Imagem: Getty Images
Abaixo, trechos da entrevista de
Pep Guardiola ao jornalista Guillem Balague, seu biógrafo, à BBC Radio 5, traduzidos
por Leandro Stein, do site Trivela...
O futebol foi apenas o ponto de partida a uma entrevista imperdível de
Guardiola
Por: Leandro Stein para o site Trivela
A paixão no futebol
“Estatísticas e números são legais, mas números não são paixão. Não te
dão algo. É melhor dizer que depois de dez anos eu me lembro desta final e de
como jogamos bem, para resgatar a maneira como fizemos isso. Os títulos são
importantes, claro, e eles me ajudaram a ter empregos e a continuar trabalhando
na minha paixão. Mas eu penso que todos nós treinadores somos felizes com
nossos antigos jogadores, quando podemos rir juntos, nos abraçar e ter uma boa
relação. Todo mundo ama ser amado, esse é o segredo das nossas vidas. Eu serei
mancuniano pelo resto da vida. Eu serei um torcedor do Manchester City e será
impossível treinar outro clube na Inglaterra, porque sinto o amor das pessoas
aqui. Quando as perguntam o que você quer? A resposta é ser amado. O mais legal
é quando você se sente bem com as outras pessoas”.
Inovação e futebol
“Penso que a humanidade avança porque há pessoas que não aceitam a
realidade e tentam descobrir coisas novas. Se você não tentar ser criativo e
não perguntar por que temos que fazer isso, por que não de outra maneira, a
humanidade não existirá mais. Esse tipo de pessoa questionadora é necessária
para tornar a humanidade muito melhor. O futebol é bom porque aquilo que
funciona hoje não funcionará amanhã. Às vezes você está fazendo algo bem e diz
‘OK se continuarmos assim’, mas começará a ficar ruim. Quando você vê os
sinais, você tem os sentimentos, você precisa fazer algo diferente. Todos os
técnicos tomaram muitas decisões por causa dos sentimentos. Você precisa ter
muita informação sobre os adversários, você mentaliza isso, mas precisa também
viver os sentimentos”.
A relação com o trabalho
“Logicamente, todos temos um dom para oferecer. Acho que sou bom no
futebol porque meu trabalho é minha paixão. Quando digo que amo este jogo, é
porque eu amo este jogo. Quando você bota sua paixão à frente de você, isso
sempre funciona. Sempre tento dizer para procurar o seu talento. Mesmo se você
quiser trabalhar na coisa mais estúpida, apenas faça isso. Digo o mesmo para os
meus filhos: tentem descobrir o que você mais ama e então você não sentirá como
um esforço, será um prazer. A vida algumas vezes é curta, outras é longa, mas
se você acordar todas as manhãs sabendo que fará algo que gosta, isso é
suficiente. Essa é a recompensa”.
A crise de refugiados
“Esse é o mundo em que vivemos agora. Ao redor do Mediterrâneo há
pessoas morrendo. Os governos na Itália e na Espanha não permitem que o povo
resgate as pessoas que estão morrendo. Não sei o tipo de sociedade que estamos
fazendo, porque não é sobre leis, é sobre humanidade. Se há pessoas morrendo e
heróis indo de braços abertos para resgatar, mas os governos não permitem que
façam isso, é porque estamos indo muito, muito mal. É por isso que a União
Europeia, os Estados Unidos, a Rússia, todos os grandes países precisam
resolver esses problemas. Na Espanha, houve uma guerra civil e as pessoas
fugiram, aqui para a Inglaterra, para o México, para a Holanda, para a França,
para a Alemanha. Isso aconteceu e eles nos aceitaram. Meus avós, meus bisavós,
eles nos aceitaram. Não queriam sair do país, mas existia uma guerra. Isso está
acontecendo de novo agora”.
A importância da família
“Apenas em casa eu me sinto seguro. Quero dizer seguro em termos de não
ser observado. Fecho a porta e me sinto seguro. Conheço meu trabalho desde os
18, 19 anos de idade. Eu vivi muitos anos esse tipo de vida e não é um
problema, eu entendo, participo do jogo. Mas quando eu fujo, estou em casa.
