Imagem: Autor Desconhecido
Como a Segunda Guerra Mundial fez de um dos maiores artilheiros da
história ser renegado
Por: Leandro Stein para o Trivela
Quatro gols em um jogo de Copa do
Mundo.
Um feito extraordinário, e um
tanto quanto raro.
Apenas sete vezes um jogador
conseguiu balançar as redes quatro ou mais vezes em um jogo de Mundial, e a
última foi há 22 anos.
A primeira, por sua vez, ajudou a
abrilhantar uma das partidas mais fantásticas já realizadas no torneio.
Foi em 1938, quando Brasil e
Polônia se digladiaram até a prorrogação em Estrasburgo.
Ernest Willimowski (na foto com a camisa da Alemanha, se preparando para chutar) anotou três
tentos (um aos 44 do segundo tempo) e ainda sofreu um pênalti, convertido
Friedrich Scherfke, durante o 4 a 4 do tempo regulamentar.
Já na prorrogação, encerraria a
sua conta, embora o esforço tenha sido em vão diante da genialidade de
Leônidas.
Contudo, aquele que deveria ser
celebrado como um dos maiores artilheiros de todos os tempos, tem seu passado
renegado.
Lenda esquecida, que completaria
100 anos no dia 23 de junho, se ainda estivesse vivo.
Frio e dono de um oportunismo
notável, habilidoso driblador, exímio finalizador, capaz de dominar a área
apesar de seu 1,70 m: todos os predicados sobre Willimowski se confirmam
através de seus números impressionantes.
Levando em conta apenas os jogos
oficiais, o atacante marcou 554 gols, que o colocam como 10° maior artilheiro
da história segundo o RSSSF.
Se forem somados os amistosos
também, a marca chega aos 1.175 tentos – o que é relevante, considerando o
período acidentado no qual atuou.
E, pelas seleções nacionais, o
desempenho segue notável.
Defendendo a Polônia, balançou as
redes 21 vezes em 22 partidas.
Depois, se juntou à Alemanha, com
13 gols em oito aparições.
Mas foi justamente a Segunda
Guerra Mundial, responsável por mudar a sua representação, que o relegou ao
esquecimento.
Que o impediu de se tornar ainda
maior.
É importante entender, antes de
mais nada, o contexto sob o qual Willimowski estava inserido.
O atacante nasceu na cidade de
Kattowitz, ainda parte do Império Alemão em 1916 (e historicamente ocupada por
povos germânicos), batizado como Ernst Otto Pradella.
Seu pai, Ernst-Roman, morreu
durante a Primeira Guerra Mundial e o garoto acabou criado pela mãe, Paulina
Florentyna.
Em 1922, parte da região da
Silésia foi unificada à Segunda República da Polônia.
Pouco depois, o adolescente
adotou o sobrenome de seu padrasto quando completou 13 anos.
Assim, assumia também a
identidade polonesa como Willimowski – embora ele preferisse se referir como um
silésio.
Jogando nas categorias de base do
FC Kattowitz, o jovem promissor se transferiu ao Ruch Wielkie Hajduki (atual
Ruch Chorzów) quando tinha 17 anos.
E, por lá, se transformou em uma
das maiores estrelas do futebol polonês.
Willimowski conquistou quatro
vezes o campeonato nacional e por três vezes foi seu artilheiro.
Autor de 10 gols em uma mesma
partida, atribuía o talento ao “talismã” no pé direito, com seis dedos.
Convocado para a seleção desde
1934, perdeu a chance de disputar as Olimpíadas de 1936 após ser suspenso por
um ano, por conta de sua indisciplina (entenda-se: festas e bebedeiras) fora de
campo.
Quarta colocada, a Polônia
poderia ter muito mais sucesso com o seu craque.
Ao menos o atacante voltou a
tempo de disputar a Copa do Mundo de 1938.
E, mesmo com apenas uma partida,
escreveu sua história nos Mundiais.
Até hoje, é o único atleta a
marcar quatro gols em um jogo contra a seleção brasileira.
Deslumbrados, dirigentes
brasileiros lhe ofereceram um contrato para vir jogar no país, o que lhe
interessou, mas acabou impedido pela federação polonesa.
Em 1939, porém, a Segunda Guerra
Mundial estourou a partir da anexação da Polônia pelo Terceiro Reich.
