quarta-feira, outubro 22, 2025

Enquanto discutimos nossa arbitragem nonsense, a Justiça ignora vidas e absolve (ir)responsáveis — no Brasil, a impunidade tem replay infinito

Imagem: Autor Desconhecido

Que bom seria se apenas a arbitragem de campo estivesse em crise

Enquanto discutimos nossa arbitragem nonsense, a Justiça ignora vidas e absolve (ir)responsáveis — no Brasil, a impunidade tem replay infinito

Por Pedro Henrique Brandão

No Brasil, tudo é questão de interpretação — até mesmo a morte.

O árbitro erra, o VAR revisa, a imprensa discute nos microfones, e a torcida se rebela nas (anti)sociais redes; mas quando a vida se perde, o país finge que o replay não foi inventado.

Imagine que bom seria se apenas a arbitragem de campo estivesse em crise.

Infelizmente, o Judiciário também entrou em campo, com o mesmo apito rouco e as mesmas lentes que confundem tragédia com tecnicalidade.

Seis anos depois do incêndio no Ninho do Urubu, dez garotos continuam mortos, e sete réus, foram absolvidos.

O juiz, com a serenidade de quem comenta um impedimento duvidoso, escreve que não havia “provas incontestes”.

O VAR da Justiça viu o replay da tragédia e decidiu que não houve culpa. Ao acaso a vaia inconteste.

Talvez o Brasil seja mesmo o único país onde a vida é revisada em câmera lenta — e, no fim, se marca tiro de meta — meta de cancelamento de CPF num Estado que faz vista grossa para o valor da vida, ou de forma mais eficaz ainda, pratica a necropolítica em nível industrial.

Enquanto a arbitragem esportiva é questionada por critérios invisíveis, o Judiciário exibe o mesmo repertório: tecnicismos, protocolos, eufemismos que apagam a tragédia em nome da “complexidade dos fatos”.

É o mesmo olhar burocrático, a mesma cegueira seletiva que transforma o absurdo em expediente.

A própria “banalidade do mal” versão século XXI.

Os meninos do Ninho dormiam em contêineres inflamáveis.

O país dorme em outro: o contêiner da indiferença, à prova de vergonha.

Não havia alvará, não havia saída de emergência — e agora não há culpados.

Dez vidas apagadas, dez promessas do futebol que o Brasil queimou antes de amadurecer.

E, diante disso, o sistema responde com um sonoro “segue o jogo”.

É sempre necessário frisar: o incêndio no alojamento das categorias de base do Flamengo matou dez meninos entre 14 e 16 anos.

16 anos tinha o mais velho a perder a vida. O que você aí fazia aos 16 anos?

O que esses juízes faziam aos 16 anos?

O Judiciário brasileiro, tal qual o VAR, se tornou especialista em enxergar a árvore e ignorar a floresta. Revisa o detalhe, mas não enxerga o desastre. Corrige o protocolo, mas não o país.

É um árbitro que se orgulha de aplicar o regulamento enquanto o gramado pega fogo.

Estamos perdidos. Sem rumo e sem número.

Só contabilizamos as vidas perdidas que insistimos em não encontrar.

No campo e na corte, o mesmo apito rouco anuncia o fim da partida: a impunidade venceu mais uma vez.

O Brasil é o estádio onde a tragédia sempre termina com goleada no placar em que estamos todos do lado oposto.

Naquele 8 de fevereiro — há seis anos —, quem perdeu não foi o Flamengo.

Perdeu o futebol brasileiro, perdeu a sociedade brasileira, perdemos todos e, em última análise, perdeu e perdeu-se a humanidade neste país que não se reconhece no espelho e há tempos precisamos retomar o questionamento do poeta e atualizar:

“Que merda de país é este?”

Nenhum comentário: