Imagem: Autor Desconhecido
A maratona da liberdade
Por Pedro Henrique Brandão, do Universidade do Esporte
O dia em que Kathrine Switzer
venceu a corrida que derrotou o machismo, provou que lugar de mulher é onde ela
quiser e se tornou um símbolo na luta pela igualdade de gênero.
Num tempo em que a igualdade de
gênero passava longe da fútil e irrelevante discussão sobre azul ou rosa e
quando as imposições machistas proibiam mulheres de estarem em igualdade com
homens “por não serem capazes”, Kathrine Switzer rompeu barreiras e provou ser
possível uma mulher correr os 42.195 metros de uma maratona.
Em 19 de abril de 1967, Kathy
conseguiu completar a Maratona de Boston e entrar para a história como a
primeira mulher a correr uma maratona oficialmente inscrita e com um número de
competidora no peito, o lendário 261.
Até aquele dia a participação de
mulheres era vetada em qualquer prova de rua no país.
Um ano antes, em 1966, Roberta
Gibb correu a maratona sem receber um número de inscrição.
Porém antes de entrar na história
provando que lugar de mulher também é na maratona, Kathrine precisou comprovar
ao seu próprio treinador que podia correr mais de 42 km.
Arnie Briggs foi o homem que
acolheu Kathrine quando ela quis se juntar ao time masculino - já que não havia
uma equipe feminina - de cross-country da faculdade de Syracuse, no estado de
Nova Iorque.
Briggs era um veterano
maratonista quando Kathrine o conheceu.
Ela com 19 anos, ele com 50 anos,
um problema no joelho e muitas histórias para contar.
Foi contando histórias sobre a
Maratona de Boston que o treinador contagiou a jovem aluna com a vontade de
disputar a tradicional prova.
Durante mais de 70 anos a
maratona foi considerada como impossível para mulheres, na verdade impensável,
já que na época acreditava-se que uma mulher poderia correr no máximo 2,5 km.
A Maratona de Boston é a segunda
mais antiga do mundo perdendo apenas para a Olímpica que é disputada desde
1896, nos Jogos de Atenas.
Porém é a mais tradicional por
ser disputada anualmente sem intervalos desde 1897.
Em dezembro de 1966, quando
Switzer disse a Briggs que queria correr em Boston, o treinador foi contra, na
cabeça de um homem cinquetenário da primeira metade do século passado não cabia
a ideia de uma mulher correr uma maratona.
Para dissuadir Kathy da ideia,
Briggs disse: “mulheres são muito frágeis e fracas para correrem 42 km” e que
“nenhuma dama correu uma maratona”.
Mesmo assim a jovem insistiu que
queria e poderia correr.
Sem saída o veterano treinador
acabou aceitando a ideia e prometendo que ele próprio faria a inscrição de
Switzer se a jovem provasse que poderia suportar a distância.
Ela mais do que provou ser capaz.
Ao concluir os 42 km disse ao
treinador que poderia ir mais longe e propôs que corressem por mais 10 km.
Briggs foi quem não suportou e
desmaiou metros depois do limite da maratona.
Depois de se recuperar sustentou
sua palavra e na manhã seguinte foi ao encontro de Switzer para ajudá-la com a
inscrição na prova.
Esse tino para fazer o que todos
diziam que uma mulher não poderia fazer nasceu com Kathrine, que sempre
acreditou que meninos e meninas são igualmente capazes, mas foi seu pai que a
ajudou no desenvolvimento de sua independência para que ela não fosse engolida
pelo machismo e as convenções sociais da época.
Quando contou ao pai que iria se
inscrever para ser líder de torcida no colégio ouviu um conselho que levaria consigo
por toda a vida:
“Ser líder de torcida é algo bobo. O jogo é no campo. A vida é para
participar, não para assistir. Você deve fazer um esporte e ter pessoas
torcendo por você”.
Assim, aos 12 anos, começou
correr para entrar em forma e participar do time de hóquei da escola Linchburg,
na Virgínia, onde estudava.
Corria cerca de 1,5 km toda
manhã, algo bastante incomum no início dos anos 1960, principalmente para uma
garota.
