Imagem: Autor Desconhecido
O time do
Botafogo de 1910
Dinorah é o terceiro em pé da esquerda para a direita
Dinorah de
Assis, o ponto final da Tragédia da Piedade
Por Pedro
Henrique Brandão/Universidade do Esporte
Há mais de um
século, um tiroteio iniciado por Euclides da Cunha deu início a uma história de
tragédia familiar e o triste fim do então zagueiro do Botafogo, Dinorah de
Assis.
“Jogador do
Botafogo é baleado por Euclides da Cunha”.
A manchete é
absurda, mas real.
O episódio
que entrou para a história como a “tragédia da Piedade” teve muitos
desdobramentos, um deles, o tiro desferido pelo consagrado escritor no atleta
de um dos clubes mais tradicionais do país.
Dinorah de
Assis nascera numa família de militares de Porto Alegre, em 1889, e não
escapara da vocação familiar.
Em 1904,
mudara-se para São Paulo junto de Dilermando, seu irmão mais velho, para
seguirem carreira nas forças armadas.
Enquanto
Dilermando era totalmente voltado para a atividade militar, Dinorah tinha
talento para os esportes e se destacava no futebol.
O
Internacional de São Paulo o descobrira e dera a oportunidade para que o jovem
iniciasse sua carreira como zagueiro.
Logo em 1907,
o primeiro sucesso, quando fora campeão paulista.
No ano
seguinte, os irmãos foram viver no Rio de Janeiro e Dinorah passara a atuar
pelo América até se transferir para o Botafogo no início de 1909.
O futebol
ainda vivia no completo amadorismo – seria assim até 1933 –, mas o Botafogo já
despontava como um dos principais clubes do país e Dinorah poderia se
consolidar como atleta.
O primeiro
ano no novo clube, porém, guardaria uma tragédia.
Dilermando de
Assis seria (in)diretamente responsável por acontecimentos que mudariam as
vidas de muitas pessoas, inclusive a de Dinorah.
O irmão mais
velho do zagueiro botafoguense conhecera e envolvera-se com uma mulher 16 anos
mais velha.
Era Ana
Emília da Cunha, esposa de Euclides da Cunha, um dos grandes escritores
brasileiros e figura extremamente conhecida no início do século passado.
S’anninha,
Euclides e Dilermando
A jovem
República não havia completado 20 anos, os valores que norteavam a sociedade
eram extremamente conservadores, e o adultério era considerado como falha moral
gravíssima.
Existe um
contexto intrincado de relações que levaram ao envolvimento de Ana e
Dilermando.
Um deles é a
personalidade de Euclides, descrito como alguém de difícil trato desde a
adolescência.
Um episódio
marcara sua vida quando, ainda aspirante das forças armadas, num rompante de rebeldia,
protestara contra a monarquia atirando sua baioneta aos pés do Ministro da
Guerra do Império que passava em revista pelo batalhão do qual o jovem fazia
parte, em 1888, um ano antes da Proclamação da República.
O ato, é
claro, rendera-lhe a expulsão das forças armadas, e Euclides passara a se
dedicar a outras atividades, como o jornalismo, quando passara a escrever para
o jornal O Estado de S. Paulo.
Pelo menos
outros dois aspectos influenciaram na traição.
Euclides e
Ana Emília Ribeiro, a S’anninha, conheceram-se muito jovens, ela então uma
adolescente de 16 anos.
Dois anos
depois, mesmo com vivencias completamente distintas e uma considerável
diferença de idade – Ana aos 18 anos e Euclides com 24 anos –, casaram-se em
1890.
Logo nos
primeiros momentos da união, surgiram indícios de que não seria um casamento
feliz para ambos.
Ana sonhava
com um marido presente, enquanto Euclides se entregava cada vez mais às
atividades políticas e ao jornal, o que demandava longas viagens e ausências em
seu lar, fator preponderante para que Ana se interessasse por outro homem.
Na política,
como um grande entusiasta republicano, Euclides fizera muitas excursões ao
interior do país para auxiliar no processo de expansão e unificação da
República.
Pelo
conhecimento adquirido nessas viagens, em 1897, fora ao interior baiano como
correspondente do jornal O Estado de São Paulo para reportar os acontecimentos
da Guerra de Canudos.
Essa viagem
rendera um dos maiores clássicos da literatura brasileira: “Os sertões”.
O livro
apresentara um Brasil desconhecido aos brasileiros dos grandes centros urbanos,
mas também fizera a denúncia do massacre que o Estado havia imposto ao povo que
seguira Antônio Conselheiro.
O livro,
publicado em 2 de dezembro de 1902, trouxera a frase “aquela campanha lembra
um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um
crime. Denunciemo-lo.”, em que o escritor cumpria com maestria o papel do
jornalista e prestava importante serviço à história do Brasil.
Quando
retornara ao Rio de Janeiro, porém, Euclides não sossegara, pelo contrário, a
experiência em Canudos parece ter inquietado ainda mais o espírito do escritor
que a essa altura queria percorrer o país.
