Imagem: Sam Robles/The Player's Tribune
O Player’s Tribune é um site onde
os jogadores costumam abrir seus corações e falar sobre o que não costumam falar
nas entrevistas...
No Trivela uma dessas histórias
foi postada.
Humana, demasiadamente humana...
É o que nos conta com uma imensa
franqueza, Romelu Lukaku, atacante da seleção da Bélgica.
Tenho algumas coisas a dizer
Eu me lembro do momento exato em que soube que estávamos quebrados.
Ainda consigo visualizar minha mãe na geladeira e o olhar no rosto dela.
Eu tinha seis anos de idade e cheguei de casa para almoçar durante o
intervalo da escola. Minha mãe me dava a mesma coisa todos os dias: pão e
leite. Quando você é uma criança, nem pensa sobre isso. Mas acho que era tudo
que podíamos comprar.
Naquele dia, eu cheguei em casa e entrei na cozinha e vi minha mãe na
geladeira com uma caixa de leite, como sempre. Mas, naquela vez, ela estava
misturando algo. Ela estava balançando, sabe? Eu não entendi o que estava
acontecendo. Ela me trouxe o almoço e estava sorrindo, como se tudo estivesse
bem. Mas eu percebi na hora o que estava acontecendo.
Ela estava misturando água no leite. Não tínhamos dinheiro suficiente
para o resto da semana. Estávamos quebrados. Não apenas pobres, mas quebrados.
Meu pai havia sido um jogador profissional de futebol, mas estava no
fim da sua carreira e não havia mais dinheiro. A primeira coisa que perdemos
foi a TV a cabo. Acabou o futebol. Acabou o Match of the Day (famoso programa
esportivo britânico). Acabou o sinal.
Chegava em casa à noite e as luzes estavam apagadas. Sem eletricidade
por duas, três semanas de uma vez.
Eu queria tomar banho, e não havia mais água quente. Minha mãe
esquentava a chaleira no fogão, e eu ficava em pé no chuveiro jogando água
quente na minha cabeça com um copo.
Houve ocasiões em que minha mãe precisava pedir pão “emprestado” da
padaria no fim da rua. Os padeiros nos conheciam, eu e meu irmãozinho, então
deixavam que ela pegasse uma fatia de pão na segunda-feira e pagar apenas na
sexta.
Eu sabia que tínhamos problemas. Mas, quando ela estava misturando água
no leite, eu percebi que já era, sabe? Essa era nossa vida.
Eu não disse uma palavra. Não queria estressá-la. Eu apenas comi meu
almoço. Mas eu juro por Deus, eu fiz uma promessa a mim mesmo naquele dia. Era
como se alguém tivesse estalado os dedos e me acordado. Eu sabia exatamente o
que precisava fazer e o que iria fazer.
Eu não podia ver minha mãe vivendo daquele jeito. Não, não, não. Eu não
aceitaria aquilo.
As pessoas no futebol amam falar sobre força mental. Bom, eu sou o cara
mais forte que você vai conhecer. Porque eu me lembro de me sentar no escuro
com meu irmão e minha mãe, rezando, e pensando, acreditando, sabendo… que um
dia aconteceria.
Não contei minha promessa para ninguém por um tempo. Mas, alguns dias,
eu chegava em casa da escola e encontrava minha mãe chorando. Então, eu
finalmente a disse um dia: “Mãe, tudo vai mudar. Você vai ver. Eu vou jogar
futebol pelo Anderlecht e vai acontecer rápido. Vamos ficar bem. Você não
precisará mais se preocupar”.
Eu tinha seis anos.
Eu perguntei para o meu pai: “Quando eu posso começar a jogar futebol
profissional?”
Ele disse: “Dezesseis anos”
Eu disse: “Ok, dezesseis anos, então”.
Aconteceria. Ponto final.
Deixa eu dizer uma coisa – todo jogo que eu já disputei foi uma final.
Quando eu jogava no parque, era uma final. Quando eu jogava no recreio do
jardim de infância, era uma final. Eu estou falando sério para caralho. Eu
tentava rasgar a bola todas as vezes que eu chutava. Força total. Não estava
chutando com o R1, brother. Não era chute colocado. Eu não tinha o novo Fifa.
Eu não tinha um Playstation. Eu não estava brincando. Eu estava tentando te
matar.