O desempenho mediano no hóquei
fez Switzer entender – como acontece com quase todo jornalista esportivo – que
para permanecer próxima ao esporte o caminho mais certeiro seria estudar
jornalismo para unir o conhecimento e gosto pelo esporte com a comunicação e
ser uma jornalista esportiva.
Em 1966, aos 19 anos, Kathy
chegou a Syracuse para se matricular no curso de jornalismo da universidade
local.
Depois de vencer e convencer seu
treinador, Kathrine notou que não havia proibição no regulamento da maratona
que impedisse mulheres de participarem da prova.
Foi então que fez sua inscrição
com as iniciais de seu nome, K. V. Switzer, da mesma forma como assinava seus
trabalhos na universidade.
“Achamos engraçado não ter
nenhuma especificação de sexo na inscrição para a prova, já que só homens
loucos participavam dela. Acabei me inscrevendo com o nome de K.V. Switzer, não
por medo de ser pega, mas pelo meu sonho de ser escritora e minhas referências
literárias na época, J.D. Salinger, E.E.Cummings, T.S. Elliot e W.B. Yeats”.
O fato de usar as iniciais na
inscrição foi determinante para que Kathrine pudesse fazer história.
A organização da maratona
provavelmente pensou ser mais um homem, até porque nenhuma mulher se
candidataria para o absurdo que representava uma dama em uma maratona.
Na véspera da corrida saíram de
Syracuse rumo a Boston: Kathrine Switzer, a mulher que escreveria a primeira
página da história do atletismo feminino, Arnie Briggs, o treinador, John
Leonard, um colega da equipe de cross-country, Thomas Miller, jogador de
futebol americano e o então namorado de Kathrine. A distância de pouco mais de
500 km foi percorrida de carro durante a madrugada.
Quando chegaram a Boston pela
manhã, Kathrine queria apenas tomar um rápido café da manhã, mas foi convencida
por Briggs a se alimentar bem para ter energia e conseguir cumprir a prova.
Fazia muito frio naquela manhã de
início de primavera em Boston e os competidores se protegiam com sacos
plásticos.
Kathrine se escondia num desses
sacos plásticos e com um capuz cobria os cabelos longos.
Não por medo de ser descoberta,
mas para se manter aquecida como faziam tantos outros corredores.
Na concentração dos atletas antes
da linha de largada alguns participantes reconheciam Switzer como mulher e a
cumprimentavam pela coragem de correr uma maratona.
Os fiscais não a reconheceram
como mulher e Kathrine passou incólume ao procedimento de verificação dos
números de competição.
A largada foi dada e lá se foi
Kathrine Switzer carregando o número 261 no peito e ainda sem saber que faria
história com suas passadas.
O grupo de Syracure permaneceu
correndo próximo de Kathrine.
Assim a jovem provava metro a
metro que a maratona era sim possível para uma mulher.
Tudo corria bem até que na altura
do terceiro quilometro, o caminhão levando a imprensa que cobria a prova passou
próximo ao grupo e um repórter viu Kathrine correndo.
Sem pensar duas vezes gritou “tem
uma mulher correndo a maratona”, o aviso fez todas as câmeras que estavam sobre
o caminhão focarem a jovem.
“Eu não estava tentando me esconder de maneira
nenhuma, pelo contrário, eu estava tão orgulhosa de mim mesma que usava até
batom”.
Porém o aviso também fez Kathy
entrar no foco do ódio e do machismo de Jock Semple, diretor da Maratona de
Boston.
Sample saltou do caminhão e
partiu para cima de Switzer exigindo que ela saísse da prova e entregasse o
número de inscrição.
Enfurecido e aos gritos Sample
ordenava: “Saia da minha prova e me dê esse número de peito!”.
Foram momentos, talvez segundos
de muita tensão e medo, mas com a ação rápida de Thomas Miller, que aproveitou
suas habilidades de jogador de futebol americano para empurrar e bloquear o
avanço de Sample, Kathrine conseguiu se desvencilhar e romper maratona adentro
sob os gritos de incentivo de seu treinador como descreve a corredora:
“Jock era conhecido por seu
temperamento violento. Em um determinado momento, ele se enfureceu e veio
correndo atrás de mim, gritando “saia da minha prova e me dê esse número de
peito!” Eu morri de medo. Para minha sorte, meu namorado Tom Miller, de 115 kg,
conseguiu empurrá-lo, enquanto Arnie gritava “corra que nem uma louca!”.
