Imagem: Autor Desconhecido
Joel Camargo, os desenganos do primeiro brasileiro a jogar pelo PSG
Assim como Neymar, era negro, tratava bem a bola e brilhou no Santos
Mas, após levantar bandeira contra o racismo, morreu pobre, doente e
esquecido
Por Breiller Pires, de São Paulo para o El País
Por sua elegância ao correr com
passadas largas, praticamente flutuando sobre o gramado, e ao subir com os
braços bem abertos para cabecear, Joel Camargo ganhou o apelido de
“Açucareiro”.
Era um zagueiro de técnica
privilegiada, talvez o mais habilidoso de sua geração.
Embora implacável ao desarmar os
atacantes, tinha doçura nos pés.
Integrou por quase dez anos o
célebre time do Santos de Pelé, foi campeão do mundo com a seleção brasileira
em 1970 e, muito antes de Neymar protagonizar a transferência mais cara de
todos os tempos, se tornou o primeiro brasileiro a vestir a camisa do Paris
Saint-Germain (PSG).
Porém, a chegada à cidade luz não
teve nenhuma pompa, assim como toda sua trajetória como jogador.
O destino nunca foi generoso com
o talento que transbordava de Joel, sobretudo no ano de 1970, que marcou tanto
a maior glória da carreira quanto o início de sua derrocada.
Ele começou a temporada em alta.
Era o homem de confiança do
técnico João Saldanha e titular da zaga da seleção.
Mas, por interferência da
ditadura militar, Saldanha caiu às vésperas da Copa e deu lugar a Zagallo, que
barrou o defensor.
O Brasil sagrou-se tricampeão no
México.
Joel nem sequer entrou em campo.
Assistiu a todo Mundial do banco
de reservas.
Apesar da euforia pelo título,
encarou o desprestígio como uma humilhação.
Quando voltou para casa, em
Santos, o zagueiro gastou o dinheiro da premiação pelo tri na compra de um
lustroso Opala vermelho.
Na madrugada de 22 de novembro,
cinco meses depois da Copa, Joel destruiu o carro ao bater de frente com um
poste.
Duas mulheres que o acompanhavam
morreram no acidente.
Ele quebrou o nariz, a clavícula
e a perna direita.
Ficou quase um semestre inteiro
de cama, em recuperação.
Condenado a um ano e oito meses
de prisão por homicídio culposo, cumpriu pena em liberdade, mas teve seu
contrato com o Santos rescindido.
Na época, várias pessoas e
dirigentes de outros clubes insinuaram que ele estaria dirigindo embriagado.
Joel sempre negou que tivesse
bebido naquela noite.
Desde então, magoado, passou a
evitar a imprensa.
Só levantava voz para se
pronunciar sobre uma questão que o fustigava.
Foi o primeiro jogador de futebol
a se manifestar publicamente contra o racismo no Brasil.
“O preconceito existe, e eu sempre falei disso. Na época do acidente,
fui crucificado por causa da minha cor. Eu era o único que falava de
preconceito naquela época. Meus colegas de time me chamavam de radical,
mascarado, pediam pra eu deixar essas coisas pra lá. Fui dar entrevista uma vez
e queriam que eu dissesse que não existia preconceito no Brasil. Porra, eu sou
preto! Sei como as coisas funcionam”, contou Joel Camargo em uma de suas
raras entrevistas, em 2014, à revista Placar.
Um roteiro previsto antes mesmo
de estrear pelo Santos, na ocasião em que uma quiromante advertiu que o futebol
lhe traria “alegrias e desgostos” e seria o meio para “lutar pelos de sua cor”.
Ao recuperar-se do acidente,
estava desempregado, fora do Santos e malvisto pela maioria dos grandes clubes
brasileiros.
Resolveu, então, no fim de 1971,
aceitar uma proposta do recém-fundado Paris Saint-Germain.
Longe de ser o clube endinheirado
em que se transformou, o PSG acabara de subir para a primeira divisão do
Campeonato Francês e amargava as últimas posições na tabela.
