Imagem: Jewel Samad/AFP/Getty Images
O futebol é o jogo de bola que mais se parece com o real da vida nua, e
começa embaralhando todas as cartas, minimizando os coringas, abolindo os
trunfos
Por José Miguel Wisnik
O futebol tem algo de novelesco,
de dramático, de patético e de trágico, de farsesco, de glorioso e de
sacrificial.
Se Nelson Rodrigues dizia que “a mais sórdida pelada é de uma complexidade
shakespeariana”, o que dizer das proporções da Copa no mundo
instantaneizado pelas mídias totais?
Por um mês, podemos nos dedicar a
confrontos entre Irã e Marrocos, Croácia e Nigéria, México e Alemanha, Japão e
Colômbia, em vez de suportar encontros entre Kim Jong-un e Donald Trump.
Uma guerra mundial em versão
apaixonante e entretida.
Ao mesmo tempo, o mundo quer
saber quem é o melhor do mundo, o mundo ama consagrar o melhor do mundo e ama,
com certo prazer e arrepio, vê-lo cair.
A mania do melhor do mundo chega
às raias da doença coletiva, talvez no Brasil mais do que em qualquer outro
lugar.
Cristiano Ronaldo, que é o maior
finalizador do mundo, que tem o physique du rôle de melhor do mundo, que se
prepara atleticamente para ter a melhor performance física do mundo, que diz
frontalmente que é o melhor do mundo, que joga num time que sabidamente não é o
melhor do mundo, faz com perfeição, em campo, tudo aquilo que leva a crer que é
o melhor do mundo.
Os deuses do futebol conspiram a
seu favor — os melhores goleiros frangam, a bola o procura com descarada
parcialidade e, quando não o procura, é ele que está lá, implacável, com uma
atenção focal absurda na direção do gol.
Lionel Messi, que é o melhor e
mais completo jogador do mundo, nunca diz nada para exaltar a si mesmo, parece
um homem comum, baixo e atarracado, olhando para o chão, atingido pela sina
fatídica de não levar sua seleção a nenhum título, como se a bola batesse
sempre numa barreira enigmática que não se sabe se está dentro ou fora dele.
“No es para mí”, já chegou a dizer sobre o fardo
terrível de arcar com o destino futebolístico da Argentina nas costas.
Neymar parece ter dedicado sua
carreira a perseguir o título oficial de melhor jogador do mundo.
Não deveria.
Melhor jogador do mundo alguém é,
chega a ser, fica sendo, sem que anuncie, sem que se envolvam nisso o time, a
seleção e a mídia na mira ou na miragem do projeto pessoal.
Messi nunca disse que ia ser, e
Cristiano Ronaldo sempre disse que já é.
Fazer crer que vai ser é propagar
uma armadilha para si mesmo.
O grande desejo é um segredo
precioso a ser preservado da sanha furiosa do mundo.
Neymar é, sim, o jogador vendido
pelo Barcelona ao Paris Saint-Germain pelo preço mais alto do mundo, está no
epicentro do redemoinho de sua capitalização empresarial e publicitária e é, ao
mesmo tempo, o jogador no mundo atual que mais tem espírito de amador, de
peladeiro, o gosto pelo drible, a pulsão gratuita do jogo pelo jogo.
Esse paradoxo diz ainda algo
sobre nós, sobre o Brasil, sobre a consequência e a inconsequência nacionais.
O futebol é de uma complexidade
machadiana.
Por isso mesmo Neymar está num
momento crucial.
A suas habilidades
extraordinárias ele precisa acrescentar aquela inteligência do jogo que não
falta normalmente nem a Messi nem a Cristiano Ronaldo, e que consiste em
administrar suas próprias qualidades de maneira a levá-las a um grau mortífero.
No momento em que os adversários
assumem publicamente, sem mais segredos, que pará-lo com faltas continuadas e
aplicadas com método é a melhor, ou a única, maneira de enfrentá-lo e
neutralizá-lo, cabe a ele entender qual é o momento oportuno e crucial do
drible e da retenção da bola.
Sou torcedor santista desde
criancinha e acompanho a carreira de Neymar desde seu primeiro minuto em campo.
Para mim, ele é um dos motivos de
alegria no mundo.
Observo, por isso mesmo, que ele
teve um grau maior de lucidez em campo quando jogou pelo Barcelona do que
quando escolheu um time para chamar de seu, transferindo-se para o PSG e
embicando de vez no programa explícito de premiação máxima.
O futebol é o jogo de bola que
mais se parece com o real da vida nua, e começa embaralhando todas as cartas,
minimizando os coringas, abolindo os trunfos.
As seleções que na avaliação
prévia mundial foram insistentemente apontadas como as amplas favoritas,
Espanha, França, Alemanha e Brasil, passaram todas por maus bocados na estreia,
cada uma a sua maneira.
Pelo jeito, nenhuma estará na
Rússia a passeio.
A arbitragem de vídeo, que
prometia acabar com o elevado grau de interpretação, de dúvida e de indecisão
na avaliação de jogadas que caracteriza o futebol, produziu uma nova modalidade
de incerteza: a interpretação da interpretação, em certos casos indecidível.
Em horas seguidas de
mesas-redondas, com o lance do gol da Suíça sendo repetido centenas de vezes,
não se vê consenso sobre se Miranda sofreu ou não sofreu falta.
Ou melhor, a conclusão é que
sofreu, mas não sofreu, de que houve empurrão, que é falta, mas de que esse
empurrão não chega a ser falta.
O mais anormal, de fato, é que,
diferentemente do cerrado empurra-empurra na área que caracteriza esse tipo de
lance de bola parada, um suíço se insinuou na área sem ser percebido, deu um
leve chega para lá num zagueiro brasileiro e cabeceou sem ser incomodado.
Todos seremos surpreendidos.
A realidade não é o que parece, e
o futebol é de uma complexidade pirandelliana.
José Miguel Wisnik...
... é professor de literatura da
USP, ensaísta e autor de Veneno Remédio – o Futebol e o Brasil
Fonte: Revista Época