quarta-feira, dezembro 31, 2025

Feliz ano novo, velho futebol brasileiro!

Arte: Fernando Amaral

Entre narrativas e falácias: a temporada 2025 do futebol brasileiro

Na corda bamba dos erros reais e discursos fabricados, o equilibrista futebol brasileiro mostrou que controlar a narrativa vale tanto quanto levantar taças

Pedro Henrique Brandão

Antes de qualquer coisa, é preciso deixar algo cristalino: os resultados esportivos são — e sempre serão — indiscutíveis.

O futebol entrega o que nenhuma outra modalidade ousa prometer: a dor e a delícia de vez ou outra entregar a vitória ao azarão. Títulos não pedem revisão nem aceitam asteriscos.

Eles habitam, com justiça, os memoriais de glória dos vencedores e repousam, soberanos, nas salas de troféus.

Este texto, portanto, não nasce para negar conquistas, tampouco para revisar a história pelos atalhos enfadonhos do “e se”.

A vida real não admite condicional.

O tempo só anda para frente e — ao menos no universo conhecido — não aceita realidades paralelas.

O que merece reflexão é outra coisa: o que estamos fazendo quando passamos a construir realidades paralelas dentro de um universo absolutamente objetivo?

O futebol brasileiro de 2025 não gritou apenas por meio de gols, títulos e derrotas.

Ele gritou, sobretudo, por meio das narrativas que escolhemos amplificar — e das falácias que aceitamos consumir.

Peço licença pela metafísica inicial.

Ela é necessária para afastar qualquer acusação de clubismo barato.

Não se trata de defesa apaixonada de quem perdeu nem de ressentimento contra quem ganhou.

Até porque — vocês já ouviram isso antes — ‘não acho que quem ganhou nem quem perdeu, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder’.

A continuar tudo como foi em 2025, a frase nunca foi tão profética.

A arbitragem: da crítica histórica à ficção conveniente

A arbitragem é alvo desde que o futebol decidiu confiar sua justiça a homens e mulheres de apito.

A injustiça, aliás, é parte estrutural do jogo.

Quem, em sã consciência, deseja retirar o único título mundial dos inventores do futebol alegando que aquela bola não entrou em Wembley?

Em 2025, porém, a crítica legítima se transmutou em verdade paralela.

A chamada “crise da arbitragem” produziu uma narrativa sedimentada: a de que o Palmeiras teria sido sistematicamente beneficiado pelo apito.

Erros pipocaram em todas as rodadas, em todas as divisões, para todos os clubes.

Jamais se reclamou tanto — e com tanta razão — dos árbitros brasileiros.

O salto lógico veio depois.

Para transformar incompetência estrutural em favorecimento institucional foi apenas um passo.

Ou melhor: um pênalti.

No Choque-Rei disputado no Morumbis, Ramon Abatti Abel não viu, não interpretou e não marcou uma penalidade clara.

O VAR alegou também não ter visto o óbvio e a divulgação do áudio que registrou a conversa entre os responsáveis pela lambança escancarou que a arbitragem brasileira é incapaz de atravessar a rua sozinha.

O Palmeiras venceu.

Curiosamente, ninguém se perguntou como o São Paulo, vencendo por 2 a 0 até os 30 minutos do segundo tempo em casa, sofreu três gols em 20 minutos.

A derrota foi explicada exclusivamente pela arbitragem.

Plantada a falácia e fabrica a narrativa.

Estava feito o estrago.

A partir dali o comportamento dos árbitros mudou — ao menos no discurso.

Menos VAR, mais bola rolando, critérios “ajustados” na conversa, jamais na prática.

No duelo entre líder e vice-líder, no Maracanã, a fragilidade de mais um dos “melhores” árbitros do país — que só tem péssimos árbitros — resultou na não marcação de um pênalti tão claro quanto o anterior.

O favorecimento havia trocado de lado?

A resposta honesta é simples: não houve favorecimento algum.

Houve, isso sim, uma arbitragem ruim, amadora na pior acepção da palavra e incapacitada por ego e pressões que se equivalem em grandeza e danos.

O problema é de formação. Em 2025 foi, sobretudo, um problema de informação.

A abertura de microfones para torcedores travestidos de analistas consolidou no imaginário coletivo a ideia de que o Palmeiras foi ajudado e mesmo assim fracassou.

Some-se a isso a força simbólica do clube de maior torcida do país, a lógica da polarização que vende cliques e manchetes e a fragilidade comunicacional de quem não soube reagir.

Estava armado o picadeiro, aliás, o cenário perfeito.

Investimento, luta de classes e a falácia do “primo rico”

Como se a arbitragem não bastasse, surgiu a segunda narrativa palatável: a do dinheiro malgasto.

Repetiu-se à exaustão que o Palmeiras investiu R$ 700 milhões e não ganhou nada, enquanto o Flamengo, o “primo pobre”, teria vencido com menos.

A luta de classes, fenômeno social secular, funcionou novamente.

O que não se perguntou foi o óbvio: só o Palmeiras investiu?

