Gol de mãe
Por Pedro Henrique Brandão (produtor e comentarista do Universidade do
Esporte)
Texto originalmente publicado no https://portao11.medium.com/gol-de-m%C3%A3e-b0e6c0814c09
O confronto que garantiu o Palmeiras nas semifinais da Libertadores 2020
foi uma reedição de outra partida disputada há sete anos, no dia mais triste da
minha vida.
O relógio marcava 14h10min do dia de 11 de abril de 2013.
Eu nunca escrevi sobre aquele dia, poucas vezes falei sobre aqueles momentos,
talvez, apenas a Silvia, meu pai e algum amigo tenham me ouvido dizer que
naquele exato minuto, a vida ficou cinza e um longo inverno particular teve
início.
Na UTI do oitavo andar do Hospital A.C Camargo, minha mãe soltou minha
mão pra não mais apertar.
Após uma briga desleal que durou 34 dias, ela deixou definitivamente o
campo de jogo.
Um vazio descomunal me deixou perdido no espaço, é o máximo que consigo
escrever para tentar descrever o que foi a partida dela.
Não havia entendido o que era o mundo sem minha mãe — nem sei se já
entendi —, as imagens turvas, as pessoas que eu não conseguia distinguir a
fisionomia e um lapso temporal que até hoje me rouba a memória de muitos dias
após o choque foram os efeitos imediatos após a frase dita por uma médica na
porta da UTI: “ela partiu! Meus sentimentos”.
Já era noite daquela quinta-feira, quando alguém me arrastou a uma
lanchonete para obrigar que me alimentasse para suportar os próximos dolorosos
passos do funeral.
Desculpe o texto em primeira pessoa, desculpe o texto que sequer falou em
futebol no quinto parágrafo, mas a explicação é exatamente o fato de as
experiências palestrinas serem absurdamente individuais.
A singularidade do sentimento de ser palmeirense é capaz de promover a
total simbiose entre o clube e a vida do torcedor.
Sem dúvidas, todos e todas têm uma relação especial com seus clubes, mas
a forma como o palmeirense se relaciona com o Palmeiras, é umbilical.
Joelmir Beting categorizou:
“Explicar a emoção de ser palmeirense a um palmeirense é totalmente
desnecessário. E a quem não é palmeirense, é simplesmente impossível.”
Voltando a dolorosa recordação, na tal lanchonete, havia uma TV ligada e
recobrei um nível mínimo de consciência quando ouvi o narrador anunciar o
confronto pela Libertadores: Palmeiras e Libertad.
Aquela era uma Liberta incomum, o rebaixamento e a conquista da Copa do
Brasil em 2012, causaram uma condição extraordinária: na Série B, o Palmeiras
estava disputando o principal torneio continental da América, numa das maiores
incoerências da história alviverde.
Durante a doença de minha mãe, assistimos à alguns jogos juntos.
Não eram as melhores partidas, o time não ajudava e nem sempre as dores
nos davam sossego.
Mesmo assim, a gente riu, cornetou e comemorou o Palmeiras pelas últimas
vezes juntos.
Muita conversa necessária aconteceu entre um lance e outro daqueles jogos
com aquele time bizarro.
A última, em 27 de março, na vexatória e inesquecível goleada sofrida
contra o Mirassol.
Ao apito final com o placar em 2 a 6, minha mãe confessou que estava
cansada e que desistia do Palmeiras.
Entendi que ali ela começou a perder o jogo contra o câncer.
Os dias seguintes foram de uma galopante piora e a internação foi
inevitável.
Apenas 15 dias depois, ela foi embora e eu fiquei aqui sem rumo.
Os trâmites para liberação e traslado do corpo atrasaram, não por culpa
do hospital, mas por total inércia de minha parte diante do absurdo que era
perder minha mãe.
Senti o golpe, vivi naquele dia meu 7 a 1, perambulando pelos corredores
do hospital, parecia o desnorteado Brasil contra a implacável vida, aliás,
Alemanha.
O relógio marcava 19h30min quando a TV me trouxe de volta à realidade, lá
se iam 15 minutos do primeiro tempo.
Mas como ver um jogo naquela condição?
Sem minha mãe, o Palmeiras nunca mais seria o mesmo.
Mesmo que não estivesse ligado na partida, a informação de que uma
vitória classificaria o Palmeiras, me fez olhar para a tela novamente.
Por uns instantes me dei o direito de prestar atenção ao jogo para deixar
em segundo plano a dor — como se fosse possível, ledo engano.
Era notório que aquele time era um dos piores Palmeiras da história —
2014 traria um elenco desastroso —, e não havia uma jogada que apontasse para a
tão necessária vitória.
O Libertad, apesar de ter jogadores mais badalados, também não tinha
grandes qualidades e o 0 a 0 só não era insosso porque volta e meia algum
zagueiro de verde dava razões para sobressaltos dos corações palestrinos.
Se dependesse do que acontecia em campo, aqueles momentos não seriam de
distração, mas de martírio.
