Imagem: Felipe Larozza
O sindicato secreto dos árbitros
gays
Por Breiller Pires
Da coluna 'VICE Sports'
Ele já apitou mais de 100 jogos
de equipes de primeira divisão do Brasil.
Tem partidas internacionais no
currículo e perdeu as contas de quantos países visitou.
É um "árbitro top",
como costumam dizer no meio.
No entanto, ele não se sente
realizado.
Há dois anos, optou por terminar
um relacionamento com outro homem para não colocar a carreira em risco.
É o preço que um juiz de futebol
gay paga para ser aceito na profissão.
"Se para um jogador, que é idolatrado por onde passa, já é difícil
se assumir, imagina para um árbitro que é xingado pelo estádio inteiro toda vez
que entra em campo?", afirma o juiz, que pediu absoluto sigilo de sua
identidade para falar com a reportagem de VICE Sports.
Ele teme as consequências de
revelar sua orientação sexual entre seus chefes da Comissão de Arbitragem da
CBF e, principalmente, entre torcedores e dirigentes de clube, que já o
ameaçaram depois de jogos com marcações controversas.
Sérgio Cenedezi, 52, bandeirinha
por quase duas décadas, tomou caminho diferente.
De 1985 a 2003, trabalhou como
assistente em vários jogos de campeonatos estaduais, brasileiro e Copa do
Brasil, sem nunca esconder de seus pares que é homossexual.
"Eu sou assumido. Modéstia à parte, só trabalhei tanto tempo à
beira do gramado porque eu era muito bom. Senão teriam me matado",
conta.
Hoje aposentado da arbitragem,
Cenedezi é secretário de um tribunal de justiça em São Paulo.
Ele guarda poucos amigos do
futebol.
E um desgosto.
Apesar de ter sido um dos
bandeirinhas mais requisitados da década de 90, não alcançou o posto máximo de
sua antiga profissão.
"Faltou botar o escudo da Fifa no peito", diz.
"Várias vezes fui cotado para receber a indicação da CBF. Mas
sempre alguém surgia com o comentário: 'Ah, ele é viado'. Pois digo que prefiro
ser viado do que ladrão, como muitos dos que hoje tomam conta do futebol
brasileiro."
Embora o preconceito tenha
contribuído para barrar sua ascensão ao alto escalão do apito, Cenedezi diz não
se arrepender da escolha de revelar sua orientação sexual.
"Ser gay não é crime. Por isso não escondo nada de ninguém",
afirma o ex-assistente, que também revela já ter saído com jogadores de grandes
clubes do país.
Relacionamentos extracampo,
porém, enfatiza, não interferiam em suas marcações.
"Preferências pessoais jamais influenciaram meu trabalho."
Como em todas as profissões, gays
não são novidade na arbitragem.
Há até uma expressão para se
referir a eles no meio: "membros do
sindicato".
Ainda assim, todos continuam
sofrendo para exercer o ofício no terreno mais machista do futebol.
Penalidade mínima
Ofensas e atitudes homofóbicas
costumam ser relativizadas no contexto futebolístico.
Entre os homens do apito,
comportamentos preconceituosos fazem parte da normalidade e estão imunes de
punição.
Em junho, o árbitro Marcelo de
Lima Henrique postou em sua página no Facebook uma defesa ao deputado Jair
Bolsonaro:
"Prefiro votar em louco do que em incentivador de boiolices,
maconheiro e inimigos da família(...) Não sou politicamente correto, não apoio
boiolices".
O Superior Tribunal de Justiça
Desportiva (STJD) entendeu que não havia motivo para abrir denúncia contra o
árbitro por suas declarações.
"Se no Congresso Nacional, um deputado [Bolsonaro] propaga
discurso de ódio contra os gays livremente, no campo de futebol é ainda
pior", diz Sérgio Cenedezi.
