A revista Runner’s, publicou uma
excelente matéria, assinada pela repórter Patrícia Julianelli sobre a fundista
brasileira Simone Alves, flagrada em setembro de 2011 no exame antidoping pelo
usa da substância Eritropoietina.
A matéria expõe a fragilidade do
controle do doping no Brasil e mostra à dura e cruel realidade no surgimento de
um atleta neste país.
A matéria é longa, mas certamente
vai interessar a aqueles que desejam conhecer melhor o enorme fosso que separa
o discurso oficial, repleto de pompa e mentiras, da realidade sem maquiagem ou
retoques.
O drama de Simone
Flagrada no antidoping, a maior
fundista brasileira desde Carmem de Oliveira hoje vende lingerie para
sobreviver. Na primeira entrevista após a divulgação do exame, ela alegou
inocência e disse que foi vítima de uma sabotagem.
Por Patricia Julianelli
Introdução:
O sorriso fácil logo conquista a
clientela. Vendedora de mão cheia, ela tem freguesia fiel. Simone migrou do
interior da Bahia para ganhar a vida na capital paulista. Conta que já fez de
tudo: foi animadora de circo, manicure, babá, empregada doméstica... Hoje,
vende lingerie de porta em porta. Aos 27 anos, com seus 42 kg e 1,53 metros de
altura, conta com a ajuda do marido, Carlos, que carrega a mochila abarrotada
de sutiãs. Ela poderia ser um dos milhares de nordestinos anônimos que tiram
seu sustento do comércio informal. Mas é Simone Alves da Silva, até poucos
meses atrás apontada como a maior fundista brasileira desde Carmem de Oliveira.
Simone foi do céu ao inferno em
2011. A sequência de conquistas começou antes da virada, em 31 de dezembro de
2010. Naquela tarde, a atleta apontava na Avenida Paulista para se tornar a
brasileira mais rápida da história da São Silvestre: fecha os 15 km em 50min25,
na segunda colocação, pertinho da campeã. Os olhos do país se voltavam para a
garota de Jacobina que alguns meses depois viria a quebrar dois recordes
sul-americanos, marcas estas em poder de Carmem de Oliveira desde 1993.
Em maio, ela crava 15min18s85 nos
5 000 metros, deixando para trás os 15min22 de Carmem. Em agosto, faz
31min16s56 nos 10 000 metros, pulverizando os 31min47. No dia 4 de setembro,
madrinha da tradicional prova Duque de Caxias, em sua cidade natal, a atleta é
recebida com passeata e salva de palmas. Dorme com a sensação de que a vida não
poderia estar melhor. Mas acorda do sonho no dia seguinte.
O drama de Simone – A casa caiu.
No dia 5 de setembro, Simone
Alves recebe o comunicado oficial da Confederação Brasileira do Atletismo, a CBAT:
testara positivo para Eritropoietina Recombinante (EPO, a sigla mais famosa do
submundo do esporte de alto rendimento) no exame antidoping feito no Troféu
Brasil de Atletismo (no dia do recorde dos 10 000 metros, em 3 de agosto).
"O baque foi imenso, cheguei a desmaiar três vezes. Pensei em me matar. Não
comia, ficava jogada na cama", conta Simone.
A Eritropoietina é um hormônio produzido
principalmente pelos rins e que estimula a produção de glóbulos vermelhos,
responsáveis pelo transporte de oxigênio. "Em esportes de longa duração, é
usada em sua forma injetável (feita em laboratório) para levar mais oxigênio ao
músculo e retardar a fadiga", afirma o médico do esporte Eduardo De Rose,
presidente honorário da Federação Internacional de Medicina Esportiva e
responsável pela área antidoping do COB (Comitê Olímpico Brasileiro).
Simone jura inocência e afirma
ter sido vítima de um complô para assumir a culpa antes que a notícia se
espalhasse e respingasse na reputação do alto escalão do atletismo. De Adauto
Domingues, seu então treinador, a quem recorreu de imediato, diz ter ouvido:
"Sua bandida, quer f... com minha carreira, ferrar com meu nome, com o do
Marilson [Gomes dos Santos, a outra estrela treinada por Adauto]? Assume logo,
liga pra CBAT e diz quem aplicou". Adauto reconhece que pediu à atleta que
fosse a público, mas afirma que chegou a oferecer seu apoio. "Eu disse pra
ela: 'Se você me contar quem fez isso, vou com você a público, fico junto. Você
paga, volta e aprende com o erro'. Eu disse pra ela o mesmo que digo a meus
três filhos: 'Errou, tem que pagar'", afirma. O apoio estava condicionado
a uma confissão de culpa, que Simone não estava disposta a fazer.
