Imagem: Autor Desconhecido
Um craque
contra os burocratas
Roberto
Jardim/Ludopédio
A luta pela
liberdade nem sempre empunha bandeiras.
E na maioria
das vezes ganha pouca repercussão quando é individual.
Foi assim com
esse soviético chamado de Pelé Russo devido ao talento apresentado com a bola
no pé.
Além do
apelido que remete ao Rei, ele também pode ser comparado a outros dois grandes
nomes do futebol mundial: Afonsinho e George Best.
Aos 16 anos
já era apontado como futuro astro da seleção da então União Soviética.
Aos 19,
porém, bateu de frente com os burocratas soviéticos e acabou exilado dentro da
URSS às vésperas da Copa do Mundo da Suécia, em 1958, justamente aquela na qual
o Rei do Futebol debutou.
Quase como
antecessor de Afonsinho, segundo Pelé o primeiro homem livre do futebol, seu
crime foi defender o direito de jogar bola onde queria: o time que o revelou ao
futebol.
Além disso,
como o irlandês Best, teve uma vida boêmia, o que também não agradava os
poderosos do Kremlin naqueles anos pós-stalinismo.
Assim como
Edson Arantes do Nascimento, no Brasil, Eduard Anatolyevich Streltsov, já
mostrava antes dos 16 anos todo seu talento com a bola no pé nos campos de
Moscou, capital da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
A partir
dessa idade, assim como Pelé encantou os estádios brasileiros, o moscovita
ganhou os gramados soviéticos, levando torcedores a se amontoarem nas
arquibancadas para vê-lo jogar pelo Torpedo.
Titular dos
Automobilistas, como é conhecido o alvinegro moscovita, desde 1953, Eduard era
o xodó da torcida e do técnico Nikolai Morozov.
Naquele mesmo
ano, debutava com a camisa vermelha com a característica sigla CCCP (o
equivalente a URSS, no alfabeto cirílico), confirmando o que se esperava dele:
marcou três gols nos primeiros 45 minutos.
O jogo contra
a Suécia terminaria 6 a 0, com show de Eduard.
Ali ele
deslanchou.
Era tido como
figurinha certa no álbum da seleção soviética para o Mundial de 1958.
Enquanto o
eterno camisa 10 do Santos, já famoso como Pelé, brilhava, estreando justamente
contra a URSS — o craque de 17 anos deu passe para um dos dois gols de Vavá
marcou naquela partida –, Eduard, porém, sequer embarcou para aquele Mundial.
Garoto ainda,
amargava os primeiros dias dos 12 anos de prisão em um gulag na Sibéria.
O crime
alegado foi um estupro denunciado por uma jovem, em maio daquele ano.
O abuso
jamais foi oficialmente comprovado.
Meses antes
de a alegação de agressão vir à tona, Eduard, então com 19 anos, havia se
recusado duas vezes a deixar o seu Torpedo, além de ter negado um pedido de
casamento de uma adolescente filha de um alto nome do Politburo – o centro nervoso
da burocracia soviética.
A URSS
pós-Stalin
Antes de
seguirmos com a história de Eduard, vale lembrar como era a União Soviética
daqueles anos.
Depois de
revolução de 1917, a URSS viveu momentos de luta interna pelo poder,
estabilizando-se quando Joseph Stalin assumiu o poder a partir de 1920, com a
morte de Vladimir Ilyich Ulianov Lenin.
Com mão de
ferro, eliminando oposicionistas e incentivando a industrialização do País,
Stalin fechou a URSS ao restante do mundo.
Depois de
ajudarem na vitória sobre a Alemanha na Segunda Guerra (1939–1945), os
soviéticos “ganharam” uma série de países-satélite – Iugoslávia, Polônia,
Tchecoslováquia, Bulgária, Hungria, além da Alemanha Oriental, entre outros –,
formando um bloco chamado de Cortina de Ferro, apelido que reforçava o tom de
isolamento.
Nesse mesmo
período iniciava-se a Guerra Fria – disputa da hegemonia mundial entre o
capitalismo, liderado pelos EUA, e o comunismo, pela URSS.
Foi na época
de Stalin que surgiram o gulag e o significado tenebroso que Sibéria passou a
ter para os soviéticos.
