sexta-feira, fevereiro 17, 2012

A excelente matéria da revista Runner's World Brazil, sobre a atleta Simone Alves...



A revista Runner’s, publicou uma excelente matéria, assinada pela repórter Patrícia Julianelli sobre a fundista brasileira Simone Alves, flagrada em setembro de 2011 no exame antidoping pelo usa da substância Eritropoietina.

A matéria expõe a fragilidade do controle do doping no Brasil e mostra à dura e cruel realidade no surgimento de um atleta neste país.

A matéria é longa, mas certamente vai interessar a aqueles que desejam conhecer melhor o enorme fosso que separa o discurso oficial, repleto de pompa e mentiras, da realidade sem maquiagem ou retoques.



O drama de Simone

Flagrada no antidoping, a maior fundista brasileira desde Carmem de Oliveira hoje vende lingerie para sobreviver. Na primeira entrevista após a divulgação do exame, ela alegou inocência e disse que foi vítima de uma sabotagem.

Por Patricia Julianelli

Introdução:

O sorriso fácil logo conquista a clientela. Vendedora de mão cheia, ela tem freguesia fiel. Simone migrou do interior da Bahia para ganhar a vida na capital paulista. Conta que já fez de tudo: foi animadora de circo, manicure, babá, empregada doméstica... Hoje, vende lingerie de porta em porta. Aos 27 anos, com seus 42 kg e 1,53 metros de altura, conta com a ajuda do marido, Carlos, que carrega a mochila abarrotada de sutiãs. Ela poderia ser um dos milhares de nordestinos anônimos que tiram seu sustento do comércio informal. Mas é Simone Alves da Silva, até poucos meses atrás apontada como a maior fundista brasileira desde Carmem de Oliveira.

Simone foi do céu ao inferno em 2011. A sequência de conquistas começou antes da virada, em 31 de dezembro de 2010. Naquela tarde, a atleta apontava na Avenida Paulista para se tornar a brasileira mais rápida da história da São Silvestre: fecha os 15 km em 50min25, na segunda colocação, pertinho da campeã. Os olhos do país se voltavam para a garota de Jacobina que alguns meses depois viria a quebrar dois recordes sul-americanos, marcas estas em poder de Carmem de Oliveira desde 1993.

Em maio, ela crava 15min18s85 nos 5 000 metros, deixando para trás os 15min22 de Carmem. Em agosto, faz 31min16s56 nos 10 000 metros, pulverizando os 31min47. No dia 4 de setembro, madrinha da tradicional prova Duque de Caxias, em sua cidade natal, a atleta é recebida com passeata e salva de palmas. Dorme com a sensação de que a vida não poderia estar melhor. Mas acorda do sonho no dia seguinte.

O drama de Simone – A casa caiu.

No dia 5 de setembro, Simone Alves recebe o comunicado oficial da Confederação Brasileira do Atletismo, a CBAT: testara positivo para Eritropoietina Recombinante (EPO, a sigla mais famosa do submundo do esporte de alto rendimento) no exame antidoping feito no Troféu Brasil de Atletismo (no dia do recorde dos 10 000 metros, em 3 de agosto). "O baque foi imenso, cheguei a desmaiar três vezes. Pensei em me matar. Não comia, ficava jogada na cama", conta Simone.


A Eritropoietina é um hormônio produzido principalmente pelos rins e que estimula a produção de glóbulos vermelhos, responsáveis pelo transporte de oxigênio. "Em esportes de longa duração, é usada em sua forma injetável (feita em laboratório) para levar mais oxigênio ao músculo e retardar a fadiga", afirma o médico do esporte Eduardo De Rose, presidente honorário da Federação Internacional de Medicina Esportiva e responsável pela área antidoping do COB (Comitê Olímpico Brasileiro).