Da CBAT, Simone recebeu
orientação semelhante. "O atleta sabe que se indicar quem forneceu a
substância, pode ter a pena reduzida. É a delação premiada. Ajuda a tirar de
circulação quem fornece", afirma Thomaz Mattos da Paiva, presidente da
Agência Nacional Antidoping (ANAD), da CBAT. De Cristiano Laurino, médico
ortopedista do clube de atletismo BM&F, que cuidava da atleta, Simone diz
ter ouvido: “Se der positivo a contraprova, você vai à imprensa falar que a
gente não tem nada a ver com isso?" O fisioterapeuta Rodrigo Iglesias,
também da BM&F, afirma que todos foram pegos de surpresa com a notícia.
"Não tínhamos noção, a equipe é unida, trabalha limpo. Mas os atletas são
esclarecidos, ninguém é bobinho. Se isso [doping] acontece no esporte, é bem
longe da BM&F", afirma.
O comunicado oficial do dia 5 de
setembro era o resultado da amostra A. Se não concordar, o atleta tem o direito
de pedir a contraprova (ou seja, a análise da amostra B). Dificilmente o
resultado é diferente, até porque é a mesma urina dividida pelo atleta em dois
potinhos, A e B (veja mais detalhes no quadro Sob Controle). "Em 99,99%,
dá a mesma coisa”, diz Thomaz. Até o resultado da amostra B, o processo segue
apenas internamente, em sigilo, e a CBAT não pode se pronunciar sobre o caso.
Mas a RUNNER’S WORLD soube do resultado da amostra A e divulgou a má nova em
primeira mão em seu site no dia 4 de outubro. A partir dessa notícia, não só os
envolvidos no caso, mas todo o atletismo sofria um abalo.
O drama de Simone – Por entre os dedos.
Simone pede a contraprova e
novamente testa positivo para EPO. (No dia 14 de outubro, a atleta é suspensa
até o julgamento no Superior Tribunal de Justiça Desportiva da CBAT, marcado
para ocorrer no dia 23 de janeiro, em Manaus desta edição de RW). Com aquele
resultado da contraprova, a CBAT pôde publicar uma nota oficial sobre o caso.
Simone viu, uma a uma, suas conquistas se esvaindo.
O recorde sul-americano dos 10
000 metros, Simone perdeu já com o positivo na amostra A. "De acordo com o
Código Mundial Antidoping, todos os resultados da atleta são anulados a partir
do dia que ela apresenta um resultado analítico adverso", afirma De Rose.
Caso a atleta seja inocentada, o recorde retorna a ela. Os Jogos Pan-americanos,
em Guadalajara, no México (de 14 e 30 de outubro), Simone viu pela TV. "Só
algumas partes porque a dor era grande. Quando via o pessoal no pódio, cantando
o hino nacional, chorava mais que uma criança", afirma.
Pouco antes, já havia ficado de
fora do Mundial do Daegu, na Coreia do Sul. O corte da equipe da BMF às
vésperas da competição gerou boatos de que ela pedira dispensa após anúncio da
IAAF de um rígido controle antidoping (por sangue) no Mundial. Ela nega.
BM&F e CBAT também inocentam a atleta dessa suspeita. "Ela teve um
estiramento muscular na panturrilha esquerda, no músculo sóleo [que vai até o
calcanhar]. Ficou de fora porque não teríamos tempo para tratá-la", afirma
o fisioterapeuta Rodrigo.
O resultado da contraprova também
acarretou outra consequência imediata: Simone não pertencia mais ao quadro de
atletas da BM&F. "Há uma cláusula no contrato que prevê desligamento
imediato em caso de doping e o atleta sabe disso. Recebe orientação, é
alertado. Damos todo apoio, até a contraprova", afirma Laurino. Simone
conta que lhe foi oferecida ajuda psicológica e orientação para lidar com a
imprensa. O contrato foi rescindido e sua principal fonte de renda – 2 300 reais
que recebia mensalmente do clube – secou.