O primeiro
termo é a sigla em russo para o sistema de campos de trabalhos forçados para
criminosos, presos políticos e qualquer cidadão em geral que se opusesse ao
regime.
As prisões
que levaram esse nome surgiram em 1930.
Antes, na
época dos czares, chamavam-se Katorga, e tinham a mesma finalidade.
Já a Sibéria
é uma das regiões mais inóspitas do mundo.
Localizada
entre os montes Urais e o Oceano Pacífico e entre o Norte do Cazaquistão e o Oceano
Ártico, a vasta planície era praticamente isolada do restante da URSS.
Por isso, o
envio para lá, fosse a trabalho pelas forças comunistas, fosse para o cumprimento
de uma pena, era considerado praticamente a morte perante o restante da
sociedade.
Depois de 33
anos exercendo o poder com base no terror contra adversários e aliados, com a
execução de milhões de pessoas, Stalin morreu em 5 de março de 1953, em meio a
preparativos de nova onda de perseguições e campanhas repressivas.
O motivo de
sua morte jamais foi explicado.
Seu
substituto imediato foi Gueorgui Malenkov, que morreu dois anos depois,
deixando o cargo para Nikita Khrushchev.
Apesar de
criar o Pacto de Varsóvia, em resposta à Organização do Tratado do Atlântico
Norte, a OTAN, fundada pelos EUA e pelos países da Europa Ocidental, o novo
comandante soviético foi o principal mentor da coexistência pacífica entre as
duas potências.
A doutrina
defendia o fim das agressões entre as nações e foi um dos responsáveis pela
resolução da Crise dos Mísseis, em outubro de 1962.
Foi nesse
ambiente que Eduard bateu de frente com os representantes do poder.
Vale lembrar,
ainda, que criado com histórica fábrica de automóveis ZIL – daí o apelido
Automobilistas –, o alvinegro moscovita era próximo do sindicato dos
trabalhadores na indústria automotiva.
O Spartak
sempre foi o time do povo, o Lokomotiv representava os ferroviários, e os dois
maiores, CSKA e Dynamo, eram ligados, respectivamente, ao Exército Vermelho e à
KGB (sigla de Comitê de Segurança do Estado, em russo, temido serviço secreto
da URSS).
Todas as
cinco equipes são de Moscou.
Assim, os
jogos dos três times menores contra CSKA e Dynamo eram dos poucos momentos de
protestos contra o regime, o que era impossível acontecer nas ruas.
Nos clássicos
da capital, as torcidas de Torpedo, Spartak e Lokomotiv aproveitavam para se
manifestar: “bei militsia!” (“peguem os policiais” ou “peguem os soldados”).
Descoberto no
chão de fábrica
Voltando à
história de Eduard, o craque nasceu na localidade de Perovo, nos arredores de
Moscou, em 21 de julho de 1937.
Desde cedo
foi ligado ao futebol.
Era torcedor
do time do povo, como é conhecido o Spartak.
Seu talento
precoce, todavia, surgiu próximo ao Torpedo, quando foi descoberto no pátio da
ZIL, aos 13 anos.
Por volta de
1950, enquanto jogava contra um time das categorias de base do Torpedo, chamou
a atenção dos responsáveis pela equipe e acabou recrutado.
Três anos
depois, estreava pelo grupo principal do Alvinegro.
Já na
primeira partida, um amistoso, mostrou todo seu talento, marcando quatro gols.
Em 1954, aos
17 anos, seria o mais jovem jogador a marcar um gol na primeira divisão
soviética.
Com craque em
campo, o Torpedo, hoje na terceira divisão russa, fez um dos seus melhores
campeonatos, em 1955, com Eduard sagrando-se artilheiro, com 15 bolas na rede.
Em 1956, o
craque ajudou o time soviético na conquista da medalha de ouro na Olimpíada de
Melbourne.
Na final,
contra a poderosa Iugoslávia, vitória por 1 a 0, nosso personagem não esteve em
campo.
O motivo: uma
ordem vinda de Moscou mandava o técnico Gavril Dmitriyevich Kachalin escalar
apenas jogadores do CSKA e do Dynamo.
