No dia 14 de julho será lançado o
livro de autoria do ex-atleta, jornalista e escritor catalão Martí Perarnau...
O título do livro, é:
“Guardiola Confidencial”
Abaixo o prefácio escrito por
André Kfouri e publica no blog de Juca Kfouri...
O que André conta no prefácio é
sensacional; vale cada letrinha, mesmo sendo longo.
Boa leitura e divirtam-se.
Momento 1
O enigma de Kasparov
Nova York, outubro de 2010
Garry Kasparov balançou a cabeça
enquanto terminava o prato de salada.
Usou as mesmas palavras pela
terceira vez:
“É impossível”.
Já falava com um tom de irritação
na voz.
Pep Guardiola insistia em lhe
perguntar as razões pelas quais considerava ser impossível competir com o jovem
mestre Magnus Carlsen, o mais promissor enxadrista do momento.
O jantar transcorria em clima
amigável.
Guardiola e Kasparov haviam se
conhecido semanas antes, e desde o início o técnico catalão demonstrou
abertamente seu fascínio pelo grande campeão.
Kasparov encarna qualidades que
Pep admira profundamente: rebeldia, esforço, inteligência, dedicação,
persistência, força interior…
Daí o entusiasmo ao conhecê-lo
pessoalmente e encontrá-lo para dois jantares, em que conversaram sobre
competitividade, economia, tecnologia e, é claro, esporte.
Guardiola se afastara da elite do
futebol poucos meses antes e começava a gozar de um ano de tranquilidade em
Nova York.
Deixara para trás, no FC
Barcelona, um período triunfal — o mais brilhante, bem-sucedido e apaixonante
da história do clube catalão, talvez inigualável: seis títulos em sua primeira
temporada, além de catorze troféus dos dezenove possíveis em quatro anos.
Os resultados de Guardiola eram
excepcionais.
Mas, para alcançá-los, ele havia
se esgotado.
Exausto e descontente, disse
adeus ao Barcelona antes que os danos provocados fossem irreversíveis.
Em Nova York, ele queria começar
de novo e viver um ano de paz, esquecimento e tranquilidade.
Precisava preencher um
reservatório de energia que tinha se esvaziado e passar mais tempo com a
família, que pouco via pelos compromissos de trabalho.
Sua intenção era conhecer novas
ideias e dedicar-se aos amigos.
Um deles era Xavier Sala i
Martín, professor de economia da Universidade Columbia e tesoureiro do Barça em
2009 e 2010, a última etapa de Joan Laporta como presidente do clube.
Sala i Martín é economista de
prestígio internacional e um bom amigo dos Guardiola.
Morando em Nova York há muito
tempo, ele foi essencial para que a família de Pep vencesse algumas reservas em
relação à cidade norte-americana: os filhos não dominavam o inglês e Cristina,
a esposa, ocupava-se demais com o negócio da família na Catalunha.
Assim, não entendiam bem o que
Guardiola propunha.
Sala i Martín encorajou a família
a curtir a experiência de viver em Nova York, que acabou sendo muito melhor do
que esperavam.
Sala i Martín também é amigo
íntimo de Garry Kasparov.
No outono, a família Guardiola
convidou o economista para visitar sua casa em Nova York.
“Sinto muito, mas esta noite
tenho um compromisso: marquei de jantar com o casal Kasparov”, desculpou-se,
antes de sugerir a Pep que o acompanhasse.
Guardiola ficou encantado com a
ideia, assim como o próprio Kasparov e sua esposa, Daria.
Foi um encontro fascinante.
Não falaram de xadrez nem de
futebol, mas de invenções e tecnologia, da coragem de romper paradigmas, das
virtudes de não se acovardar diante da incerteza e da paixão.
Falaram muito da paixão.
Kasparov expôs de forma clara
suas ideias pessimistas sobre os avanços tecnológicos.
Segundo ele, o mundo está
estacionado economicamente porque o potencial tecnológico serve basicamente
para jogos e novos inventos não possuem a relevância dos antigos.
Na opinião de Kasparov, a
invenção da internet não pode ser comparada à da eletricidade — que provocou
uma autêntica transformação econômica, permitindo o acesso da mulher ao mercado
de trabalho e multiplicando por dois o volume da economia mundial.
O ex-campeão mundial de xadrez
explicou que a verdadeira influência da internet na economia produtiva, não na
financeira, é muito inferior à que teve a eletricidade.