Simone jura inocência e afirma ter sido vítima de um complô para assumir a culpa antes que a notícia se espalhasse e respingasse na reputação do alto escalão do atletismo. De Adauto Domingues, seu então treinador, a quem recorreu de imediato, diz ter ouvido: "Sua bandida, quer f... com minha carreira, ferrar com meu nome, com o do Marilson [Gomes dos Santos, a outra estrela treinada por Adauto]? Assume logo, liga pra CBAT e diz quem aplicou". Adauto reconhece que pediu à atleta que fosse a público, mas afirma que chegou a oferecer seu apoio. "Eu disse pra ela: 'Se você me contar quem fez isso, vou com você a público, fico junto. Você paga, volta e aprende com o erro'. Eu disse pra ela o mesmo que digo a meus três filhos: 'Errou, tem que pagar'", afirma. O apoio estava condicionado a uma confissão de culpa, que Simone não estava disposta a fazer.


Da CBAT, Simone recebeu orientação semelhante. "O atleta sabe que se indicar quem forneceu a substância, pode ter a pena reduzida. É a delação premiada. Ajuda a tirar de circulação quem fornece", afirma Thomaz Mattos da Paiva, presidente da Agência Nacional Antidoping (ANAD), da CBAT. De Cristiano Laurino, médico ortopedista do clube de atletismo BM&F, que cuidava da atleta, Simone diz ter ouvido: “Se der positivo a contraprova, você vai à imprensa falar que a gente não tem nada a ver com isso?" O fisioterapeuta Rodrigo Iglesias, também da BM&F, afirma que todos foram pegos de surpresa com a notícia. "Não tínhamos noção, a equipe é unida, trabalha limpo. Mas os atletas são esclarecidos, ninguém é bobinho. Se isso [doping] acontece no esporte, é bem longe da BM&F", afirma.


O comunicado oficial do dia 5 de setembro era o resultado da amostra A. Se não concordar, o atleta tem o direito de pedir a contraprova (ou seja, a análise da amostra B). Dificilmente o resultado é diferente, até porque é a mesma urina dividida pelo atleta em dois potinhos, A e B (veja mais detalhes no quadro Sob Controle). "Em 99,99%, dá a mesma coisa”, diz Thomaz. Até o resultado da amostra B, o processo segue apenas internamente, em sigilo, e a CBAT não pode se pronunciar sobre o caso. Mas a RUNNER’S WORLD soube do resultado da amostra A e divulgou a má nova em primeira mão em seu site no dia 4 de outubro. A partir dessa notícia, não só os envolvidos no caso, mas todo o atletismo sofria um abalo.


O drama de Simone – Por entre os dedos.

Simone pede a contraprova e novamente testa positivo para EPO. (No dia 14 de outubro, a atleta é suspensa até o julgamento no Superior Tribunal de Justiça Desportiva da CBAT, marcado para ocorrer no dia 23 de janeiro, em Manaus desta edição de RW). Com aquele resultado da contraprova, a CBAT pôde publicar uma nota oficial sobre o caso. Simone viu, uma a uma, suas conquistas se esvaindo.


O recorde sul-americano dos 10 000 metros, Simone perdeu já com o positivo na amostra A. "De acordo com o Código Mundial Antidoping, todos os resultados da atleta são anulados a partir do dia que ela apresenta um resultado analítico adverso", afirma De Rose. Caso a atleta seja inocentada, o recorde retorna a ela. Os Jogos Pan-americanos, em Guadalajara, no México (de 14 e 30 de outubro), Simone viu pela TV. "Só algumas partes porque a dor era grande. Quando via o pessoal no pódio, cantando o hino nacional, chorava mais que uma criança", afirma.


Pouco antes, já havia ficado de fora do Mundial do Daegu, na Coreia do Sul. O corte da equipe da BMF às vésperas da competição gerou boatos de que ela pedira dispensa após anúncio da IAAF de um rígido controle antidoping (por sangue) no Mundial. Ela nega. BM&F e CBAT também inocentam a atleta dessa suspeita. "Ela teve um estiramento muscular na panturrilha esquerda, no músculo sóleo [que vai até o calcanhar]. Ficou de fora porque não teríamos tempo para tratá-la", afirma o fisioterapeuta Rodrigo.


