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REPORTAGEM EMOTIVA COM A MÃE DE FEHÉR: «A VIDA FOI CRUEL CONOSCO»
Anikó Fehér quebra o silêncio de 13 longos anos numa conversa com
Record, onde fala do vazio que o filho deixou
Por Rita Kamocsai para o Jornal Record de Portugal
*O texto foi mantido no original.
"A nossa vida mudou totalmente naquela noite terrível. Sempre que
alguém refere o nome dele, lembramo-nos, vemos a imagem dele, ficamos com um nó
na garganta, uma dor terrível percorre o nosso coração e os nossos olhos
enchem-se imediatamente de lágrimas", começa Anikó, a mãe de Miklós
Fehér, antigo jogador do Benfica e da seleção húngara que morreu aos 24 anos.
Ela nunca falou aos jornalistas
depois da tragédia ocorrida há 13 anos.
Até agora, tinha sido o pai,
também Miklós Fehér e também antigo jogador, a quem tinha cabido essa missão.
Talvez todos os adeptos do
Benfica, e não só, ainda se lembrem do último sorriso de Miklós Fehér no
Estádio D. Afonso Henriques, em Guimarães, antes de cair no relvado, naquela
noite chuvosa de 25 de janeiro de 2004.
Mas a memória dele foi-se
desvanecendo em Gyor e em Lisboa também.
A dor que ficou no coração da
família, essa, nunca passou.
"Os nossos dias, os nossos anos, são os mesmos: acordamos e
fazemos as nossas rotinas. Sei que facilmente poderíamos enlouquecer desta
maneira, mas também há a Orsi, a nossa filha, e protegemo-la com todo o nosso
amor, ajudamo-la, é a única coisa que nos faz continuar", prossegue a
mãe, que teve de interromper várias vezes a entrevista para limpar as lágrimas
dos olhos e acalmar o coração.
A família esteve em Lisboa várias
vezes nos últimos anos.
Ficam simplesmente em frente à
estátua do filho no Estádio da Luz, sentem-se quebrados e perguntam "Porquê?".
Ninguém sabe a resposta.
Os pais vão viajar para Lisboa
para assistir ao jogo entre Portugal e Hungria no Estádio da Luz, antiga casa
de Miklós.
"Ainda não sei como faremos. Vai ser no estádio do Benfica e
sentimos que devemos algo aos portugueses e ao Benfica, porque recebemos muito
amor e força da parte deles. Devemos-lhes muito. Acompanhamos os jogos do
Benfica e torcemos por eles. A Orsi vai muitas vezes a Lisboa também, por causa
do trabalho dela. É modelo de biquínis e tira fotos lindíssimas junto ao mar.
Muitas vezes ela e um amigo vão levar flores novas ao Miki… O nosso filho
causou-nos muita dor, mas também nos deu um bom amigo. Chama-se Rui Sousa, um
empresário português, bem como a sua família. O Miki amava-os muito e ainda
somos bons amigos. Estivemos no jogo entre Portugal e Hungria em Marselha
durante o Euro’2016", conta.
Miki em toda a parte
A família abriu um museu em Gyor,
onde vive, no ano da morte do futebolista.
Tinha objetos de Miklós Fehér,
como por exemplo camisolas da sua infância e as muitas medalhas conquistadas na
carreira.
Mas já fechou.
No aniversário da sua morte,
houve uma exposição no seu primeiro estádio, ETO Park.
Depois, os familiares quiseram
dar tudo ao Museu do ETO, mas o espaço nunca abriu e guardam tudo em casa.
"Guardei tudo sobre ele: recortes de jornais, camisolas dele,
camisolas que recebeu em troca, os troféus, as medalhas e ainda guardo as
camisolas que usou em criança. Bolas, artigos pessoais, fotografias dos amigos;
fotos e vídeos a jogar pela seleção, Benfica, FC Porto, Salgueiros e Sp. Braga;
golos, cachecóis dos clubes. Como eu disse, tudo. Temos três quartos
cheios", revelou Anikó.
Além disso, os pais conseguem ver
a cara do filho em ‘casa’, em Gyor, nas paredes da academia de futebol que tem
o seu nome, Miklós Fehér.
Aberta em 2007, serve de casa a
jovens futebolistas que vêm de longe.
O objetivo da ETO FC Gyor foi dar
oportunidade a talentos, pelo que o clube fica também encarregue da sua
educação, tendo criado uma escola secundária em 2008.
Foi a primeira academia de
futebol na Hungria e é tão completa que ganhou o prémio de melhor academia de
elite do país em 2011.
Para o pai, há um misto de
sentimentos sempre que passa junto ao local.
"Dói muito, claro, mas também estou orgulhoso porque vejo tudo o
que o meu filho fez em tão pouco tempo e que até tem uma academia de futebol
com o nome dele. Não há muitas pessoas que tenham deixado este legado com
apenas 24 anos", refere.
Assim acabou a nossa conversa.
Anikó pediu desculpa, mas não
conseguiu falar mais sobre memórias que lhe são tão dolorosas. Dissemos adeus.