Deu como exemplo o iPhone, cuja
capacidade processadora é muito superior à dos computadores da Apollo 11, os
AGC (Apollo Guidance Computer), que possuíam cem vezes menos memória ram que um
smartphone atual.
Segundo Kasparov, os AGC serviram
para levar o homem à Lua, mas agora usamos a potencialidade de um telefone
celular para matar passarinhos (referindo-se ao game popular Angry Birds).
Sala i Martín, um homem de raciocínio
prodigioso, assistiu maravilhado à conversa entre Kasparov e Guardiola:
“Foi fascinante ver dois homens tão inteligentes improvisando um
diálogo sobre tecnologia, invenções, paixão e complexidade”, disse.
O encantamento mútuo foi tamanho
que, poucas semanas mais tarde, eles se encontraram para um segundo jantar — ao
qual Sala i Martín não pôde comparecer porque estava na América do Sul, mas que
teve a presença de Cristina Serra, esposa de Pep.
Naquela segunda noite, sim, se
falou de xadrez.
Guardiola ficou surpreso com a
intensidade de Kasparov ao falar sobre o norueguês Magnus Carlsen, visto por
ele como o indiscutível futuro campeão mundial — o que de fato aconteceu um ano
depois, em novembro de 2013, com a vitória sobre Viswanathan Anand por 6,5 a 3,5.
Kasparov rasgou elogios ao jovem mestre (de 22 anos na época), a quem chegou a
treinar secretamente em 2009, e também detalhou algumas fraquezas que deveria
corrigir se quisesse dominar por completo o mundo do tabuleiro.
Foi então que Guardiola perguntou
se Kasparov se sentia capaz de vencer o emergente campeão norueguês.
A resposta o surpreendeu:
“Tenho capacidade para derrotá-lo, mas é impossível”.
Guardiola imaginou se tratar de
uma frase politicamente correta que continha toda a diplomacia que um homem
impetuoso como Kasparov era capaz de demonstrar.
E por isso insistiu:
“Mas, Garry, se você tem capacidade, por que não conseguiria vencê-lo? ”.
A segunda tentativa obteve a
mesma resposta:
“É impossível”.
Guardiola é teimoso, muito
teimoso, e não largou o osso que Kasparov lhe atirara.
Insistiu uma terceira vez,
enquanto o enxadrista ia se encerrando cada vez mais em sua concha protetora,
os olhos fixos no prato, como naqueles tempos em que precisava defender uma
posição frágil no tabuleiro.
“É impossível”, voltou a dizer com certo ar de lamúria.
Guardiola mudou de tática,
afastou o prato de salada, que mal havia tocado, e decidiu esperar outra
oportunidade para sondar as razões pelas quais Kasparov se sentia incapaz de
vencer o jovem Carlsen.
Não só por curiosidade, mas
porque tinha consciência de que a resposta podia guardar um dos segredos do
esporte de alto nível.
Fazia só quatro meses que Pep
abandonara o comando do Barcelona, depois de construir um cartel de vitórias
único e inimaginável.
Tinha deixado o clube porque se
sentia vazio, desgastado, esgotado, incapaz de levar mais glórias a uma equipe
que havia se fartado de tantas conquistas.
Foi o primeiro e único na
história do futebol a conseguir os seis títulos possíveis em uma mesma
temporada.
Mas Guardiola renunciou ao
Barcelona por esgotamento e agora, já renovado e recuperado, ciente de que a
energia voltava ao seu corpo — e, sobretudo, à sua mente —, via-se diante de um
dos grandes mitos do esporte, o qual lhe repetia sem hesitar que ainda possuía
as capacidades para vencer, mas que era impossível fazê-lo.
Sentiu curiosidade, é lógico.
O enigma de Kasparov continha
muito mais que uma anedota para contar aos netos; nele se encontrava a resposta
para o que Guardiola desejava saber há muito tempo: por que se desgastara tanto
no Barcelona?
E, principalmente, como evitar
tanto desgaste no futuro?
Se eu tivesse que definir Pep
Guardiola, diria que ele é um homem que duvida de tudo.
A origem dessas dúvidas não é a
insegurança nem o medo do desconhecido: é a busca da perfeição.
Ele sabe que alcançá-la é
impossível, mas a persegue do mesmo modo.