O resultado da contraprova também acarretou outra consequência imediata: Simone não pertencia mais ao quadro de atletas da BM&F. "Há uma cláusula no contrato que prevê desligamento imediato em caso de doping e o atleta sabe disso. Recebe orientação, é alertado. Damos todo apoio, até a contraprova", afirma Laurino. Simone conta que lhe foi oferecida ajuda psicológica e orientação para lidar com a imprensa. O contrato foi rescindido e sua principal fonte de renda – 2 300 reais que recebia mensalmente do clube – secou.


Ao anunciar o desligamento de Simone, o clube lançou a iniciativa "Exames Antidoping Fora de Competição", em parceria com a CBAT. Vai realizar exames em 20 a 40 atletas por ano, escolhidos por sorteio ou suspeitas. "Quem tiver recordes, estiver se destacando, faz pelo menos um por ano. Assim, com o teste podendo acontecer a qualquer momento, o atleta sabe que não pode tomar nada nunca", afirma Sérgio Coutinho Nogueira, diretor técnico do clube.

Simone passou a vender lingerie para pagar o aluguel de 600 reais da casa de três cômodos (quarto, sala e cozinha) que divide com o marido em Santo André, na Grande São Paulo. E onde, provisoriamente, espremem-se com a mãe e o padrasto, Celso. "Simone estava no Jornal Nacional. Larguei tudo e vim para São Paulo. Não arredei mais o pé daqui", afirma dona Lenita. Como vendedora, a ex-atleta tira entre 1 000 e 2 000 reais por mês. Entre tantas perdas, a maior foi o apoio do técnico. Para Simone, mais que treinador, Adauto Domingues era seu melhor amigo, um segundo pai.


"Sofri muito. Pensei: 'Não tenho ninguém, e agora? '", conta. Adauto se diz sensibilizado ("ela é uma pessoa muito querida, realmente talentosa, disciplinada"), mas pondera o caso com menos emoção e mais realismo. "Claro que ficaria feliz se ela fosse inocente. Mas a situação dela é complicada, é uma substância injetável..." Para Adauto, ficou um questionamento maior, sobre a validade de um método de treinamento até então considerado vitorioso. "Fiquei frustrado. Tanto da Simone, como de outros atletas, faço um banco de dados com procedimentos e resultados. Achei que tinha criado um mecanismo que levava ao rendimento. Agora reavalio. Talvez não valha mais a pena guardar nada..."

O drama de Simone – Teoria da sabotagem.

Para cuidar de seu caso, Simone conta com os advogados Marcelo Muoio e Solange Correia, especialistas em direito desportivo. "Eles não cobram nada. O julgamento estava demorando. Ficamos com medo de gastar toda nossa reserva em honorários e não dar em nada." Reserva essa entre 35 000 e 40 000 reais, fora o carro popular (Celta) que ganhou na prova Dez Milhas Garoto (em Vitória) e que pretende vender. Simone continua na mesma casa que alugou ao ser contratada pela BM&F, em 2009. Chegou a ganhar uma bolada com o recorde dos 5 000 metros: ficou com 80 000 reais e Adauto, com 40 000. A maior premiação da sua carreira. Comprou uma casa pra mãe em Jacobina e ajudou a irmã a montar um salão de beleza.

Desde o comunicado oficial, Simone partiu em busca de dados que comprovassem sua inocência. "Se eu não usei a EPO, alguém trocou minha urina, é a única hipótese que eu vejo. Alguém quis me prejudicar. Alguém com muita inveja dos meus resultados", afirma. De fato, esse seria o único argumento plausível; embora olhado com desconfiança por dirigentes pela frequência com que é usado em casos de flagra. Como a EPO é injetável, não pode ser ingerida por comprimidos ou cápsulas, então não existe a hipótese de contaminação na farmácia de manipulação ou algo do gênero.