Ao anunciar o desligamento de
Simone, o clube lançou a iniciativa "Exames Antidoping Fora de
Competição", em parceria com a CBAT. Vai realizar exames em 20 a 40
atletas por ano, escolhidos por sorteio ou suspeitas. "Quem tiver
recordes, estiver se destacando, faz pelo menos um por ano. Assim, com o teste
podendo acontecer a qualquer momento, o atleta sabe que não pode tomar nada
nunca", afirma Sérgio Coutinho Nogueira, diretor técnico do clube.
Simone passou a vender lingerie
para pagar o aluguel de 600 reais da casa de três cômodos (quarto, sala e
cozinha) que divide com o marido em Santo André, na Grande São Paulo. E onde,
provisoriamente, espremem-se com a mãe e o padrasto, Celso. "Simone estava
no Jornal Nacional. Larguei tudo e vim para São Paulo. Não arredei mais o pé
daqui", afirma dona Lenita. Como vendedora, a ex-atleta tira entre 1 000 e
2 000 reais por mês. Entre tantas perdas, a maior foi o apoio do técnico. Para
Simone, mais que treinador, Adauto Domingues era seu melhor amigo, um segundo
pai.
"Sofri muito. Pensei: 'Não
tenho ninguém, e agora? '", conta. Adauto se diz sensibilizado ("ela
é uma pessoa muito querida, realmente talentosa, disciplinada"), mas
pondera o caso com menos emoção e mais realismo. "Claro que ficaria feliz
se ela fosse inocente. Mas a situação dela é complicada, é uma substância
injetável..." Para Adauto, ficou um questionamento maior, sobre a validade
de um método de treinamento até então considerado vitorioso. "Fiquei frustrado.
Tanto da Simone, como de outros atletas, faço um banco de dados com
procedimentos e resultados. Achei que tinha criado um mecanismo que levava ao
rendimento. Agora reavalio. Talvez não valha mais a pena guardar nada..."
O drama de Simone – Teoria da sabotagem.
Para cuidar de seu caso, Simone
conta com os advogados Marcelo Muoio e Solange Correia, especialistas em
direito desportivo. "Eles não cobram nada. O julgamento estava demorando.
Ficamos com medo de gastar toda nossa reserva em honorários e não dar em
nada." Reserva essa entre 35 000 e 40 000 reais, fora o carro popular
(Celta) que ganhou na prova Dez Milhas Garoto (em Vitória) e que pretende
vender. Simone continua na mesma casa que alugou ao ser contratada pela
BM&F, em 2009. Chegou a ganhar uma bolada com o recorde dos 5 000 metros:
ficou com 80 000 reais e Adauto, com 40 000. A maior premiação da sua carreira.
Comprou uma casa pra mãe em Jacobina e ajudou a irmã a montar um salão de
beleza.
Desde o comunicado oficial,
Simone partiu em busca de dados que comprovassem sua inocência. "Se eu não
usei a EPO, alguém trocou minha urina, é a única hipótese que eu vejo. Alguém
quis me prejudicar. Alguém com muita inveja dos meus resultados", afirma.
De fato, esse seria o único argumento plausível; embora olhado com desconfiança
por dirigentes pela frequência com que é usado em casos de flagra. Como a EPO é
injetável, não pode ser ingerida por comprimidos ou cápsulas, então não existe
a hipótese de contaminação na farmácia de manipulação ou algo do gênero.
Um exame antidoping negativo
próximo ao exame positivo poderia comprovar a tese da atleta? Talvez, se fosse
muito próximo. Simone testou negativo na prova Dez Milhas Garoto, quatro dias
depois do Troféu Brasil. Mas poderia ter tomado a substância antes do Troféu, a
tempo de ela metabolizar e não aparecer na urina coletada na prova da Garoto,
dias depois. E ela não tem um exame antidoping logo antes. E mesmo se tivesse,
o laboratório não divulga que tipo de EPO foi encontrado na sua urina, se de
uma geração que "dura" até 72 horas ou uma que leva até sete dias
para deixar de ser detectada, por exemplo. E isso ainda depende da dose
ingerida e do metabolismo do atleta. Simone realizou apenas seis controles
antidoping no ano passado, todos em competições oficiais.