Aconteceram
outras viagens e grandes ausências de Euclides, a maior delas durara 13 meses.
Entre
dezembro de 1904 e janeiro de 1906, o escritor estivera no Acre auxiliando nas
negociações com a Bolívia pelo território acreano.
Financeiramente,
Euclides da Cunha cumpria seu papel de provedor do lar.
Por outro
lado, emocionalmente, Ana sentia-se abandonada no Rio de Janeiro.
Entre as
ausências do marido, Ana conhecera um jovem aspirante do exército.
Dilermando de
Assis tinha 17 anos quando, secretamente, começara a manter o tórrido caso de
amor que incluiria filhos, os quais Ana atribuiria a Euclides.
Fato é que
Euclides tinha real conhecimento da traição e nunca havia se posicionado em
direção ao divórcio.
A cada nova
viagem do escritor, Ana praticamente mudava-se para a casa de Dilermando.
Euclides, que
parecia não se importar com a situação, passara a ser alvo de comentários
maldosos, já que era uma das pessoas mais famosas do Brasil naquele momento.
O peso da
repercussão social parece ter mudado os pensamentos de Euclides, que decidira
voltar antes do combinado de uma viagem.
Ao não
encontrar a esposa em casa e saber por terceiros que Ana estava na casa de
Dilermando, o escritor se dirigira à residência da estrada da Piedade para “lavar
sua honra”.
A Tragédia da
Piedade
A manhã do
domingo 15 de agosto de 1909 foi o dia escolhido pelo escritor Euclides da
Cunha para cometer um crime motivado pelo triângulo amoroso em que estava
metido até o pescoço envolvido com Ana da Cunha, a S’anninha, sua esposa, e
Dilermando de Assis, um aspirante do exército e campeão de tiro.
O autor de
“Os sertões” invadiu a casa no bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, aos gritos
de “vim para matar e morrer”.
Dinorah,
zagueiro do Botafogo e irmão de Dilermando, estava na sala e não teve tempo
para se esconder.
Foi alvejado
por um tiro nas costas.
Campeão de
tiro, Dilermando reagiu e acertou o peito do escritor, que de acordo com as
investigações policiais feitas na época, havia disparado três vezes contra o aspirante
do exército, mas sem sucesso.
Euclides da
Cunha morreu no local e S’anninha assumiu publicamente seu amor por Dilermando.
Anos depois,
em 1916, no dia 4 de julho, Dilermando de Assis foi até um cartório e, enquanto
lia alguns papéis, foi atingido por alguns disparos pelas costas.
O autor era
Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, na intenção de vingar a morte do pai.
O jovem
aspirante da Marinha conseguiu um revólver e foi em busca de justiça.
Acertou
quatro tiros em Dilermando antes que este pudesse reagir.
Dilermando de
Assis, um exímio atirador e então tenente do exército, conseguiu revidar e
matar seu agressor.
Mais uma
morte desencadeada pelos tiros da “tragédia da Piedade”.
Dilermando de
Assis foi absolvido nos dois julgamentos por se entender que agiu em legítima
defesa.
O ponto final
da Tragédia da Piedade
No entanto, o
fim mais cruel estava guardado para Dinorah de Assis.
Quando
recebeu o tiro de Euclides, Dinorah era zagueiro titular do Botafogo, e, de
maneira praticamente inexplicável, se recuperou e entrou em campo contra o
Fluminense apenas uma semana depois de ser alvejado.
Com uma bala
alojada na coluna, o jogador atuou por mais um ano e participou da campanha do
mais famoso título botafoguense, no Carioca de 1910.
Dinorah foi
titular do Botafogo em 10 das 11 partidas naquele campeonato.
Porém, antes
mesmo do final daquele ano, Dinorah passou a sentir fraquezas musculares, fato
que o obrigou a jogar como goleiro.
Quando o ano
de 1911 começou, a situação do jogador piorou e ele teve de abandonar o
esporte.
Sua condição
física se degenerava rapidamente e no ano seguinte precisou deixar também a
carreira militar.
Uma cirurgia
feita em 1913, para retirar o projétil de sua coluna, deixou Dinorah
paraplégico.
Durante um
período, o ex-jogador foi pedinte nas ruas cariocas.
A depressão
tomou conta de Dinorah e ele voltou a Porto Alegre, sua cidade natal, onde se
entregou ao alcoolismo e foi internado em sanatórios da região por diversas
vezes.
Até que um
fim trágico aconteceu em 21 de novembro de 1921: louco pela sífilis,
paralítico, pobre e abandonado, Dinorah atirou-se nas águas do Guaíba e cometeu
suicídio colocando um ponto final na Tragédia da Piedade.
O futebol
fica de lado em várias passagens dessa história tão absurda quanto real.
O amor, a
paixão, o ódio, a traição, a vingança e as várias nuances de outros sentimentos
tornam-se ingredientes desse enredo e são jogados para escanteio nessa história
de sangue, literatura e futebol escrita pelas mesmas mãos que escreveram uma
obra prima da literatura brasileira.