Por isso, muitas vezes tem a
sensação de que seu trabalho está inacabado.
Guardiola é obcecado pelas
dúvidas.
Acredita que só pode encontrar a
melhor solução depois de examinar todas as opções.
Lembra, nesse aspecto, o mestre
enxadrista que analisa todas as jogadas possíveis antes de realizar o movimento
seguinte.
A obsessão por esclarecer as
dúvidas é um traço da essência de Pep, capaz de dar voltas e mais voltas em
torno de qualquer assunto que envolva o jogo antes de tomar uma decisão.
Quando estuda como encarar uma
partida, ele não duvida da vocação do seu time: todos ao ataque, com a bola e
para ganhar.
Mas esses são conceitos muito
amplos, e Guardiola desenha com traços finos.
Suas grandes ideias são
imutáveis, contudo se compõem de muitas pequenas ideias, que ele vai
destrinchando na semana que antecede a partida.
Pensa e repensa sobre a
escalação, a entrada de um jogador em vez de outro, os movimentos que cada
atleta fará em função do adversário, a sintonia de algum jogador com um
companheiro, como trabalhar as linhas da equipe diante do ataque inimigo…
A mente de Guardiola se parece
com a do enxadrista que calcula e analisa todos os movimentos, próprios e do
adversário, para antecipar mentalmente o desenvolvimento da partida.
Jogue contra quem jogar, a
preparação será idêntica: não haverá um segundo de descanso até que ele estude
e avalie todas as opções.
E quando terminar, voltará de
novo a todas elas.
É o que Manel Estiarte, seu braço
direito no Barça e no Bayern, chama de “lei
dos 32 minutos”, em alusão à dificuldade de fazer Pep se desconectar do
futebol.
Estiarte emprega todos os
recursos ao seu alcance para de vez em quando conter a obsessão do treinador e
obrigá-lo a se distrair, mas sabe por experiência própria que a distração não
dura mais de meia hora:
“Você o leva para comer em um restaurante para que se esqueça do
futebol, mas depois de 32 minutos já vê que ele começa a divagar. Os olhos
miram o teto, ele faz que sim com a cabeça, diz que está escutando, mas não
olha para você, já está pensando outra vez no lateral esquerdo do time
adversário, nas coberturas do volante, nos apoios ao ponta… Passou meia hora e
ele volta a suas digressões internas”, explica Estiarte.
Se os jogadores estiverem
fechados com ele, se o Bayern o apoiar, Guardiola não se desgastará tanto com a
tensão causada pela análise constante das variáveis.
Às vezes, Estiarte o manda embora
de Säbener Straβe, a cidade esportiva do Bayern, para que ele se desconecte.
Nesses dias, Guardiola volta para
casa e passa um tempo com os filhos, brinca com eles, mas meia hora depois vai
até um canto que preparou no final de um corredor, que não chega sequer a ser
um quarto pequeno, e recomeça suas divagações.
Passaram-se 32 minutos e é
preciso repassar novamente todas as dúvidas, apesar de ser a quarta vez no dia
em que as examina.
Por tudo isso, a resposta de
Garry Kasparov era tão importante.
Daí vinha sua insistência em
resolver o enigma.
Por que um mestre lendário como
Kasparov, cujas capacidades são excepcionais, considerava impossível derrotar
um rival?
Foram Cristina e Daria, as
esposas, as rainhas daquele tabuleiro nova-iorquino, que desvendaram o enigma.
Levaram a conversa novamente para
o rumo da paixão, desse ponto passaram à exigência e ao desgaste emocional e,
por fim, desembocaram na concentração mental.
“Talvez seja um problema de concentração”, sugeriu Cristina.
Daria deu a resposta:
“Se fosse só uma partida e durasse apenas duas horas, Garry poderia
vencer Carlsen. Mas não é assim: a partida se prolongaria por cinco ou seis
horas, e ele não quer viver outra vez o sofrimento de passar tantas horas
seguidas com o cérebro funcionando a todo vapor, calculando possibilidades sem
descanso. Carlsen é jovem e não tem consciência do desgaste que isso provoca.
Garry tem, e não gostaria de voltar a passar por isso durante dias a fio. Um
conseguiria se manter concentrado por duas horas; o outro, por cinco. Por isso
seria impossível ganhar”.
Naquela noite, Guardiola dormiu
pouco e pensou muito.