Após quebrar a cabeça reconstituindo
seu exame no dia do Troféu Brasil, com a ajuda de um médico do esporte e do
advogado, chegou à tese de defesa usada no Supremo Tribunal de Justiça
Desportiva (STJD), da CBAT, em Manaus.
O exame deveria ser invalidado,
pois não foi realizado de acordo com as normas da Agência Nacional Antidoping
(ANAD) e da Federação Internacional de Atletismo (IAAF), entidades que, com a
Agência Mundial Antidoping (WADA), regulam os controles no Brasil e no mundo.
Simone alega que no dia do Troféu Brasil, teve seu teste antidoping
interrompido para dar uma entrevista ao vivo para a televisão. Ela afirma que
estava com dificuldade para completar os 90 ml exigidos e, diante da demora,
foi retirada da sala e levou consigo o pote com a urina (em quantidade
insuficiente). "Com uma tampinha que não fechava direito, foi tudo
derramando", afirma. Teria deixado o pote no chão, perto da grade, dado
entrevista por cerca de meia hora, voltado para a sala, tomado água e
isotônico, completado o mesmo pote, distribuído à urina entre as amostras A e B
e lacrado.
O drama de Simone – As pedras no caminho.
Que Simone saiu da sala de
controle (onde é feito o exame antidoping) para dar a entrevista, não restam
dúvidas. Em um vídeo disponível na internet, a repórter do canal SporTV (da TV
Globo), afirma em entrevista ao vivo: "Ela foi para o doping e estava
demorando. A gente teve que tirar ela do doping para participar do 'Tá na
Área'". Pelo que a RW apurou, isso aconteceu e não foi à primeira vez nas
pistas brasileiras. "Às vezes, por falta de experiência do coletor, a Rede
Globo em cima, aquela pressão...", afirma Martinho Nobre dos Santos,
superintendente técnico da CBAT.
Mas Simone não diz apenas que
saiu da sala de controle no meio do processo de coleta para dar entrevista. Ela
afirma que saiu com o pote de urina em mãos. A IAAF diz que, quando o volume de
urina do atleta é insuficiente (caso de Simone), ele deve receber um kit para
amostra parcial, despejar a urina em um frasco com uma numeração e lacrar esse
frasco (que é retido pelo oficial). Ao retornar à sala, o atleta vê se o lacre
está íntegro e aí sim se aproveita aquela amostra (ela é misturada à nova
amostra colhida no seu retorno). Simone diz que saiu com a amostra em mãos, em
um pote sem lacre. Com sua resposta oficial, Ana deixa em aberto se permitiu a
saída de Simone da sala de controle, se ela saiu com a amostra de urina em
mãos, se a amostra continha ou não lacre e também se acompanhou a atleta do
lado de fora.
Além de supervisionado por Ana
Carolina, o exame de Simone foi acompanhado pelo fisioterapeuta Rodrigo
Iglesias, também convocado pela defesa. Ele afirma não se lembrar exatamente do
que se passou naquele Troféu Brasil. Em um primeiro contato com a RW, disse que
o frasco ficou na mão da Simone. No segundo, que Adauto (o técnico) segurou
enquanto ela dava entrevista e depois ele (Rodrigo) segurou enquanto o Adauto
era entrevistado (e então o frasco foi devolvido a Simone). "Não lembro,
mas se peguei, já fiz isso para outros atletas", diz Adauto, que
questiona: "Quem contaminaria a amostra?" Essa é a dúvida de
dirigentes que olham a tese de Simone com desdém. "A pessoa se apega a
qualquer coisa para escapar. Mas se a CBAT não cumpre as determinações [de
suspender o atleta], pode ser desfiliada da IAAF", afirma Martinho.
Simone afirma que quiseram
prejudicá-la. Mas no dia 3 de agosto (data do exame), ela também o fez,
cometendo, segundo De Rose, um deslize. "Existe uma pergunta no formulário
que o atleta preenche após o exame, que é: 'Todas as condutas realizadas estão
dentro das regras? ' O atleta assina e tem um campo para seus comentários. Se
houvesse questionamento, teria que fazer logo após a coleta, e não após o resultado
positivo no antidoping", diz. "Não fiz comentário porque jamais
imaginaria que o exame traria problema", afirma Simone.