O burburinho em torno da
homossexualidade na arbitragem remonta ao fim da década de 80, quando o trio
MBB chocou a sociedade da bola ao assumir publicamente sua orientação sexual.
Margarida, Bianca e Borboleta
eram os nomes de guerra dos árbitros Jorge José Emiliano dos Santos, Walter
Senra e Paulino Rodrigues da Silva, respectivamente.
Margarida foi o primeiro a se
declarar.
Peitou o então mandachuva da
Comissão de Arbitragem, João Ellis Filho, que chegou a dizer que, enquanto
fosse presidente, nenhum juiz homossexual apitaria jogos.
Em sua defesa, Margarida era
enfático:
"Antes ser lembrado como um juiz bicha do que como um juiz
desonesto". Surgia ali "o
sindicato", do qual Cenedezi sempre fez parte.
"Naquela época tinha mais gay do que hétero no quadro de
árbitros", conta.
Em vez de amenizar a
discriminação, a grande influência que o trio MBB exerceu até o início dos anos
90 fez com que outros juízes saíssem do armário e gerou cicatrizes profundas na
arbitragem.
Muitos enxergavam Margarida e
seus seguidores como detratores da profissão.
Iniciou-se, então, uma verdadeira
caçada aos árbitros gays, curiosamente liderada por Armando Marques, ex-árbitro
que sofria com gritos de "bicha,
bicha!" nos estádios e insultos homofóbicos de dirigentes.
Em 1998, por exemplo, o
presidente do Vasco, Eurico Miranda, o chamou de "homossexual travestido".
Um ano antes, Armando Marques
havia assumido a presidência da Comissão de Arbitragem e começado uma
perseguição silenciosa aos homossexuais sob seu comando.
Mesmo casado com uma mulher há 32
anos e pai de três filhos, Clésio Moreira dos Santos acabou sendo uma das
vítimas da fúria persecutória de Armando Marques.
Mais velho de uma família de sete
irmãos, ele foi abandonado pelo pai aos 11 anos.
Ainda na adolescência, começou a
trabalhar com teatro de rua na cidade de Palhoça, em Santa Catarina.
Virou árbitro de futebol e,
aproveitando o talento para encenar, resolveu adotar o personagem Margarida, em
homenagem ao antigo árbitro.
Entrou para o quadro da CBF em
1995 e chamava a atenção por vestir um uniforme inteiramente rosa.
Suas atuações de gestos
extravagantes caricaturam um árbitro gay.
Apesar de sempre ter deixado
claro que não é homossexual, o Margarida genérico incomodou o ex-presidente da
Comissão.
"O Armando Marques mandou um recado para o presidente da Federação
Catarinense [Delfim de Pádua Peixoto]: 'Avisa pro seu Margarida aí que viado
aqui só tem um'. Depois disso, ele começou a me escalar em jogos sem expressão,
em lugares remotos. Tive de abandonar a carreira profissional", afirma
Clésio, que deixou o quadro de arbitragem em 2002.
Atualmente, Margarida apita
somente em jogos festivos.
Fatura mais dinheiro do que nos
tempos em que era árbitro da CBF.
Sua situação é emblemática: ele
ganha a vida encarnando o personagem de um árbitro gay, algo que um homossexual
de verdade dificilmente conseguiria.
Armando Marques foi presidente da
Comissão de Arbitragem até 2005.
Não teve filhos e jamais revelou
sua orientação sexual.
Ele morreu há dois anos, mas sua
herança homofóbica ainda paira sobre a arbitragem nacional.
A tropa de choque do apito
Em 2009, o árbitro Halil Ibrahim
Dinçdag foi proibido de apitar jogos oficiais pela Federação Turca de Futebol.
Com base em um relatório do
Exército da Turquia, que o havia dispensado dois anos antes por considerar sua
homossexualidade uma doença, a Federação alegou que ele não poderia mais atuar
nas partidas por supostamente ter um problema de saúde.
