhola de Futebol (RFEF) profissionalizou, de fato, o futebol feminino.

Falta muito para alcançar a igualdade

Com esses três países citados, é possível vermos que ainda caminhamos a passos lentos, e que não é à toa que os Estados Unidos possuem um futebol feminino tão forte, ainda que necessite de evoluções.

Mas vale ressaltar que Brasil e Espanha são potências do futebol masculino, que ainda estão rastejando para alcançar degraus superiores no esporte feminino.

Ainda assim, em outros lugares do mundo, mesmo com grande desenvolvimento econômico, a gravidez no futebol feminino não é tão simples.

A defensora Hwang Bo-ram, por exemplo, chegou a passar mais de um ano sem atuar para ser mãe, numa sociedade com estruturas patriarcais muito mais consolidadas.

Como Tamires, do Brasil, ela também era a única coreana mãe na Copa e, na verdade, era a única a ter voltado a jogar pela seleção após a gravidez.

Assim como a lateral brasileira, ela também teve o suporte do marido que passou por cima dos padrões sociais para que ela exercesse sua profissão.

Se nesses países, onde há uma renda considerada alta e estrutura para que mulheres possam jogar de modo profissional, existe problema, imagine para aqueles onde o futebol não gera tanta renda e onde as configurações sociais são ainda mais preconceituosas com as mulheres.

A FIFA, assim como a CBF e outros órgãos, caminha lentamente, mas ainda buscando uma evolução do futebol feminino em diversos meios.

Ainda que não caiba a essa entidade mudar a problemática da gestação no futebol feminino, ela ainda pode tentar influenciar as federações a buscarem a validação de direitos fundamentais específicos.

Como membros de uma sociedade é imperativo que trabalhemos no sentido de construir um futuro onde atletas e mulheres possam exercer o seu poder de escolha e realizem os seus sonhos em campo e na construção de suas famílias como sintetizou Sydney Laroux, atacante do Orlando Pride:

“Nós muitas vezes achamos que, quando começamos uma família e temos filhos, nós não podemos continuar com nossos sonhos e ambições. Acho que é muito importante ver que a vida não para, e você pode ter uma família e ter uma carreira. É possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo”.

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