Charge: Baptistão
Apitos nos colégios
Uma iniciativa pioneira promove
nas salas de aula a aprendizagem da arbitragem e de seus valores
Juan L Cudeiro
De A Coruña/Espanha – Para O El
País
Parece irreal, mas está
acontecendo no colégio Liceu La Paz, de A Coruña.
Na hora do recreio há
crianças que renunciam a jogar futebol, pegam dois cartões e um apito, e
começam a comandar alguma das partidas organizadas no pátio.
Por trás há uma iniciativa
pioneira na Espanha que permite que entre as atividades extracurriculares
oferecidas nas escolas figure uma denominada de arbitragem.
O Comitê Técnico Galego de
Árbitros e a Federação Galega de Futebol a desenvolvem há três semanas, e Rubén
Eiriz Mata, árbitro que atua na Segunda Divisão do Campeonato Espanhol, a
ensina em A Coruña.
Na semana que vem um colega seu,
José Antonio Fernández Rodríguez, começará a fazer o mesmo no colégio salesiano
de Ourense.
“Queremos que seja o início de algo, de ajudar a aproximar a figura do
árbitro, e que nos vejam como um esportista a mais. Mas também que sirva para
transmitir valores muito úteis para a vida cotidiana”, explica Bernardino
González Vázquez, o presidente dos árbitros galegos.
Durante nove temporadas ele apitou
na principal categoria. “Foi nesse tempo,
falando com meu preparador Álvaro Castro, que nos pareceu que poderia ser uma
boa ideia.”
Rubén Eiriz sentiu certa vertigem
quando lhe fizeram a proposta.
A atividade foca em crianças de 9
a 13 anos, do quinto ano do ensino primário ao segundo ano da educação
secundária obrigatória na Espanha (ESO).
Não parecia provável que houvesse
um grande número dos que sonham em ser árbitro.
“De certo modo me dava agonia e me intrigava a ideia de que garotos
dessa idade pudessem entender minha paixão, que conseguisse mostrá-la como algo
atraente e percebessem que se trata de um esporte, e não algo para o qual é
preciso estudar um livro de regras do jogo.”
Ele se surpreendeu quando, antes
de começar, no início do mês, lhe disseram que 37 crianças se haviam inscrito.
Agora passam de sessenta, onze
são meninas e os alunos do terceiro e quarto ano do ESO pediram para fazer
parte da atividade, uma das quase quarenta que o colégio oferece.
Eiriz já passou a um estágio
superior ao da perplexidade:
“Estou impressionado. Alguns até deixaram de praticar outro esporte
para se inscreverem em arbitragem. Comecei a apitar com nove anos, mas jamais
me ocorreu fazer isso no pátio na hora do recreio.”
O sucesso da oferta e o leque de
possibilidades que se abrem para poder reproduzi-la convida a refletir sobre os
motivos que tornam atraente uma tarefa aparentemente tão injuriada.
“A percepção da arbitragem melhorou muito, mas sempre se fala de nós
quando cometemos erros. Somos desconhecidos. E nos deparamos com muitas
crianças que se surpreenderam ao saber como é a nossa preparação para uma
partida”, afirma González Vázquez.
A curiosidade convida ao
conhecimento, mas não só as crianças aprendem.
“Também procuramos socializar, de alguma maneira mudar preconceitos e,
por intermédio dos pequenos, chegar às famílias. Mas também lhes ensinamos
valores intrínsecos ao nosso trabalho e que vão ajudá-los a se relacionarem com
os demais”, detalha Eiriz Mata.
Tem a ver com o controle das
emoções, o saber estar, a imagem impecável, a pontualidade e a ordem na
vestimenta, saber escutar, modular o tom de voz, atuar de alguma maneira como
psicólogo e, ao mesmo tempo, juiz, empregar qualidades como a empatia e a
tolerância, e ao mesmo tempo saber tomar decisões e assumir a liderança.
“Responsabilidade e maturidade”, resume González Vázquez.
Assim, no leque de 39 atividades
extracurriculares oferecidas pelo Liceu La Paz, de A Coruña, uma delas ganha
espaço talvez porque franqueie o acesso a um entorno que muitos desconhecem.
Eiriz Mata elabora uma série de
brincadeiras para ajudar a melhorar a linguagem corporal, oferece orientações
sobre alimentação e até emprega muitas vezes o idioma inglês, não só com
expressões que têm a ver com futebol, mas que podem ser úteis longe da
atividade esportiva.
“Por exemplo: fazer-se entender no aeroporto quando você vai viajar”,
detalha.
Eiriz sabe do que fala porque tem
experiência internacional e esteve à frente da final do último Mundial de
futebol de praia.
González Vázquez vai por essa
linha. “um total de 90% do que aprendi
arbitrando me serve para a vida.”
Por ora, é uma experiência
piloto, uma maneira de testar em algumas escolas galegas que linguagem empregar
e em qual estrutura curricular focar.
“Ao finalizar o curso faremos um dossiê. Tomara seja uma atividade que
tenha continuidade em mais locais”, afirma Eiriz, que já começa a perceber
que pode formar quadros e está de olho em vários de seus alunos.
“Vê-se neles carisma, elegância, caráter, predisposição...”
Além disso, afirma que a
iniciativa tem mais estrada do que haviam suspeitado, e não só com o futebol em
foco, mas também em outros esportes.
“O árbitro nasce, mas, sobretudo, se faz”, argumenta.