O maior golpe fracassado de
Istambul começou como briga de torcidas
Por Ubiratan Leal
O Exército tentou, mas a
sociedade foi mais forte.
Parte das Forças Armadas quis
aproveitar a ausência física do presidente Recep Erdogan para tomar o poder na
Turquia.
A reação contra a ofensiva
militar foi imediata, com a população, o presidente que voltou às pressas e até
parte da oposição se unindo para evitar uma troca de comando à força no país.
Golpes de estados são comuns no
país, já ocorreram em 1960, 1971, 1980, 1993 e 1997.
Uma tentativa fracassada é mais
rara, mas uma delas mudou a história: as Revoltas de Nika.
É preciso voltar bastante no
tempo, uma época em que o centro de comando não era Ancara, a Turquia não existia
como nação, sua maior cidade não se chamava Istambul e sua população nem era
muçulmana, tampouco tinha origem étnica na Ásia Central.
A região em torno do estreito de
Bósforo era dominada pelo Império Romano do Oriente, divisão política criada
quando Roma começou a perder força como centro dessa civilização, também
conhecido como Império Bizantino.
A capital era Constantinopla,
atual Istambul.
Uma das atividades mais populares
na metrópole era a corrida de bigas.
Mais que disputas de velocidade,
eram competições ferozes.
Os concorrentes se atacavam,
acidentes fatais eram comuns e os grandes campeões se tornavam milionários.
Apesar da glória dos principais
condutores, tratava-se de um esporte coletivo: os torneios tinham as equipes
vermelha, verde, azul e branca, cada uma com uma torcida fanática por trás.
No início do século 6º, a disputa
estava mais polarizada em Constantinopla.
Os verdes haviam incorporado o
time vermelho, enquanto que os azuis absorveram os brancos.
Assim, a rivalidade se tornou
enorme, possivelmente ganhando tons políticos, com os azuis se identificando
mais com a elite e uma leitura mais ortodoxa do Cristianismo, enquanto a
torcida verde representava os cidadãos comuns e defendia uma versão mais
progressista da religião.
Em 501, 3 mil torcedores verdes
foram mortos em uma emboscada dos azuis.
Anos depois, os verdes se
vingaram com uma grande vitória de Porfírio, condutor que defendia os azuis,
mas trocou de lado.
As duas torcidas só concordavam
quando o assunto era o governo de Justiniano I.
O imperador empreendeu grandes e
vitoriosas campanhas militares de expansão territorial, mas isso veio a um
custo.
Ele teve de aumentar
agressivamente os impostos para poder financiar o exército, causando
descontentamento de toda a sociedade em Constantinopla.
Em 532, um novo pacote de taxas
atingiu até a elite, que vinha sendo poupada até então.
Em 10 de janeiro daquele ano, uma
corrida terminou em nova confusão entre verdes e azuis.
As autoridades entraram em ação e
prenderam sete líderes de torcidas.
Todos seriam executados, mas dois
(um verde e um azul) acabaram sobrevivendo porque o suporte da forca quebrou.
Imediatamente, membros das duas
facções se dirigiram ao hipódromo – localizado estrategicamente ao lado do
palácio, para que Justiniano pudesse ver as corridas e torcer pelo seu time, o
azul, sem sair de casa – para pedir clemência aos dois.
O imperador se negou.
As duas torcidas se uniram e
começaram a gritar “nika” (vencer) em direção ao palácio.
Os protestos se seguiram, vários
edifícios foram incendiados – inclusive Hagia Sofia, então basílica da igreja
cristã – até que, no quarto dia, os manifestantes decidiram derrubar Justiniano
e colocar Hipácio, sobrinho do ex-imperador Anastácio I, no poder.
Justiniano pensou em fugir, mas
foi convencido a ficar por sua mulher, Teodora.
Com a decisão de confrontar a
multidão tomada, o imperador acionou seus generais Belisário e Mundo.
Ambos convocaram tropas godas e
trácias – sem ligação afetiva com as equipes de corridas de bigas – para
contra-atacar.
As forças de segurança
aproveitaram que os revoltosos estavam no hipódromo para ali confiná-los e
iniciar o massacre.
Os registros são de cerca de 30
mil mortos, incluindo Hipácio.
Com o golpe fracassado,
Justiniano I ganhou ainda mais poder.
As corridas de bigas foram
proibidas, a população passou a temê-lo ainda mais, a Hagia Sofia foi
reconstruída e as campanhas militares se intensificaram.
Quando morreu, em 565, o Império
Bizantino tinha recuperado boa parte do território do Império Romano em seu
auge, incluindo a Península Itália, o sul da Península Ibérica e todo o norte
da África.