E, de ídolo nacional, herói na
vitória sobre a Hungria apenas quatro dias antes do conflito, Willimowski foi
considerado um traidor por recobrar sua cidadania germânica.
Primeiro, ele voltou para
Kattowitz, onde as autoridades nazistas formaram um esquadrão com jogadores
locais para tentar insuflar sobre os silésios uma identidade alinhada com o
novo poder central.
Já em 1940, o atacante rompeu de
vez os seus laços com a Polônia, ao se mudar para a Saxônia e se juntar ao PSV
Chemnitz.
Atuar em um clube alemão, no fim
das contas, ajudou-o a não combater na guerra.
Era o caminho para escapar dos
riscos em uma Europa assolada.
“Por que meu pai aceitou defender o Terceiro Reich? Porque ele não
queria morrer”, declarou sua filha, Sylvia Haarke, em entrevista concedida
em 2007.
Em 1934, sua transferência ao
Ruch já tinha desagradado um oficial que, posteriormente, ganhou alta patente
entre os nazistas e tentou atrapalhar a carreira do jogador.
O talento, todavia, preponderou.
Naquele momento, Willimowski se
tornou um dos grandes craques do futebol no Terceiro Reich.
Em 1941, passou a ser convocado
por Sepp Herberger para a seleção alemã.
Chegou a disputar um amistoso
contra a Romênia em plena Silésia, aclamado na goleada por 7 a 0 dos
germânicos.
Além disso, formava uma parceria
de ataque avassaladora com Fritz Walter.
Contudo, em 1943, a equipe
nacional interrompeu suas atividades diante dos desdobramentos da guerra.
O artilheiro passou a se dedicar
apenas à carreira nos clubes, transferido ao Munique 1860.
Pior, ainda viu sua mãe ser
levada ao campo de concentração de Auschwitz, após se envolver amorosamente com
um judeu russo.
A influência do filho a salvou da
câmara de gás.
Em 1945, com o fim da Segunda
Guerra Mundial, Willimowski ainda tentou retornar à Silésia.
Foi impedido pelo novo regime que
se instaurava, por ter “traído a pátria”.
Então, o atacante permaneceu na
Alemanha.
Considerado pária, perambulou por
pequenos clubes, até conseguir se estabelecer no VfR Kaiserslautern, o segundo
time da cidade.
Embora sua equipe não disputasse
a taça, o artilheiro marcou 70 gols em 90 jogos no Campeonato Alemão entre 1951
e 1955.
Aos 38 anos, tinha bola para
estar na Copa do Mundo de 1954, mas acabou ignorado pelos germânicos, o que se
transformou em uma grande decepção na sua vida.
O Nationalelf, treinado novamente
por Sepp Herberger, tinha como base justamente os rivais do 1. FC
Kaiserslautern.
“É provavelmente o único jogador no mundo que marcou mais gols do que
teve chance de fazê-los. Para mim, foi o melhor atacante da história”,
escreveu em sua biografia o ex-companheiro Fritz Walter, capitão na conquista
em Berna.
Willimowski jogou até os 43 anos.
Depois, seguiu com sua vida
pacata na Alemanha Ocidental, se recusando a trabalhar para a federação.
Em 1974, na época da Copa do
Mundo, chegou a se encontrar com o técnico Kazimierz Górski, um antigo fã nos
tempos de Ruch.
Contudo, o pedido do veterano
para visitar o elenco polonês acabou recusado pelo governo.
O ex-atacante nunca mais voltaria
à Polônia.
Em 1995, até foi convidado para
uma homenagem em campo pelo Ruch Chorzów, mas precisou declinar, com sua filha
doente.
O craque faleceu dois anos
depois, em Karslruhe, onde estabeleceu residência e tocava um restaurante.
As memórias sobre Willimowski
acabaram no limbo.
Traidor para os poloneses e
símbolo do Terceiro Reich para os alemães, costuma ser aclamado com mais
frequência por aqueles que clamam o nacionalismo silésio.
Pouco, para um craque
reconhecidamente entre os melhores do mundo durante o seu auge, mas que viu a
guerra transformar sua reputação.
“Se a Copa do Mundo de 1942 tivesse acontecido, talvez não falássemos
sobre Pelé, e sim sobre Willimowski”, afirma Andrzej Gowarzewski, um dos
jornalistas esportivos mais condecorados da Polônia.
A realidade, porém, foi bem mais
cruel com o artilheiro, diante das decisões que precisou tomar.