Eduard não se
importou, mas decidiu fazer de 1957 seu ano.
De 21 de
julho até 26 de outubro, ele marcou 22 gols pelo Alvinegro, levando a equipe ao
vice-campeonato.
Ao mesmo
tempo, nas eliminatórias para a Copa do ano seguinte, entre junho e novembro
daquele ano, foi a estrela dos Cientistas da Bola, como era conhecida a seleção
soviética.
Seus fãs
intitularam o período como “os 100 Dias de Streltsov”.
Tudo levava a
crer que ele brilharia nos gramados suecos em 1958.
A expectativa,
porém, jamais foi confirmada.
Como em
qualquer lugar do mundo, o talento nos gramados leva à fama e ao assédio dos
fãs e de outros clubes.
Os tempos
eram outros, claro, principalmente em um país extremamente fechado, como a
URSS.
Mesmo assim,
o craque desfrutava de benesses como convites para festas — e a partir daí,
acesso a bebidas e a mulheres como quase nenhum outro soviético.
Além disso,
aproveitava-se do sucesso para, como os boleiros de hoje em dia, viver como bem
entendia, encarnando, dessa forma, a rebeldia juvenil contra a tirania do
regime totalitário de então.
Dessa forma,
acabou chamando a atenção dos poderosos, mas da pior maneira.
Afinal, sua
vida boêmia e sua visibilidade incomodavam o Kremlin.
Os burocratas
achavam Eduard incontrolável — lembram que o comparamos ao irlandês George
Best? –, com seus cortes de cabelo nada convencionais e sua presença constante
em bares e festas.
Tinham medo
do que poderia representar para os jovens a sua vida de excessos.
Afinal, era
um cidadão da Cortina de Ferro vivendo como se estivesse em um país capitalista
do Ocidente.
Das canchas
ao gulag
Assim, o
regime tentou levá-lo para um dos clubes mais próximos, ou o do Exército
Vermelho (CSKA) e ou o da KGB (Dynamo).
O objetivo
era controlá-lo de perto.
As duas
propostas foram recusadas pelo craque.
Eduard não
pretendia trocar seu Torpedo por qualquer outro time da União
Soviética — principalmente os dois mais militarizados.
Quase ao
mesmo tempo, envolvia-se em uma confusão romântica.
Ao iniciar
namorico com Svetlana, filha da primeira deputada na História do Politburo,
acabou desagradando mais ainda os poderosos comunistas.
A primogênita
de Ekaterina Furtseva, então ministra da Cultura e mulher mais influente no
Comitê Central do PC, era apenas uma das inúmeras conquistas amorosas do
craque.
A jovem de 16
anos havia pedido Eduard em casamento, o que o craque menosprezou, referindo-se
à garota em termos pouco lisonjeiros.
Logo em
seguida, em meio aos treinamentos da seleção soviética para o Mundial, saiu com
dois colegas a uma festa organizada por um militar.
Seria a
interrupção precoce da sua carreira.
No dia
seguinte, era acusado de abusar de uma garota de 20 anos.
As provas,
porém, não eram conclusivas e os testemunhos eram conflitantes — os dois
jogadores que farrearam com ele não confirmaram o crime.
Ameaçado pela
polícia e ludibriado a confessar para poder jogar o Mundial da Suécia, acabou
condenado a 12 anos de prisão, pena que seria cumprida no gulag de Vyatlag.
Suspeitas são
levantadas até hoje sobre o resultado do julgamento.
Segundo seus
defensores, a ordem para a condenação partiu de cima, do secretário-geral do PC
e presidente da URSS, Nikita Khrushchev.
O motivo, o
dirigente político era amigo íntimo de Ekaterina.
O sonho de
disputar a Copa do Mundo morria naquele maio.
Além de
preso, Eduard também foi praticamente expurgado, esquecido até pelas revistas e
jornais esportivos.
Pouco se sabe
dos seus dias na prisão.
Conta-se que
os primeiros meses foram os mais difíceis, inclusive com Eduard tendo sido
vítima de agressões que o deixaram hospitalizado por quatro meses.