Lar, esposa, filhos – é o único lugar onde posso fazer o que quiser, onde sou
livre para fazer todas as coisas bobas e estúpidas sem ser julgado. Meus filhos
são amáveis são por causa da minha esposa Cristina. Minha família sabe que
estou lá, mas não estou. Algumas vezes, estou em casa, mas não estou. Meu
trabalho demanda muito. Cristina é uma mulher incrível, não apenas uma mãe
incrível. Se estivéssemos falando sobre nos mudar a Nova York, Munique ou
Manchester, se ela decidisse não vir, nós não viríamos. Não posso estar sozinho
neste tipo de trabalho sem minha família”
A infância
“Acho que é impossível ter vivido uma infância melhor, ter sido um
garotinho mais feliz do que eu. Não éramos uma família rica. Éramos pessoas
normais, mais pobres que ricos, em uma cidadezinha. Todos os dias eu estava em
ruas sem semáforos ou carros, sempre brincando, andando de bicicleta, jogando
futebol, basquete, tênis, nadando. Eu me lembro absolutamente disso. Acordava,
saía para a rua, depois à escola, depois voltava à rua até que minha mãe dissesse
que o jantar estava servido. Os tempos mudaram bastante e eu não estou
reclamando, mas acho que as crianças sentem falta disso agora, especialmente
nas grandes cidades. Não sou a mesma pessoa que era quando criança. É normal.
Não sou o mesmo do último ano. Mas as bases são as mesmas. A educação que você
recebe dos seus pais, da escola, dos seus amigos, isso sempre é algo que você
carrega pelo resto da vida, mas ainda assim mudamos. Eu era um garoto e agora
sou pai, talvez em alguns anos seja avô”.
A relação com Cruyff
“Cruyff me ajudou a amar este jogo, a amar o futebol. E para amar, você
precisa entender isso. Ele nos revelou segredos, porque eram coisas que ninguém
mais via. A forma como ele via o futebol era totalmente diferente: Johan tinha
muito poder nesse sentido. Era obsessivo, era exigente, era estressante. Ele se
parecia com um pai bruto. Era muito rude, tão duro que vocês não podem
imaginar. Nada era fácil e houve um tempo em que eu não podia mais ficar com
ele, mas ele era justo. Não sou um cara tão religioso – cresci indo à igreja,
mas não acreditava muito. Então eu não falo com ele em meus pensamentos, mas
sempre me lembro de sua figura. Talvez eu gostaria de ter fé para acreditar que
Johan está nos observando. Às vezes acho que isso pode ter acontecido”.
A proximidade com os jogadores
“Não tenho vergonha de dizer como eu amo minha gente. Talvez o
contrário, talvez eu diga muitas vezes como os amo. Nisso eu me sinto muito
latino – minha face ou minha linguagem corporal sempre expressam perfeitamente
o que eu sinto naquele momento, e eu não tenho como escapar ou esconder. Com
meus jogadores, às vezes, eu penso muitas vezes: não faça isso, Pep. Mesmo
agora não sei se devo mostrar tanto amor, porque às vezes você sofre mais se
ficar muito próximo de seus jogadores. Mas no futebol, a paixão está em campo e
algumas vezes preciso abraçá-los, não preciso falar com eles. As pessoas
esquecem que somos seres humanos. As pessoas acreditam que somos como gelo,
frios, uma máquina. Isso está muito longe do que realmente somos”
David Silva e a situação delicada de seu filho recém-nascido
“Sempre será uma parte incrível de nossa vida juntos, para todo o time
que viu como ele sofreu, o que aconteceu. Mateo lutou por sua vida ao longo de
muitos meses e, para David, dissemos que se ele quisesse ficar na Espanha e
voltar depois, ele poderia. Estamos aqui por tudo o que ele precise. As coisas
estão bem. David é forte – acho que ele é mais maduro. Eu tenho uma sensação de
que ele ri mais agora, fala mais. Foi bom ver esse final feliz e incrível em
uma situação dura. Acho que Mateo será forte. Ele sobreviveu, então pode lidar
com qualquer coisa em sua vida. David é tímido, não fala muito, não concede
muitas entrevistas, mas ele é um verdadeiro lutador. Por isso que Mateo também
é”.
O ano sabático
“Eu penso que Nova York foi um bom lugar para se passar um ano distante
do futebol. O carisma daquela cidade, todo mundo que esteve lá quer voltar, é
um lugar muito especial. Claro que você está sempre conectado com o futebol,
mas morando lá e não na Europa acaba sendo completamente diferente. Foi um bom
momento. Cheguei e permaneci um mês, até assinar o contrato com o Bayern.
Comecei a estudar alemão é bastante complicado. Três ou quatro horas por dia na
manhã, com a gramática, e depois de dois meses pensei: vou ligar para eles e
quebrar o contrato. Se já é complicado mesmo para crianças alemãs aprenderem,
pode imaginar para um homem de 41 anos? Mas eu sou teimoso”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário