Por OLIVER SEITZ*
Antes de qualquer coisa, não acredito que o projeto da Carteira do Torcedor será implementado.
A rejeição à idéia e os empecilhos técnicos e práticos são tão grandes que acho difícil que o discurso passe da sua fase retórica.
De qualquer maneira, é preciso aplaudir a intenção do Governo Federal.
Pelo menos, mostram preocupação com o estado dos estádios do Brasil e com a integridade do torcedor.
Tornar a ação de cambistas e os tumultos dentro do estádio em crimes, além de elevar o nível de exigência estrutural dos estádios, é salutar.
O cadastramento de torcedores, porém, pode ser um grande equívoco.
E não estou dizendo isso baseado em um "achismo" qualquer ou considerando algumas variáveis soltas para a construção de um pensamento superficial.
Não. Estou reproduzindo o que foi dito por um dos maiores responsáveis pela melhoria de segurança dos estádios britânicos, Peter Murray Taylor, também conhecido como "Lord Justice Taylor".
Estudos sugerem que o hooliganismo sempre existiu no futebol britânico, mas começou a ficar em maior evidência a partir dos anos 60, atingindo seu ápice em 70 e 80.
A escalada de violência nos estádios do Reino Unido foi tamanha que começou a afetar não apenas os residentes locais, mas também a ter conseqüências para a Europa continental.
Por conta disso, o hooliganismo arranhou a imagem internacional do Reino Unido, que passou a ser visto por todos como um país de violentos arruaceiros.
Não ajudou em nada a Tragédia de Heysel, uma briga generalizada entre torcedores do Liverpool e da Juventus em 1985, que resultou em 39 mortes.
O problema para o Reino Unido foi que desses 39 mortos apenas um era britânico.
Outros dois eram franceses, quatro belgas e, pasmem, 32 eram italianos.
Foi um massacre britânico.
Logicamente que o Reino Unido passou a ser mal-visto pelos seus vizinhos.
Insuflada por esse acontecimento, à primeira-ministra britânica Margareth Thatcher disse que o hooliganismo tinha se tornado "um problema crônico" na ilha.
Algo precisava ser feito.
E, condizendo com a sua própria ideologia da redução da liberdade individual e aumento do controle do Estado sobre o cidadão, a "Dama de Ferro" sugeriu a criação da carteira de identidade dos torcedores de futebol (National Membership Scheme) no Football Spectators Act (FSA), em 1989.
A reação da opinião pública foi imediata.
O argumento principal contra a medida se baseava na crítica à ideologia da proposta, de identificar o cidadão perante o Estado.
Afinal, por que o Estado precisa saber se você vai ou não a um jogo de futebol?
Não fazia sentido.
Poucos meses depois da divulgação do FSA, aconteceu à maior tragédia do futebol britânico.
Na partida válida pelas semifinais da FA Cup entre Liverpool e Nottingham Forest, no estádio de Hillsborough, do Sheffield Wednesday, 96 torcedores do Liverpool foram massacrados contra as grades que separavam a arquibancada do campo.
A mídia tratou de achar culpados para o massacre.
A culpa, dizia-se, era dos hooligans. Estava tudo fora de controle.
Eles precisavam ser contidos.
Para apurar de forma mais detalhada o que de fato havia levado 96 pessoas à morte, o governo lançou uma investigação que foi conduzida pelo supracitado "Lord Justice Taylor".
Ao analisar com profundidade os fatos, Taylor concluiu que o problema em si não era os torcedores, mas sim as estruturas que atendiam essas pessoas.
Muito pior do que os hooligans era a situação dos estádios britânicos.
Como exigir que as pessoas possam se comportar de maneira civilizada em um ambiente que não oferece as menores condições de higiene e segurança?
Para evitar que novas tragédias como Hillsborough viessem a se repetir, Taylor elaborou um documento com uma série de recomendações, que ficou conhecido como Taylor Report.
Dentre essas recomendações - que incluíam a obrigação da colocação de assentos para todos os lugares do estádio, a derrubada das barreiras entre a torcida e o gramado e a diminuição da capacidade dos estádios - estava o cancelamento do projeto da carteira de identificação dos torcedores.
De acordo com Taylor, era bastante possível que a carteira de identidade viesse a aumentar o problema da violência, e não o contrário.
Além dos questionamentos sobre a real capacidade dos clubes conseguirem colocar em prática um sistema confiável de seleção de torcedores e sobre a confiança na tecnologia que seria utilizada, o argumento se baseava na idéia de que a carteira de identidade para torcedores não era uma ação focada na segurança, mas sim na violência.
E as tragédias nos estádios não era uma questão de violência, mas sim de segurança.
A própria polícia inglesa, que teoricamente seria a grande beneficiada com a carteira, rejeitou o projeto, que, por conta de tudo isso, foi abandonado.
E é aí que talvez resida o grande equívoco do projeto das carteirinhas do torcedor no Brasil.
É lógico que o problema da violência é grande, mas muito pior é o problema da insegurança.
Como exemplo, a última grande tragédia do futebol brasileiro, o buraco nas arquibancadas da Fonte Nova, só aconteceu porque o estádio estava literalmente caindo aos pedaços.
Naquela situação, a carteirinha de identificação não teria salvado as vítimas.
Uma melhor fiscalização nas reais condições do espaço e o fornecimento de uma estrutura apropriada para o público, certamente que sim.
É imprescindível que o Governo Federal busque maior aprofundamento para saber as reais conseqüências do estabelecimento da Carteira do Torcedor, sob risco de criar um monstro muito maior do que o atual.
Muitos dizem que, no Brasil, o torcedor é tratado como animal.
E quem é tratado como animal age como animal.
Caso nada seja feito para melhorar a qualidade das estruturas e do serviço dos estádios do Brasil, o torcedor continuará sendo um animal, só que com uma carteirinha.
Um animal oficialmente reconhecido pelo governo.
Oliver Seitz é pesquisador e PhD em Indústria do Futebol da Universidade de Liverpool, Inglaterra.
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