No entanto, naquela noite, o espetáculo estava nas arquibancadas lotadas
do Pacaembu.
Como nos últimos 15 anos, o palmeirense abraçava e segurava o cambaleante
Palmeiras.
Mais de 35 mil admiráveis seres humanos foram ao Estádio Municipal para
empurrar um time de desvalidos.
Nas mesmas arquibancadas em que, apenas sete meses antes eu e minha mãe
gritávamos num Dérbi, a massa verde chamava a atenção até da transmissão que,
na falta do que mostrar em campo, decidiu colocar a torcida em foco.
Enquanto o jogo se desenrolava e a burocracia não se resolvia, as pessoas
a minha volta torciam para que me distraísse com a partida.
Mordia um pão de queijo e desentalava com goles de Coca.
O salgado adormecido não era pior que o Palmeiras em campo, mas o jogo
palmeirense não era pior que pensar que não veria mais minha mãe.
As lágrimas escorriam pelo rosto até quando o Palmeiras atacava.
Depois de um primeiro tempo terrível e do intervalo mais longo da minha
vida, a segunda etapa começou melhor.
Juninho — o prego na cruz dos anos de calvário — perdeu um gol feito.
Não havia como negar a inépcia palmeirense.
Era palpável, saltava aos olhos que o clube, outrora vencedor, estava a
um passo da pequenez.
Se dependesse apenas de mim, naquela noite, estava tudo liquidado, afinal
era dor demais.
Mas os 35 mil no Pacaembu não arredavam pé, entenderam que se fossem
embora, o Palmeiras acabaria.
No grito, mantiveram o time em pé.
Assim, do hospital, eu assisti à história acontecer e ao sobrenatural
fazer-se real.
Aos sete minutos do segundo tempo, Wesley arriscou um chute da
intermediária.
Longe demais até pra quem depositou dinheiro na vaquinha de contração do
volante mais preguiçoso da história palmeirense.
Inexplicavelmente, a bola não tomou força ou altura, mas correu rasteira,
mascada no gramado até os pés de Charles.
Sem jeito, pois não frequentava aquele setor do campo, Charles percebeu a
oportunidade quando a bola já passava de seu corpo e decidiu arrematar de perna
esquerda.
Gol do Palmeiras!
No mais improvável lance, da maneira mais torta, mais impensável, o
Palmeiras abriu o marcador.
Não gritei gol, eu calei Mãe!
A bola no fundo da rede explodiu o Pacaembu em alegria e eu em lágrimas.
O gol que quase ninguém explicou me deu a certeza de que minha mãe se
despediu desviando aquela bola no pé do Charles.
Fã incondicional de Senna, ela sempre me contou que acreditava piamente
que Ayrton esteve presente na campanha do tetra em 94.
Imediatamente lembrei dessa história e naquele instante, a sensação de
que minha mãe me abraçava era indescritível.
Ela fez o gol e me abraçou, pensei.
Parecia que ela havia feito o gol e vinha me abraçar como despedida.
Eu senti isso.
A descarga emocional do horário da morte se repetiu no gol e chorei
dobrado — quase ninguém entendeu.
O replay passava na TV e me multiplicava a certeza de que não era mérito
do ataque palmeirense, mas obra do imponderável.
Revia e tinha certeza: minha mãe decidira a última vitória palmeirense
antes de deixar o planeta.
Fora Judy responsável por colocar a bola nos pés de Charles e lhe soprar
aos ouvidos “chuta, porra!”.
Minutos depois do gol, uma funcionária do hospital me chamou para avisar
que estava tudo pronto para a saída.
Não vi o final da partida, não precisava e nem quis saber quanto havia
acabado.
Enquanto o Palmeiras garantia um dos piores times de sua história nas
oitavas de final da Libertadores, eu fazia a pior volta pra casa da minha vida
num carro funerário.
Não pelo que aconteceu em campo, mas por tudo que vivi, aquele 1 a 0 foi
a maior vitória alviverde que assisti até o 2 a 1 contra o Santos em 2015.
Nada se compara àquele jogo e me é prova de que nunca é só futebol.
Voltaria ao estádio apenas um mês e três dias depois, em 14 de abril, na
partida de oitavas de final daquela Libertadores. Se na volta pra casa depois
dessa partida, pudesse fazer a resenha pra minha mãe, não gostaria de contar o
que Bruno fez para eliminar nosso time mais uma vez.
Se em 2021 pudesse contar algo pra dona Judy, adoraria falar sobre a nova
fase do alviverde e principalmente, que depois de 22 anos, há uma nova final
continental.
Se a demora para voltar às arquibancadas foi grande, para retomar a vida
foi ainda maior.
Quase uma década se passou para que eu pudesse, enfim, dizer de cabeça erguida que voltei ao campo e agora jogo por nós dois até quando meu coração continuar confirmando que ela vive aqui em cada batida descompassada pelo Palestra e em cada linha torta que insisto escrever.
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