Quando eu comecei a ficar mais alto, alguns dos professores e pais
começaram a me estressar. Eu nunca vou esquecer a primeira vez que ouvi um dos
adultos dizer: “Ei, quantos anos você tem? Que ano você nasceu?”
E eu fiquei, tipo, o quê? Tá falando sério?
Quando eu tinha 11 anos, eu jogava pela base do Lièrse, e um dos pais
do outro time literalmente tentou me impedir de entrar no gramado. Ele disse:
“Quantos anos tem essa criança? Onde está o documento dela? Da onde ela veio?”
Eu pensei: “Da onde eu vim? O quê? Eu nasci na Antuérpia. Eu vim da
Bélgica”.
Meu pai não estava lá porque ele não tinha carro para me levar aos
jogos for a de casa. Eu estava completamente sozinho e precisava me impor. Eu
fui pegar meu documento, na minha mala, e mostrei para todos os pais, e eles o
passaram de mão em mão, inspecionando, e eu lembro do sangue me subindo à
cabeça… e pensei: “Oh, eu vou matar o seu filho mais ainda agora. Eu já ia
matá-lo, mas, agora, eu vou destruí-lo. Você vai levar seu filho para casa
chorando agora”.
Eu queria ser o melhor jogador de futebol da história da Bélgica. Era
esse meu objetivo. Não apenas bom. Não apenas ótimo. O melhor. Eu jogava com
muita raiva por causa de muitas coisas… por causa dos ratos que viviam no nosso
apartamento…. porque eu não podia assistir à Champions League… pela maneira como
os outros pais olhavam para mim.
Eu estava em uma missão.
Quando eu tinha 12 anos, eu marquei 76 gols em 34 partidas.
Eu marquei todos eles usando as chuteiras do meu pai. Quando nossos pés
ficaram do mesmo tamanho, nós as compartilhávamos.
Um dia, eu liguei para o meu avô – o pai da minha mãe. Ele era uma das
pessoas mais importantes da minha vida. Ele era minha conexão com a República
Democrática do Congo, da onde minha mãe e meu pai vieram. Então, eu estava no
telefone com ele um dia, e eu disse: “Estou indo bem. Eu fiz 76 gols e ganhamos
a liga. Os grandes times estão começando a me notar”.
E geralmente ele queria ouvir sobre os meus jogos. Mas, naquela vez,
estava estranho. Ele disse: “Yeah, Rom, yeah, isso é ótimo. Mas você pode me
fazer um favor?”
Eu disse: “Sim, qual?”
Ele disse: “Você pode cuidar da minha filha, por favor?”
Eu me lembro de ter ficado confuso. Sobre o que o vovô estava falando?
Eu disse: “A mamãe? Sim, estamos bem. Estamos ok”.
Ele disse: “Não. Você tem que me prometer. Você pode me prometer? Cuide
da minha filha. Apenas cuide dela para mim. Ok?”
Eu disse: “Sim, vovô. Entendi. Eu prometo”.
Cinco dias depois, ele morreu. E, então, eu entendi o que ele queria
dizer.
Eu fico muito triste pensando nisso porque eu gostaria que ele tivesse
ficado vivo mais quatro anos para me ver jogar pelo Anderlecht. Para ver que eu
cumpri minha promessa, sabe? Para ver que tudo ficaria bem.
Eu disse para minha mãe que eu conseguiria chegar lá quando tivesse 16
anos.
Eu errei por 11 dias.
24 de maio de 2009.
A final do playoff. Anderlecht versus Standard Liège.
Aquele foi o dia mais doido da minha vida. Mas precisamos retroceder um
pouco. Porque no começo da temporada, eu mal estava jogando pelo sub-19 do
Anderlecht. O treinador me colocou na reserva. E eu pensava: “Como vou
conseguir um contrato profissional no meu 16º aniversário se ainda estou no
banco pelo sub-19?”.
Então, fiz uma aposta com o treinador.
Eu disse para ele: “Eu garanto algo a você. Se você me colocar para
jogar, eu vou fazer 25 gols até dezembro”.
Ele riu. Ele literalmente riu da minha cara.
Eu disse: “Vamos fazer uma aposta”.
Ele disse: “Ok, mas se você não fizer 25 gols até dezembro, você vai
para o banco de reservas”.
