Que bom seria se apenas a
arbitragem de campo estivesse em crise
Enquanto discutimos nossa
arbitragem nonsense, a Justiça ignora vidas e absolve (ir)responsáveis — no
Brasil, a impunidade tem replay infinito
Por Pedro Henrique Brandão
No Brasil, tudo é questão de
interpretação — até mesmo a morte.
O árbitro erra, o VAR revisa, a
imprensa discute nos microfones, e a torcida se rebela nas (anti)sociais redes;
mas quando a vida se perde, o país finge que o replay não foi inventado.
Imagine que bom seria se apenas a
arbitragem de campo estivesse em crise.
Infelizmente, o Judiciário também
entrou em campo, com o mesmo apito rouco e as mesmas lentes que confundem
tragédia com tecnicalidade.
Seis anos depois do incêndio no
Ninho do Urubu, dez garotos continuam mortos, e sete réus, foram absolvidos.
O juiz, com a serenidade de quem
comenta um impedimento duvidoso, escreve que não havia “provas incontestes”.
O VAR da Justiça viu o replay da
tragédia e decidiu que não houve culpa. Ao acaso a vaia inconteste.
Talvez o Brasil seja mesmo o
único país onde a vida é revisada em câmera lenta — e, no fim, se marca tiro de
meta — meta de cancelamento de CPF num Estado que faz vista grossa para o valor
da vida, ou de forma mais eficaz ainda, pratica a necropolítica em nível
industrial.
Enquanto a arbitragem esportiva é
questionada por critérios invisíveis, o Judiciário exibe o mesmo repertório:
tecnicismos, protocolos, eufemismos que apagam a tragédia em nome da “complexidade
dos fatos”.
É o mesmo olhar burocrático, a
mesma cegueira seletiva que transforma o absurdo em expediente.
A própria “banalidade do mal”
versão século XXI.
Os meninos do Ninho dormiam em
contêineres inflamáveis.
O país dorme em outro: o
contêiner da indiferença, à prova de vergonha.
Não havia alvará, não havia saída
de emergência — e agora não há culpados.
Dez vidas apagadas, dez promessas
do futebol que o Brasil queimou antes de amadurecer.
E, diante disso, o sistema
responde com um sonoro “segue o jogo”.
É sempre necessário frisar: o
incêndio no alojamento das categorias de base do Flamengo matou dez meninos
entre 14 e 16 anos.
16 anos tinha o mais velho a
perder a vida. O que você aí fazia aos 16 anos?
O que esses juízes faziam aos 16
anos?
O Judiciário brasileiro, tal qual
o VAR, se tornou especialista em enxergar a árvore e ignorar a floresta. Revisa
o detalhe, mas não enxerga o desastre. Corrige o protocolo, mas não o país.
É um árbitro que se orgulha de
aplicar o regulamento enquanto o gramado pega fogo.
Estamos perdidos. Sem rumo e sem
número.
Só contabilizamos as vidas
perdidas que insistimos em não encontrar.
No campo e na corte, o mesmo
apito rouco anuncia o fim da partida: a impunidade venceu mais uma vez.
O Brasil é o estádio onde a
tragédia sempre termina com goleada no placar em que estamos todos do lado
oposto.
Naquele 8 de fevereiro — há seis
anos —, quem perdeu não foi o Flamengo.
Perdeu o futebol brasileiro,
perdeu a sociedade brasileira, perdemos todos e, em última análise, perdeu e
perdeu-se a humanidade neste país que não se reconhece no espelho e há tempos
precisamos retomar o questionamento do poeta e atualizar:
“Que merda de país é este?”

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