No elenco, havia uma mescla de
atletas amadores e profissionais.
O nível técnico era sofrível.
E Joel, apesar de zagueiro,
chegou com status de campeão do mundo e supercraque para um contrato de sete
meses.
Sua primeira partida, diante do
Bordeaux, foi um choque de realidade.
Jogou ao lado de um líbero
amador, que, aos 15 minutos do segundo tempo, marcou um gol contra.
O brasileiro percebeu que teria
de se virar sozinho.
Pegou a bola na defesa, driblou
meio time adversário e serviu de bandeja para o centroavante Prost, que
desperdiçou a chance com um chute para o alto.
Joel perdeu a paciência.
Começou a berrar com seus
companheiros, prontamente repreendido pelo treinador.
Aquele tipo de comportamento,
comum entre os boleiros santistas, não era tolerado na França.
Ao deixar o campo, o zagueiro,
engasgado com a derrota por 2 x 0, desabafou:
“Os jogadores da defesa tratam a bola como se fosse lixo e os do ataque
dão um bico nela e saem correndo atrás”.
Joel Camargo defendeu o PSG em
apenas mais uma partida.
A ríspida sinceridade de um
atleta habituado a jogar com Pelé e que, de repente, estava cercado de
brucutus, fez com que ele colecionasse desafetos durante a curta passagem pelo
clube, que o dispensou depois de três meses em Paris.
“Fui pra França com a patroa e minha filha novinha. A gente não
entendia a língua deles. Acharam que eu seria um Pelé, o salvador da pátria,
sendo que nem tinha me recuperado por completo do acidente”, justificou.
Na volta ao Brasil, rodou por
clubes pequenos, mas rapidamente se desencantou da bola.
Aos 29 anos, parou de jogar e
mergulhou na bebida.
Torrou todas as economias do
futebol até perceber que, aos 35, não havia lhe sobrado nenhum tostão.
E aí veio uma decisão radical:
vendeu todas as medalhas que guardava em casa, incluindo a de campeão do mundo.
O dinheiro da partilha de suas
conquistas durou pouco.
Falido e com uma filha para
criar, se viu obrigado a encontrar outro ofício.
Encontrou uma saída como
estivador no Porto de Santos.
Os dois irmãos que trabalhavam no
cais descolaram uma vaga para ele na labuta entre os navios.
Carregava fardos de algodão, café
e açúcar.
Nas horas de folga, participava
das peladas portuárias.
O boné enterrado na testa e a
barba por fazer disfarçavam a aparência, mas a indefectível elegância de seus
movimentos logo aguçou a curiosidade de alguns colegas.
“Ei, você não é o Joel Camargo que jogou no Santos?”.
Atordoado, ele logo abaixava a
cabeça e despistava:
“Joel? Tá louco? Sou sósia dele”.
Não admitia que interpretassem
como fraqueza a nova atividade do ex-jogador que venceu o orgulho para buscar
sustento no trabalho braçal.
Foram mais de duas décadas de
estiva até se aposentar aos 55 anos.
Vivia uma rotina pacata em
Santos, lutando contra o alcoolismo e o diabetes.
Por causa da doença, teve um dedo
do pé amputado.
Nesta época, havia muito tempo
que já não frequentava a Vila Belmiro. Viúvo, recebia amparo da filha e
raramente tinha contato com os ex-companheiros de time.
“O único amigo que fiz no futebol foi o Edu [ex-ponta-esquerda]. Só
vejo os jogos do Santos pela televisão e olhe lá. Se não vêm falar comigo, eu é
que não vou procurar ninguém”, disse à Placar, naquela que seria sua última
entrevista.
Morreu de insuficiência renal aos
69 anos, em 23 de maio de 2014.
Pobre, enfermo e esquecido pelos
clubes que um dia se renderam à classe do Açucareiro.
Na parede da sala de Joel
Camargo, restou a única recordação que conservara dos tempos de jogador: um
quadro da mascote da Copa de 70, presente de um torcedor que enxergou a doçura
por trás daquele homem que passaria o resto da vida às sombras da amargura.
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