Eu disse: “Certo, mas, se eu vencer, você vai limpar todas as minivans
que levam os jogadores para casa depois do treino”.
Ele disse: “Ok, fechado”.
Eu disse: “E mais uma coisa. Você tem que fazer panqueca para nós todos
os dias”.
Ele disse: “Ok, certo”.
Foi a aposta mais estúpida que o homem já fez.
Eu tinha 25 gols em novembro. Estávamos comendo panqueca antes do Natal,
bro.
Que sirva de lição. Você não mexe com um garoto que está com fome.
Eu assinei contrato professional com o Anderlecht no meu aniversário,
13 de maio. Fui direto comprar o novo Fifa e um pacote de TV a cabo. Já era o
fim da temporada, então estava em casa relaxando. Mas a liga belga estava doida
naquele ano, porque Anderlecht e Standard Liège terminaram empatados em pontos.
Então, haveria um playoff de duas partidas para decidir o título.
Durante o jogo de ida, eu estava em casa assistindo à TV como um
torcedor.
Então, no dia anterior ao jogo de volta, eu recebi uma ligação do
técnico dos reservas.
“Alô?”
“Alô, Rom. O que você está fazendo?”
“Saindo para jogar bola no parque”.
“Não, não, não, não, não. Faça suas malas. Agora mesmo”.
“Por quê? O que eu fiz?”
“Não, não, não. Você precisa sair para o estádio agora. O time
principal pediu por você”.
“Yo….o quê? Eu?!”
“Sim. Você. Venha. Agora”.
Eu literalmente corri para o quarto do meu pai. “YO! Levanta, porra.
Precisamos correr, cara!”.
“Huh? O quê? Pra onde?”
“ANDERLECHT, CARA”.
Eu nunca vou esquecer. Eu cheguei ao estádio e praticamente corri para
o vestiário. O roupeiro disse: “Ok, garoto, que número você quer?”.
E eu disse: “Me dá a 10”.
Hahahahahaha sei lá, eu era muito jovem para ter medo, acho.
E ele: “Jogadores da base usam números acima do 30”.
Eu disse: “Ok, bem, três mais seis é igual a nove, e esse é um número
legal, então me dá a 36”.
Naquela noite, no hotel, os jogadores adultos me fizeram cantar uma
música para eles no jantar. Eu nem me lembro qual escolhi. Minha cabeça estava
girando.
Na manhã seguinte, meu amigo literalmente bateu na porta da minha casa
para ver se eu queria jogar futebol e minha mãe disse: “Ele saiu para jogar”.
Meu amigo: “Jogar onde?”
Ela disse: “Na final”.
Saímos do ônibus no estádio, e cada jogador estava usando um terno
legal. Menos eu. Eu saí do ônibus usando um terrível agasalho e todas as
câmeras de TV estavam na minha cara. A caminhada para o vestiário foi de talvez
300 metros. Talvez uma caminhada de três minutos. Assim que coloquei meu pé no
vestiário, meu telefone começou a explodir. Todo mundo havia me visto na
televisão. Eu recebi 25 mensagens em três minutos. Meus amigos estavam ficando
loucos.
“Bro?! Por que você está no jogo?!”
“Rom, o que está acontecendo? POR QUE VOCÊ ESTÁ NA TV?”
A única pessoa que respondi foi meu melhor amigo. Eu disse: “Brother,
eu não sei se vou jogar. Eu não sei o que está acontecendo. Mas continua vendo
TV”.
Aos 18 minutos do segundo tempo, o treinador me colocou em campo.
Eu corri no gramado pelo Anderlecht aos 16 anos e 11 dias.
Perdemos a final naquele dia, mas eu já estava no céu. Eu cumpri a
promessa para a minha mãe e para meu avô. Aquele foi o momento em que eu soube
que ficaríamos bem.
Na temporada seguinte, eu ainda terminava o meu último ano do colégio e
jogava na Liga Europa ao mesmo tempo. Eu precisava levar uma grande mochila
para o colégio para poder pegar um voo no fim da tarde. Vencemos a liga com
folga. Foi…uma loucura!
Eu realmente esperava que tudo isso acontecesse, mas talvez não tão
rápido. De repente, a imprensa estava crescendo em torno de mim, e colocando
todas essas expectativas nas minhas costas. Especialmente com a seleção
nacional. Por algum motivo, eu não estava jogando bem pela Bélgica. Não estava
funcionando.
