Três meses antes da Copa de 1958, Nélson Rodrigues depois de assistir a
vitória do Santos por 5 a 3 sobre o América do Rio de Janeiro pelo Torneio
Rio-São Paulo escreveu sobre o autor de quatro dos gols santistas...
Seu nome?
Pelé.
Pensei em escrever eu mesmo sobre o aniversário de Pelé, mas lembrei que
Nélson Rodrigues, 62 anos antes, havia escrito um texto que muito mais do que
elogiar um jogador que tinha destacado naquele jogo, profetizou a chegada do
homem que mudaria para sempre o conceito de gênio com a bola nos pés...
Portanto, melhor Nélson que eu.
A realeza de Pelé, por Nelson Rodrigues
Manchete esportiva, 8 de março de 1958
Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu
personagem da semana.
Grande figura, que o meu confrade (Albert Laurence chama de “o Domingos
da Guia do ataque”.)
Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos!
Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis.
Uma delas é a de Pelé.
Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete
anos, jamais.
Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma
dessas autoridades irresistíveis e fatais.
Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope.
Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis.
Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de
ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma.
E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de
se sentir rei, da cabeça aos pés.
Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem
escorraça um plebeu ignaro e piolhento.
E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz
cerimônias.
Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do
mundo?”
Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.”
Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.”
Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir.
Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que
ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de
todas as posições.
Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o
incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos.
Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia.
Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar.
Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no
diabo que o carregue!”
De certa feita, foi até desmoralizante.
Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo.
Outro qualquer teria despachado.
Pelé, não.
Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários.
Mas o homem resolve fazer tudo sozinho.
Dribla o primeiro e o segundo.
Vem-lhe, ao encalço ferozmente, o terceiro, que Pelé corta
sensacionalmente.
Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu
a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra.
Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar.
Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa.
E, então, livre na área inimiga, Pele achou que era demais driblar
Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol.
É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de
otimismo que faz de Pelé o craque imbatível.
Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta.
Põe-se por cima de tudo e de todos.
E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida
docilidade de cadelinha.
Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de
qualquer escrete.
Na Suécia, ele não tremerá de ninguém.
Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo.
Não se inferiorizará diante de ninguém.
E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos.
Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos
adversários uns pernas de pau.
Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria?
Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os
húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e
quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a
derrota.
Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma
dos vira-latas.
Os outros é que tremerão diante de nós.
Um comentário:
Rodrigues entronizou. Os franceses deram a coroa. Mas o detalhe principal. No final do texto. O pernambucano foi profético. O selecionado voltou com o título e a vira-latice diminuiu um pouco.
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