Durante o processo de expulsão do
quadro de arbitragem, dirigentes o acusaram de favorecer jogadores por causa da
aparência.
"Isso devastou minha vida", afirma Halil à VICE Sports.
"Desde então estou sem trabalho. Não consigo emprego em lugar
nenhum. Nesse período, ainda recebi o diagnóstico de um câncer. Os danos
físicos, morais e materiais são incalculáveis."
No fim do ano passado, um
tribunal de Istambul condenou a Federação a pagar indenização de cerca de
25.000 reais a Halil por discriminação sexual.
"A justiça foi feita de forma tardia, após seis anos de luta. De
qualquer forma, considero a decisão uma vitória para todo o movimento
LGBT", afirma o ex-árbitro, que tenta se reerguer com a ajuda de
amigos e milita em causas de combate ao preconceito em seu país.
A realidade por aqui não é tão
diferente da Turquia.
Boa parte das capitanias que
comandam o futebol brasileiro é controlada por figuras ligadas a instituições
militares.
São dirigentes que se perpetuam
no poder ao longo de décadas, muitas vezes se auto intitulando de coronéis.
É o caso de Antônio Carlos Nunes
de Lima, coronel da reserva da Polícia Militar que se manteve no comando da
Federação Paraense de Futebol por 20 anos e, recentemente, foi presidente
interino da CBF.
Na arbitragem, o controle militar
é ainda mais rígido.
Marcelo de Lima Henrique, o
árbitro que não apoia "boiolices", é sargento dos Fuzileiros Navais.
Sérgio Corrêa, presidente da
Comissão Nacional de Arbitragem, responsável pela escala de árbitros da CBF,
ex-oficial da Aeronáutica.
Seus antecessores Edson Rezende
(delegado da Polícia Federal) e Aristeu Leonardo Tavares (tenente da PM) e seu
vice Nilson de Souza Monção (coronel aposentado do Exército) também têm
patentes de autoridade.
Não é à toa que os cursos
oficiais de arbitragem seguem cartilhas quase militares.
No código de conduta dos
árbitros, há instruções até de vestuário, como não sair em público com a camisa
para fora da calça antes dos jogos.
"Querem que o árbitro passe uma imagem de sargentão, que banque o
machão dentro e fora do campo", diz Margarida, que foi desaconselhado
por vários colegas ao incorporar seu personagem.
"Falavam que eu estava queimando o filme da classe."
Em um ambiente tão repressor, o
machismo arraigado do futebol se tornou política institucional da arbitragem.
Em 1997, Sérgio Cenedezi foi
pioneiro ao criar o primeiro curso para mulheres no Sindicato de Árbitros de
São Paulo.
Não sem enfrentar forte
resistência.
"Todos diziam que lugar de mulher é no fogão, inclusive o Armando
Marques. Eu quis quebrar esse preconceito. Mas a verdade é que, na arbitragem,
ainda existe um desprezo enorme por mulheres e gays", afirma.
Procuradas pela reportagem,
comissões e cooperativas regionais de árbitros informaram que não promovem
campanha – nem a favor nem contra – homossexuais.
O Sindicato dos Árbitros de São
Paulo, por meio do diretor Carlos Donizeti, afirma que "como nunca tivemos denúncia [de preconceito] dos árbitros, não
achamos necessário tomar nenhuma medida".
A Comissão Nacional de
Arbitragem, por sua vez, diz que não discrimina ninguém pela orientação sexual.
Denúncias de homofobia
dificilmente chegarão aos ouvidos dos barões da arbitragem brasileira, já que,
ao contrário de décadas atrás, não há sequer um profissional abertamente
homossexual em seus quadros.
Sob o risco de boicote no mercado
de trabalho, os árbitros gays, que um dia levantaram a bandeira pelo
impedimento do machismo, hoje só podem se resignar com o silêncio para manter
seu sindicato em segredo.
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