Enquanto a
seleção da CCCP era eliminada nas quartas-de-final nos Mundiais da Suécia, em
1958, e do Chile, em 1962, e o Torpedo erguia pela primeira vez a taça do
Soviético, em 1960, ele vivia as agruras dos trabalhos forçados.
Seus dias na
prisão só não foram piores por conta de um dos diretores do gulag.
Torcedor
fanático dos Automobilistas e fã incondicional de Eduard, o chefe da carceragem
deu um jeito de ajudar o craque, mantendo-o boa parte do tempo no hospital da
prisão, onde tinha alimentação melhor.
Assim, em
1963, acabou libertado sete anos antes do final da pena por boa conduta.
Mesmo com os
rins comprometidos pelas condições a que foi submetido na prisão, o craque
voltou a jogar.
Não como
queria, porém.
Sem
autorização para atuar profissionalmente, batia bola no pátio da ZIL, onde
passou a trabalhar após sua libertação, como quando tinha 13 anos.
Seus pedidos
para voltar a jogar pelo Torpedo só foram aceitos quando o poder mudou
novamente de mãos, em outubro de 1964.
Naquele mês,
enquanto desfrutava de férias, Khrushchev foi chamado ao Kremlin.
Ali, o então
primeiro secretário do Comitê Central do PC, Leonid Brezhnev, anunciou sua
aposentadoria.
Escolhido
novo secretário-geral e, depois, presidente do PC e da União Soviética,
Brezhnev assumiu com todo o poder de seus antecessores.
Fã de futebol
e torcedor do Spartak, o novo líder soviético acabaria revogando as condenações
de Eduard.
Teria dito:
– Um
encanador pode voltar a trabalhar como encanador depois de cumprir sua pena.
Por que um jogador de futebol não pode voltar a jogar?
Apesar dos
problemas de saúde, o Pelé Russo provou que ainda era craque.
No seu
retorno, levou os Automobilistas ao segundo e ao terceiro títulos nacionais, em
1965 e 1968, respectivamente.
Voltando em
grande estilo, foi pretendido pelo Dynamo.
O assédio
veio com a proposta de que, se trocasse de clube, disputaria a Copa de 1966, na
Inglaterra.
Rebelde e
decidido como era, a resposta não poderia ter sido outra: “não”.
– Eu sou
Torpedo e só jogarei pelo Torpedo. Se antes errei me prejudicando, agora sei
que é a coisa certa porque nada mais tenho a perder. Já perdi tudo — teria dito
aos cartolas.
Como vinha
jogando bem, os burocratas se apressaram a lançar uma desculpa para a sua
ausência na seleção vermelha.
Segundo o
Pravda, órgão oficial do PC e jornal de maior tiragem no mundo à época, como
ex-prisioneiro, Eduard não tinha o direito de defender a camisa com a sigla
CCCP no peito.
Sua resposta
voltou a ser dada no campo.
Por suas
atuações nas canchas, foi eleito jogador do ano em 1967 e 1968.
Após o
Mundial de 1966, foi novamente chamado pela seleção, para um amistoso contra a
então campeã do mundo, Inglaterra, em Londres.
A partida
terminou empatada em 2 a 2, e Eduard foi escolhido o melhor da partida.
Pendurou as
chuteiras em 1970.
Apesar dos
anos de prisão, teve uma carreira brilhante.
Em 237 jogos
pelo Alvinegro, marcou 105 gols e levantou duas taças nacionais.
Pela seleção,
os números surpreendem ainda mais, 25 gols em 38 jogos.
Assim que se aposentou,
passou a atuar como treinador das divisões de base do Torpedo.
O clube era
sua vida.
Ali passava
seu dia a dia, até morrer de câncer de garganta — uma das sequelas dos anos de
prisão e excessos com álcool e fumo –, em julho de 1990, um dia depois de
completar 53 anos.
Seis anos
depois, o estádio dos Automobilistas passou a se chamar Eduard Streltsov, com
direito a estátua em sua homenagem.
Uma
reportagem publicada num jornal russo em 1997 revelou que a suposta vítima de
estupro em 1958 foi vista colocando flores no túmulo do craque no dia seguinte
ao aniversário de sua morte naquele ano.
Imagem: Autor Desconhecido