Uma espécie de último recurso
seria o exame de DNA pela análise da urina (que testou positivo e permanece no
laboratório). A questão é que, se houve uma contaminação da amostra, ela
poderia conter o DNA de dois atletas – o que não seria muito útil a Simone. Se
mostrasse que a urina é só de outro atleta, Simone seria absolvida. Se a urina
fosse só de Simone, acabaria qualquer argumentação da defesa. Simone diz que
pensou em fazer o exame, mas que foi desaconselhada pelo advogado Marcelo:
“Disseram que era muito caro, a gente partiria pra briga com laboratório”. Já
Marcelo afirma que não houve interesse real por parte dela. "Ficou de pensar,
conversar com a família..." Entramos em contato com o laboratório
canadense Institut Armand-Frappier, onde a amostra de Simone foi analisada e
continua guardada. Eles se recusaram a informar o preço do exame de DNA,
limitaram-se a dizer que “testes de DNA são desnecessários porque os frascos
são lacrados, o que garante segurança total do procedimento".
Se comprovada a culpa de Simone,
a regra prevê dois anos de suspensão do atletismo para a EPO como pena mínima.
Isso porque essa substância, no caso de atletas, só visa o rendimento. "Na
medicina, é usada para tratar paciente renal crônico, o que é totalmente
incompatível com a vida de um atleta", explica De Rose. Mas Simone pode
pegar uma pena ainda maior: entre quatro e seis anos, no total, por ser reincidente.
Em 2009, a atleta testou positivo
para o estimulante Oxilofrina em exame realizado no Circuito Fluminense de
Corridas (Volta Redonda) e levou um gancho de 90 dias. Justificou que tomou um
remédio para dor de dente ("Estava com dois dentes abertos, passei a noite
chorando de dor, nem dormi antes da prova"). "A Oxilofrina é menos
grave porque pode ser encontrada em um medicamento para tratar uma doença e só
eventualmente usada para doping", diz De Rose. Simone cumpriu o gancho, mas
ainda questiona o controle. "Uma hora e quarenta depois da prova, fui
abordada pela doutora Carol para o antidoping. Deu tempo de tomar banho, tomar
o analgésico... Avisei a doutora Carol que tinha tomado o remédio".
Doutora Carol é Ana Carolina Siqueira, a mesma oficial que lhe aplicou a coleta
no Troféu Brasil.
O drama de Simone – Sistema capenga.
A tese de Simone não é de toda
fantasiosa. Não porque a atleta estava evoluindo e não tinha motivos para
trapacear, como ela alega. Mas porque o sistema antidoping no Brasil apresenta
brechas. Para dirigentes, sair da sala para uma premiação ou entrevista é uma
exceção. Mas converse com um atleta e ele se lembrará de pelo menos um evento
em que saiu da sala de controle com a coleta inconclusa.
Já em competições internacionais,
atletas dizem que tal fato é raridade. "Há uma logística bem elaborada e
que torna essa situação muito rara. Por exemplo: a imprensa não tem acesso às
cercanias da sala antidoping. Se acontece, é uma exceção e sempre de acordo e
acompanhada do oficial", afirma Rafael Trindade, membro da comissão
antidoping da IAAF nos últimos quatro anos (e desde janeiro de 2011, na
Confederação Brasileira de Triatlo). Claudinei Quirino, prata na Olimpíada de
Sidney (2000) no revezamento 4 x 100 metros rasos, confirma. "Fiquei na
sala o tempo todo, o controle é muito rígido. Eu nunca presenciei alguém sair
para dar entrevista."
Gente do universo do atletismo de
ponta achar normal o fato de um atleta sair da sala com seu pote de urina nas
mãos e esse poder passar de mão em mão é assustador. O próprio Adauto disse que
já pegou o frasco de urina da vários atletas. Rafael Trindade afirma que isso é
mais raro acontecer, mesmo no Brasil, mas que o meio não dá muita importância
ao fato. "Já vi até no Troféu Brasil, no Rio de Janeiro. Mas entendem que
se a urina fica com o atleta ou acompanhante, está segura e que o atleta é o
maior interessado em cuidar da sua amostra. Já em provas internacionais, nunca
vi isso [sair com a urina em mãos], porque a estrutura é melhor", afirma.