"Para um pai ou mãe, não há nada pior do que perder um filho que
se ama tanto. A vida foi muito cruel conosco. O tempo não cura tudo, mas
ensina-nos a viver com a dor. O sorriso dele ficou para sempre no meu
coração", diz, ao terminar.
Uma frase ficou gravada nas paredes da academia
Ádám Nagy, atual capitão do ETO
FC Gyor (não confundir com o outro Ádám Nagy, médio do Bolonha que esteve na
mira do Benfica), é outra das pessoas marcadas pela vida e pela morte de Miklós
Fehér.
Tudo porque foi um dos produtos
da academia com o nome do futebolista.
"Foi uma honra para mim. Tive a oportunidade de aprender naquela
academia, que recebeu o nome de uma lenda. Ele era um exemplo para todos nós
que frequentámos o local, pois começou a carreira no ETO e vimos bem tudo o que
conquistou", explica.
A academia foi aberta pela
Fundação do Futuro, gerida pelo clube.
Na escola secundária, há lugar para 300
alunos.
Têm horários especiais, que incluem treino de futebol e aulas.
É da
forma que os jovens aprendem de tudo, como qualquer outro estudante, e têm
tempo para jogar futebol.
"Estou muito orgulhoso por ter aprendido a jogar futebol nesta
academia", diz Nagy.
Sobre Fehér, a primeira coisa que
lhe vem à cabeça é "uma entrevista
depois de um jogo".
"Ele disse ‘O futebol ensinou-me a ganhar, mas também a perder.
Ensinou-me que a alegria suplanta a tristeza, que o golo é a alegria total e a
cura para todas as oportunidades desperdiçadas", conta. Uma frase que
se pode ler nas paredes da academia.
"Vivíamos em frente um do outro quando éramos crianças, em Gyor.
Nós vivíamos no número 5, eles viviam no número 6. Jogávamos futebol juntos de
manhã à noite, íamos juntos para os treinos e continuávamos a jogar pela noite
dentro. Começámos a jogar no ETO em 1988 e subimos os escalões juntos até o
Miki deixar a Hungria, em 1998", recorda Péter Stark, antigo
futebolista do ETO e da seleção húngara, o melhor amigo de Miklós Fehér.
Jogaram juntos na seleção
olímpica, mas na principal acabaram por nunca se cruzar: a primeira
convocatória de Stark aconteceu no ano em que Miki morreu.
O antigo defesa, atualmente com
38 anos, é agora treinador da equipa de sub-13 do ETO Gyor, na tal academia que
ficou com o nome do melhor amigo.
É lá que jogam os seus dois
filhos.
E, no ano passado, instituiu o
prémio Miklós Fehér, que pretende atribuir ao melhor jogador da sua equipa em
cada ano.
"O Miki merece muito esta homenagem, ele era um verdadeiro
desportista. É terrível que não esteja conosco. A sua morte foi uma tragédia
incompreensível, principalmente para os pais dele. Eu falo muito dele e de
outras lendas do ETO aos meus jogadores e levo antigos jogadores ao balneário.
E organizo todas as nossas festas no restaurante dos pais de Miki, em Gyor-Szabadhegy.
No ano passado, em dezembro, dei pela primeira vez o prémio Miklós Fehér ao
melhor jogador da minha equipa. Ele ficou com algumas recordações do Benfica
que estavam com os pais de Miki", explica o treinador.
Péter Stark nunca esteve em
Portugal.
Enquanto jogador, acabou sempre
por perder a oportunidade de visitar o país ao serviço da seleção húngara,
fosse por lesão ou por estar suspenso devido a acumulação de cartões amarelos.
E a verdade é que não tem
vontade, pois duvida que consiga encarar o busto de homenagem a Fehér, na porta
18 do Estádio da Luz.
"Acho que é melhor ficar assim. Sinto que a minha alma não tem
força suficiente para estar em frente ao Miki", termina Stark.
Túmulo foi vandalizado
As memórias são fortes, mas não
são respeitadas por todos.
O túmulo de Fehér, no cemitério
de Gyor, foi vandalizado e roubado há cerca de quatro anos.
Desapareceram três figuras, mas a
polícia não conseguiu encontrar os responsáveis.
Miklós foi sepultado com a sua
camisola do Benfica, com cachecóis dos colegas de equipa, um pedaço de relva do
Estádio D. Afonso Henriques, onde jogou pela última vez a 25 de janeiro de
2004, além de outras memórias.
Os ladrões tentaram partir o
vidro e, como não conseguiram, acabaram por destruir também o mármore.
Mas esta não foi a primeira vez
que alguém tentou roubar o túmulo: no ano da morte de Miklós Fehér, um cachecol
do Benfica desapareceu do local.
Muitas pessoas visitam
Gyor-Szabadhegy apenas para ver o local onde descansa o futebolista.
São outros jogadores, adeptos e
simples turistas que ouviram falar sobre a sua carreira e destino trágico.
Há poucos meses, em outubro,
Romeu, adjunto de Rui Jorge na Seleção Nacional de sub-21, aproveitou um jogo
diante da Hungria em Gyor-Gyirmót para passar pelo local.
O antigo avançado foi colega de
Fehér no FC Porto.