Mas, yo – pera lá. Eu tinha 17 anos! 18! 19!
Quando as coisas corriam bem, eu lia os artigos de jornal e eles me
chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga.
Quando as coisas não corriam bem, eles me chamavam de Romelu Lukaku, o
atacante belga descendente de congoleses.
Se você não gosta do jeito como jogo, tudo bem. Mas eu nasci aqui. Eu
cresci na Antuérpia, em Liège e em Bruxelas. Eu sonhava em jogar pelo
Anderlecht. Eu sonhava em ser Vincent Kompany. Eu começava uma frase em francês
e terminava em holandês, e colocava um pouco de espanhol e português ou
lingala, dependendo do bairro em que eu estivesse.
Eu sou belga.
Somos todos belgas. É isso que faz este país legal, certo?
Eu não sei por que algumas pessoas do meu próprio país querem que eu
fracasse. Eu realmente não entendo. Quando fui para o Chelsea e não estava
jogando, eu os ouvi dando risada de mim. Quando fui emprestado para o West
Brom, eu os ouvi dando risada de mim.
Mas tudo bem. Essas pessoas não estavam comigo quando colocávamos água
no nosso cereal. Se vocês não estavam comigo quando eu não tinha nada, vocês
realmente não podem me entender.
Sabe o que é engraçado? Eu perdi dez anos de Champions League quando
era criança. A gente não podia pagar. Eu chegava à escola e todas as crianças
estavam falando sobre a final e eu não sabia o que havia acontecido. Eu me
lembro de 2002, quando o Real Madrid jogou contra o Bayer Leverkusen, e todo
mundo falava “aquele voleio! Meu Deus, aquele voleio!”.
E eu tinha que fingir que sabia do que estavam falando.
Duas semanas depois, estávamos sentados na aula de computação, e um dos
meus amigos baixou o vídeo da internet, e eu finalmente vi Zidane mandar aquela
bola no ângulo com a perna esquerda.
Naquele verão, eu fui para minha casa para assistir ao Ronaldo Fenômeno
na final da Copa do Mundo. A história de todo o resto daquele torneio eu ouvi
das crianças da escola.
Eu lembro que eu tinha buracos nos meus sapatos em 2002. Grandes
buracos.
Doze anos depois, eu estava jogando a Copa do Mundo.
Agora, estou prestes a jogar outra Copa do Mundo e meu irmão está
comigo desta vez (o texto foi provavelmente escrito antes da convocação final
porque Jordan Lukaku, irmão de Romelu, estava na pré-convocação, mas não chegou
à lista final). Duas crianças da mesma casa, da mesma situação, que deram
certo. Sabe de uma coisa? Eu vou me lembrar de me divertir dessa vez. A vida é
curta demais para estresse e drama. As pessoas podem dizer o que quiserem sobre
nosso time, sobre mim.
Cara, escuta – quando éramos crianças, não podíamos pagar para ver
Thierry Henry no Match of the Day! Agora, estamos aprendendo com ele todos os
dias no time nacional (Henry é auxiliar de Roberto Martínez, técnico da
Bélgica). Estou junto com a lenda, em carne e osso, e ele está me dizendo tudo
sobre como atacar os espaços como ele costumava fazer. Thierry deve ser o único
cara no mundo que vê mais jogos do que eu. Nós debatemos tudo. Estamos sentados
e tendo debates sobre a segunda divisão da Alemanha.
“Thierry, você viu o esquema do Fortuna Düsseldorf?”
Ele: “Não seja tonto. Claro que vi”.
Isso é a coisa mais legal do mundo para mim.
Eu apenas realmente, realmente gostaria que meu avô estivesse vivo para
ver isso.
Não estou falando da Premier League.
Nem do Manchester United.
Nem da Champions League.
Nem da Copa do Mundo.
Não é disso que estou falando. Eu apenas queria que ele estivesse vivo
para ver a vida que temos agora. Eu gostaria de ter mais uma conversa com ele
por telefone, para poder dizer para ele…
“Viu? Eu disse para você. Sua filha está bem. Não há mais ratos no
nosso apartamento. Ninguém mais dorme no chão. Não há mais estresse. Estamos
bem agora. Estamos bem… Eles não precisam mais checar nossos documentos. Eles
conhecem nosso nome”.
Texto original abaixo