O atleta pode ser o maior
interessado em cuidar da sua amostra, mas há atletas bem e mal-intencionados.
Um atleta dopado poderia ou não aproveitar essa brecha para trocar sua urina
contaminada por uma limpa? “Se o atleta encontra alguém do lado, pode trocar,
fazer uma fraude”, diz Claudinei, indignado.
No Desafio Internacional Olímpico
de Atletismo, no Ibirapuera (São Paulo), Simone bateu o recorde sul-americano
dos 5 000 metros. Nesse 20 de maio, não houve controle antidoping, nem para
Simone, nem para nenhum outro atleta. "Todas as provas nacionais e internacionais
com a chancela da CBAT são obrigadas a fazer o controle. E também as de rua com
premiação superior a 20 000 reais. Já o Desafio, uma prova estadual e de pista,
foi organizado pela Federação Paulista de Atletismo (FPA), que não solicitou
antidoping", explica Martinho. Tanto a CBAT como as federações argumentam
que os altos custos impedem testes em todas as provas do calendário. E, segundo
Esmeralda de Jesus, vice-presidente da FPA, "aquele era apenas um evento
inaugural, fizeram uma provinha para abrir a pista para o GP Internacional no
domingo".
Não havia a obrigatoriedade, mas
um recorde sul-americano em uma "provinha" sem antidoping é sinal de
que algo precisa ser revisto. E, infelizmente, pode servir de estímulo para
atletas usarem substâncias proibidas.
O drama de Simone – Tempos difíceis.
Simone nasceu no Morro do Chapéu,
município baiano com cerca de 35 000 habitantes, mas, aos 3 anos, mudou com a
mãe e os três irmãos para Jacobina (com cerca de 80 000). Nunca parou quieta.
Vivia correndo, mas sempre atrás da bola. Handebol, vôlei, futebol, era só
chamar. Até que uma tragédia familiar veio mudar seu gosto por esportes e sua
história de vida. "Meu irmão se envolveu com coisas erradas e foi
assassinado aos 18 anos. Drogas, vinganças, essas coisas... Ele adorava correr
e ia participar da primeira prova de rua, a Duque de Caxias, em Jacobina. Era o
sonho da vida dele. Pensei: 'Vou correr essa prova pra ele'", conta. Aos
13 anos, Simone treinou uma semana e fez os 10 km. "Fiz em 45 minutos.
Ganhei meus primeiros 50 reais, um troféu e não parei mais."
Para a estreia na São Silvestre,
em 1998, contou com uma vaquinha dos amigos para pagar a passagem: a turma do
comércio se reuniu e cada um deu 1, 5, 10, 50 reais... "Vim de ônibus
clandestino, foram três dias de viagem." Fez os 15 km em 1h13. "Para
outra São Silvestre, comprei um bode e fiz um bingo. Uma vez, o dinheiro foi
pouco, vendi dois botijões de gás que estavam cheios", conta a mãe. Em
2010, tornar-se-ia a brasileira mais rápida da história da competição.
"Depois daquele ano, parei de ter medo das quenianas e etíopes. Pensei:
'Não são pessoas surreais'", conta. Com o vice, afirma ter recebido uma
proposta para turbinar ilegalmente os resultados. "Médico famoso, de
atleta de triatlo, me ligou e disse: 'Você ficou a 15 segundos da vitória.
Podemos tirar isso aí'." Mas diz não ter dado ouvidos ao doutor.
Simone conta que tinha uma vida
sofrida em Jacobina, mas que soube o que era mesmo passar dificuldades em São
Paulo, cidade que adotou em 2001. "Minha filha, você vai pra lá, não tem lugar
pra ficar, não tem nada...", alertou a mãe. Ela veio e conheceu o técnico
Adauto nesse mesmo ano. Enquanto números mais expressivos e contratos não
pipocavam, trabalhou para poder treinar.
Conta que, com frequência, ficava
sem o dinheiro da condução e dormia literalmente debaixo da ponte. "Em
cima de jornal, de cobertor. Quantas vezes tive que dormir em cemitério depois
de trabalhar e treinar? E também no banheiro de ginásio. Eu subia em cima do
vaso pra ninguém ver e dormia lá." Conta que chegou a dar um pique extra
para escapar de um trauma maior. "O segurança de um ginásio tentou abusar
de mim. Ficou correndo na quadra atrás de mim e me tranquei no quarto. Só saí
quando vi o movimento de gente", conta.