O resto é história.
Minha presença infame não foi
oficialmente registrada pela organização.
Terminei em torno de 4h20m”.
Não foi fácil terminar a prova
depois do incidente com o diretor da maratona.
Um conflito entre Kathrine e seu
namorado aconteceu.
Miller era confederado pela
Universidade de Syracuse e temia ser desligado por ter empurrado Jock Sample.
Enquanto chorava por medo e
vergonha pelo caos a sua volta, Kathrine corria e dizia a seu treinador “que
terminaria a maratona nem que fosse de joelhos, pois se desistisse ninguém
acreditaria que uma mulher seria capaz de correr uma maratona”.
A menina que apenas queria correr
uma maratona por gostar e se sentir capaz, percebeu ali a grandiosidade de seu
feito.
Diante da estupidez furiosa de
Jock Sample a dimensão do gesto de Kathrine foi ampliada em frente às câmeras
que registravam tudo, cada movimento da história sendo escrita.
No meio da maratona a menina que
gostava de correr deu lugar a uma engajada mulher que luta pela igualdade de
gênero.
Ainda assim Kathrine reconhece
quem a ajudou e chama de “sorte” sua resiliência:
“Eu tive sorte na vida. Minha
família e Arnie sempre me disseram que eu podia fazer tudo que eu quisesse.
Como mulher, nunca me resignei a brincar com bonecas ou ser uma líder de
torcida apenas. Sim, eu brincava de bonecas e usava vestidos, mas também subia
em árvores e praticava esportes”.
Mesmo com tudo que aconteceu na
manhã de 19 de abril de 1967, em Boston, as mulheres só foram aceitas em provas
de rua oficialmente em 1972, quando puderam, enfim, serem chamadas de
maratonistas.
Em 2017, por ocasião do
cinquentenário da histórica maratona de 1967, Kathrine Switzer voltou a Boston,
calçou os tênis e colou o número 261 no peito para concluir o percurso
novamente.
Após cruzar a linha de chegada o
número foi aposentado e nunca mais será usado na Maratona de Boston.
Entre a façanha, em 1967, e o
reconhecimento, 50 anos depois, em 2017, Kathrine correu 35 maratonas; fundou
um projeto que recebe como nome justamente o número e o sentimento com os quais
entrou na história, o 261 fearless (261 sem medo), que atua em 27 países
promovendo o empoderamento feminino no esporte; escreveu o livro “Mulher de
Maratona” e está eternizada, desde 2011, na Calçada da Fama das Mulheres dos
Estados Unidos.
A menina que nasceu em 5 de
janeiro de 1947, completou 72 anos de idade neste fim de semana, mas naquele
feriado do Dia do Patriota de 1967, correu por um propósito, correu por
mudança, correu por igualdade, correu quando todos lhe disseram ser impossível
e tornou possível o sonho de inúmeras outras mulheres.
Foi pelo que fez aquela jovem de
20 anos de idade, 52 anos atrás, que podemos apreciar uma das mais belas cenas
da história das Olimpíadas, quando a suíça Gabrielle Andersen luta contra o
próprio corpo, persiste à exaustão e, 20 minutos após a vencedora da prova,
cruza a linha de chegada da Maratona Olímpica para ser amparada por socorristas
que lhe ofereciam atendimento desde sua entrada no Estádio Olímpico, nos Jogos
de Los Angeles, em 1984.
Sem a coragem de Switzer a
Maratona Olímpica Feminina simplesmente não existiria.
Mas essa é outra história a ser
contada em outra oportunidade.
A história de Kathrine Virginia
Switzer é gigantesca pelo símbolo que Kathy se tornou para o esporte feminino,
para as mulheres em geral, contra o machismo e acima de tudo um símbolo de
humanidade, mas ela ainda consegue ser grandiosa o suficiente para resumir tudo
que fez em uma frase que serve para todos nós em qualquer área da vida:
“Tudo que você precisa é a
coragem de acreditar em si mesma e colocar um pé na frente do outro."