sábado, outubro 24, 2020

Pelé e o texto de Nélson Rodrigues que profetizou a chegada do Rei...

Imagem: Goal.com

Três meses antes da Copa de 1958, Nélson Rodrigues depois de assistir a vitória do Santos por 5 a 3 sobre o América do Rio de Janeiro pelo Torneio Rio-São Paulo escreveu sobre o autor de quatro dos gols santistas...

Seu nome?

Pelé.

Pensei em escrever eu mesmo sobre o aniversário de Pelé, mas lembrei que Nélson Rodrigues, 62 anos antes, havia escrito um texto que muito mais do que elogiar um jogador que tinha destacado naquele jogo, profetizou a chegada do homem que mudaria para sempre o conceito de gênio com a bola nos pés...

Portanto, melhor Nélson que eu. 

 

A realeza de Pelé, por Nelson Rodrigues

 

Manchete esportiva, 8 de março de 1958

 

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana.

Grande figura, que o meu confrade (Albert Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”.)

Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos!

Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis.

Uma delas é a de Pelé.

Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais.

Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais.

Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope.

Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis.

Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma.

E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés.

Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento.

E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias.

Já lhe perguntaram: — Quem é o maior meia do mundo?”

Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.”

Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.”

Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir.

Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições.

Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos.

Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia.

Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar.

Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”

De certa feita, foi até desmoralizante.

Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo.

Outro qualquer teria despachado.

Pelé, não.

Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários.

Mas o homem resolve fazer tudo sozinho.

Dribla o primeiro e o segundo.

Vem-lhe, ao encalço ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente.

Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra.

Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar.

Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa.

E, então, livre na área inimiga, Pele achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol.

É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível.

Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta.

Põe-se por cima de tudo e de todos.

E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha.

Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete.

Na Suécia, ele não tremerá de ninguém.

Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo.

Não se inferiorizará diante de ninguém.

E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos.

Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau.

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria?

Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota.

Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas.

Os outros é que tremerão diante de nós.

Um comentário:

jornal da grande natal disse...

Rodrigues entronizou. Os franceses deram a coroa. Mas o detalhe principal. No final do texto. O pernambucano foi profético. O selecionado voltou com o título e a vira-latice diminuiu um pouco.