Um exame antidoping negativo próximo ao exame positivo poderia comprovar a tese da atleta? Talvez, se fosse muito próximo. Simone testou negativo na prova Dez Milhas Garoto, quatro dias depois do Troféu Brasil. Mas poderia ter tomado a substância antes do Troféu, a tempo de ela metabolizar e não aparecer na urina coletada na prova da Garoto, dias depois. E ela não tem um exame antidoping logo antes. E mesmo se tivesse, o laboratório não divulga que tipo de EPO foi encontrado na sua urina, se de uma geração que "dura" até 72 horas ou uma que leva até sete dias para deixar de ser detectada, por exemplo. E isso ainda depende da dose ingerida e do metabolismo do atleta. Simone realizou apenas seis controles antidoping no ano passado, todos em competições oficiais.



Após quebrar a cabeça reconstituindo seu exame no dia do Troféu Brasil, com a ajuda de um médico do esporte e do advogado, chegou à tese de defesa usada no Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), da CBAT, em Manaus.


O exame deveria ser invalidado, pois não foi realizado de acordo com as normas da Agência Nacional Antidoping (ANAD) e da Federação Internacional de Atletismo (IAAF), entidades que, com a Agência Mundial Antidoping (WADA), regulam os controles no Brasil e no mundo. Simone alega que no dia do Troféu Brasil, teve seu teste antidoping interrompido para dar uma entrevista ao vivo para a televisão. Ela afirma que estava com dificuldade para completar os 90 ml exigidos e, diante da demora, foi retirada da sala e levou consigo o pote com a urina (em quantidade insuficiente). "Com uma tampinha que não fechava direito, foi tudo derramando", afirma. Teria deixado o pote no chão, perto da grade, dado entrevista por cerca de meia hora, voltado para a sala, tomado água e isotônico, completado o mesmo pote, distribuído à urina entre as amostras A e B e lacrado.

O drama de Simone – As pedras no caminho.


Que Simone saiu da sala de controle (onde é feito o exame antidoping) para dar a entrevista, não restam dúvidas. Em um vídeo disponível na internet, a repórter do canal SporTV (da TV Globo), afirma em entrevista ao vivo: "Ela foi para o doping e estava demorando. A gente teve que tirar ela do doping para participar do 'Tá na Área'". Pelo que a RW apurou, isso aconteceu e não foi à primeira vez nas pistas brasileiras. "Às vezes, por falta de experiência do coletor, a Rede Globo em cima, aquela pressão...", afirma Martinho Nobre dos Santos, superintendente técnico da CBAT.


Mas Simone não diz apenas que saiu da sala de controle no meio do processo de coleta para dar entrevista. Ela afirma que saiu com o pote de urina em mãos. A IAAF diz que, quando o volume de urina do atleta é insuficiente (caso de Simone), ele deve receber um kit para amostra parcial, despejar a urina em um frasco com uma numeração e lacrar esse frasco (que é retido pelo oficial). Ao retornar à sala, o atleta vê se o lacre está íntegro e aí sim se aproveita aquela amostra (ela é misturada à nova amostra colhida no seu retorno). Simone diz que saiu com a amostra em mãos, em um pote sem lacre. Com sua resposta oficial, Ana deixa em aberto se permitiu a saída de Simone da sala de controle, se ela saiu com a amostra de urina em mãos, se a amostra continha ou não lacre e também se acompanhou a atleta do lado de fora.


Além de supervisionado por Ana Carolina, o exame de Simone foi acompanhado pelo fisioterapeuta Rodrigo Iglesias, também convocado pela defesa. Ele afirma não se lembrar exatamente do que se passou naquele Troféu Brasil. Em um primeiro contato com a RW, disse que o frasco ficou na mão da Simone. No segundo, que Adauto (o técnico) segurou enquanto ela dava entrevista e depois ele (Rodrigo) segurou enquanto o Adauto era entrevistado (e então o frasco foi devolvido a Simone). "Não lembro, mas se peguei, já fiz isso para outros atletas", diz Adauto, que questiona: "Quem contaminaria a amostra?" Essa é a dúvida de dirigentes que olham a tese de Simone com desdém. "A pessoa se apega a qualquer coisa para escapar. Mas se a CBAT não cumpre as determinações [de suspender o atleta], pode ser desfiliada da IAAF", afirma Martinho.