Faltava dinheiro para o básico.
"Cheguei a comer minhoca por uma semana, porque não tinha mais mistura em
casa. Pegava e fritava", diz, com os olhos cheios d'água. Às vezes,
faltava força para chegar aos treinos ministrados por Adauto na USP
(Universidade de São Paulo). "Desmaiava porque só tomava chá. Tive anemia
profunda." Sensibilizado, o treinador levou a garota para morar com ele e
a esposa – e ela ficou lá por dois anos. "Mas eu ajudava, cuidava do filho
dele sem cobrar nada. Não reclamo, mas fiz minha parte", diz.
Foi em um dos treinos de Adauto,
em 2006, que Simone conheceu o também atleta Carlos e de uma vez só ganhou
marido e um teto definitivo. Mas foi em 2009, por intermédio de Adauto, que ela
conseguiu o contrato com a BM&F. E a vida dentro e fora das pistas
deslanchou de vez.
Com o salário do clube, pôde
alugar uma casa em Santo André, perto do local de treinos, em São Caetano do
Sul, São Paulo ("Gastava 3 horas para chegar lá, a pé, e passei a gastar
só 25 minutos", conta), e também parar de vender lingerie e começar a se
alimentar e dormir direito. Passou a receber acompanhamento de nutricionista,
fisioterapeuta, ortopedista. O volume de treino aumentou e o lado psicológico
foi trabalhado.
"Com tudo isso, não é para
melhorar?", indaga o marido, revoltado com as suspeitas acerca da evolução
da esposa. Muita gente ficou de orelha em pé com a ascensão de Simone. Nem
tanto nos 5 000 metros (ela bateu o recorde com 15min18, em 2011, mas já tinha
um 15min49, em 2010), mas nos 10 000 metros: depois de ter como melhor marca em
2010 um 33min25, ela disparou no Troféu Brasil e fez os 10 000 metros em
31min16, dando uma volta na segunda colocada. "Estou no atletismo há 14
anos. Finalmente minha vida estava melhorando e por isso os resultados estavam
aparecendo. Não precisava usar alguma coisa", afirma Simone.
O drama de Simone – Para sempre corredora.
Hoje Simone treina de 40 minutos à
uma hora por dia – principalmente no parque Celso Daniel (leva 12 minutos
correndo até lá). "Não parei totalmente, só na hora do choque. Eu e Carlos
acordamos lá pelas 7h da manhã, damos esse trote e à tarde vendemos as
lingeries, de onde tiramos o pão de cada dia. Vendemos em casa, vamos até os
fregueses ou no salão da minha irmã, na lojinha", afirma. Ela conta que
seu volume semanal gira em torno de 130 km, diferente dos 180 de época de pico
de treino. Mesmo assim, uma quilometragem respeitável.
Até o fechamento desta edição de
RW, Simone aguardava o julgamento no STJD. Disse ter ouvido de um dirigente do
atletismo, sarcástico: "Você tem alguma medalha olímpica para reverter à
situação?" Pois seus treinos diários de corrida também eram impulsionados
pela esperança de conquistar uma. "Esse sonho ninguém me tira. Vou brigar
para tentar fazer o índice para a Olimpíada. É até abril, daria tempo,
né?"
Ainda não havia escolhido o
treinador do eventual retorno. "Só tenho certeza de que não será o Adauto.
Não quero o mal dele, mas é ele lá e eu cá. É fácil pra quem vê o Adauto lá,
bonzinho, legal. Na hora que eu bati o recorde, eu era a melhor pessoa do mundo
e, hoje, eu sou a pior pessoa. Pra que ter uma pessoa dessa? Não quero não! Na
volta, vou trabalhar pra melhorar e despertar o interesse de algum clube."
Antes do veredicto final, Simone
só tinha uma certeza: jamais deixaria de correr. "A corrida não é só
dinheiro. É minha alegria, onde conheci muitas pessoas boas, é o que mais gosto
de fazer. Eles podem me fazer parar de competir, mas jamais de correr."