Só o Palmeiras perdeu?

Ser vice é pior do que ser sexto colocado?

Os números desmontam o enredo.

O Palmeiras liderou os investimentos em 2025 com pouco mais de R$ 700 milhões.

Logo atrás vieram Botafogo (R$ 665 milhões) e Flamengo (R$ 277 milhões).

Doze reforços chegaram ao clube paulista — mais que um time inteiro — para reformular um elenco envelhecido e, gostem ou não, multicampeão.

O resultado esportivo?

O Palmeiras foi vice do Paulista, do Brasileiro e da Libertadores.

O Botafogo terminou em sexto no Brasileirão, caiu nas oitavas da Libertadores e sequer chegou às fases finais do estadual.

O Flamengo, com um terço do investimento, conquistou três títulos e saiu fortalecido.

Mas a análise honesta exige perspectiva histórica.

Em 2024, o Flamengo investiu mais que o Palmeiras.

Em 2023, novamente.

No recorte desde 2019, os investimentos dos dois clubes são semelhantes — R$ 1,7 bilhão do alviverde contra R$ 1,9 bilhão do rubro-negro — assim como suas conquistas.

A explicação para o recorte é simples: Flamengo e Palmeiras têm times montados ao longo de um período e não apenas nesta temporada.

Do time titular enviado por Filipe Luís ao gramado do Monumental de Lima, na decisão da Libertadores, apenas Jorginho, Carrascal e Samu Lino chegaram à Gávea em 2025.

Por outro lado, nenhum dos 11 titulares foi formado nas categorias de base do clube.

Portanto, todos movimentaram, em algum momento, valores dos cofres rubro-negros.

O Flamengo venceu mais títulos.

A diferença média de custo por taça — se é que isso possa ser mesurado — gira em torno de R$ 40 milhões.

Isso explica o futebol?

Não.

Mas repetir que “investiu R$ 700 milhões e não ganhou nada” é mais simples, mais vendável e mais confortável.

O doping financeiro que não incomoda

Antes que o ano acabasse, mais uma narrativa se impôs — talvez a mais grave.

O Corinthians conquistou a Copa do Brasil operando com uma dívida próxima de R$ 2,7 bilhões.

Deve mais do que Palmeiras e Flamengo investiram em contratações nas últimas sete temporadas.

Três dias antes da final no Maracanã, o Corinthians divulgou um balancete indicando um déficit de R$ 204,2 milhões até outubro.

A previsão orçamentária para 2026, aprovada pelo — fantasioso — Conselho Deliberativo no início daquelas semanas, projeta o clube fechando o ano no azul, com superávit de R$ 12 milhões e de R$ 320 milhões.

O clube sofreu transfer ban da Fifa em razão da dívida de R$ 33 milhões com o Santos Laguna pela compra do zagueiro Félix Torres.

A entidade máxima do futebol também impôs outras condenações pela falta de pagamento na contratação de jogadores e o valor a ser pago chega a R$ 120 milhões.

Em qualquer país sério — caso deixassem um time desse seguir competindo —, o prêmio com o título da Copa do Brasil, cerca de R$ 98 milhões, seria usado para abater a dívida.

Não no Brasil.

Não com o Corinthians.

E aqui mora o silêncio ensurdecedor: como esse modelo segue sendo celebrado?

Como um clube estruturalmente deficitário permanece competitivo, enquanto agremiações com contas equilibradas são rebaixadas e desaparecem da elite?

Isso não é a injustiça poética do futebol.

É doping financeiro institucionalizado e celebrado por todos os atores do futebol.

Jejuns, estigmas e o faminto da vez

Coube ao Vasco da Gama, vice-campeão da Copa do Brasil, carregar a última cruz — não a de Malta.

O clube passou a ser definido por um “jejum colossal” de 14 anos sem títulos nacionais.

A história, porém, é menos cruel do que a narrativa.

O Palmeiras ficou 14 anos sem títulos nacionais entre 1998 e 2012.

O Corinthians esperou 80 anos pelo primeiro de sua sala de troféus.

O Flamengo atravessou um deserto de 14 temporadas entre 1992 e 2006.

Fases ruins são regra, não exceção. Mas o jejum só pesa sobre o faminto da vez.

Joguem pedra no Vasco da Gama, a Geni da vez.

Sem títulos, mas com um plano de reestruturação financeira e administrativa que pouco é mencionado mesmo quando enfrenta um gigante…da inadimplência.

Gigante que segue empilhando troféus e é celebrado como o “time do povo” num país que ostenta um povo com mais de 80 milhões de endividados.

George Orwell escreveu que a história é contada por quem vence a guerra.

O futebol brasileiro de 2025 escancarou algo ainda mais desconfortável: quem controla a narrativa com falácias, vence antes mesmo do apito final.

Aos vencedores, a glória.

Aos derrotados, o aprendizado — e a obrigação de entender que, no futebol moderno, ganhar o jogo já não basta.

É preciso disputar a história.

Feliz ano novo, velho futebol brasileiro!

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