Simone afirma que quiseram prejudicá-la. Mas no dia 3 de agosto (data do exame), ela também o fez, cometendo, segundo De Rose, um deslize. "Existe uma pergunta no formulário que o atleta preenche após o exame, que é: 'Todas as condutas realizadas estão dentro das regras? ' O atleta assina e tem um campo para seus comentários. Se houvesse questionamento, teria que fazer logo após a coleta, e não após o resultado positivo no antidoping", diz. "Não fiz comentário porque jamais imaginaria que o exame traria problema", afirma Simone.



Uma espécie de último recurso seria o exame de DNA pela análise da urina (que testou positivo e permanece no laboratório). A questão é que, se houve uma contaminação da amostra, ela poderia conter o DNA de dois atletas – o que não seria muito útil a Simone. Se mostrasse que a urina é só de outro atleta, Simone seria absolvida. Se a urina fosse só de Simone, acabaria qualquer argumentação da defesa. Simone diz que pensou em fazer o exame, mas que foi desaconselhada pelo advogado Marcelo: “Disseram que era muito caro, a gente partiria pra briga com laboratório”. Já Marcelo afirma que não houve interesse real por parte dela. "Ficou de pensar, conversar com a família..." Entramos em contato com o laboratório canadense Institut Armand-Frappier, onde a amostra de Simone foi analisada e continua guardada. Eles se recusaram a informar o preço do exame de DNA, limitaram-se a dizer que “testes de DNA são desnecessários porque os frascos são lacrados, o que garante segurança total do procedimento".


Se comprovada a culpa de Simone, a regra prevê dois anos de suspensão do atletismo para a EPO como pena mínima. Isso porque essa substância, no caso de atletas, só visa o rendimento. "Na medicina, é usada para tratar paciente renal crônico, o que é totalmente incompatível com a vida de um atleta", explica De Rose. Mas Simone pode pegar uma pena ainda maior: entre quatro e seis anos, no total, por ser reincidente.


Em 2009, a atleta testou positivo para o estimulante Oxilofrina em exame realizado no Circuito Fluminense de Corridas (Volta Redonda) e levou um gancho de 90 dias. Justificou que tomou um remédio para dor de dente ("Estava com dois dentes abertos, passei a noite chorando de dor, nem dormi antes da prova"). "A Oxilofrina é menos grave porque pode ser encontrada em um medicamento para tratar uma doença e só eventualmente usada para doping", diz De Rose. Simone cumpriu o gancho, mas ainda questiona o controle. "Uma hora e quarenta depois da prova, fui abordada pela doutora Carol para o antidoping. Deu tempo de tomar banho, tomar o analgésico... Avisei a doutora Carol que tinha tomado o remédio". Doutora Carol é Ana Carolina Siqueira, a mesma oficial que lhe aplicou a coleta no Troféu Brasil.


O drama de Simone – Sistema capenga.

A tese de Simone não é de toda fantasiosa. Não porque a atleta estava evoluindo e não tinha motivos para trapacear, como ela alega. Mas porque o sistema antidoping no Brasil apresenta brechas. Para dirigentes, sair da sala para uma premiação ou entrevista é uma exceção. Mas converse com um atleta e ele se lembrará de pelo menos um evento em que saiu da sala de controle com a coleta inconclusa.


Já em competições internacionais, atletas dizem que tal fato é raridade. "Há uma logística bem elaborada e que torna essa situação muito rara. Por exemplo: a imprensa não tem acesso às cercanias da sala antidoping. Se acontece, é uma exceção e sempre de acordo e acompanhada do oficial", afirma Rafael Trindade, membro da comissão antidoping da IAAF nos últimos quatro anos (e desde janeiro de 2011, na Confederação Brasileira de Triatlo). Claudinei Quirino, prata na Olimpíada de Sidney (2000) no revezamento 4 x 100 metros rasos, confirma. "Fiquei na sala o tempo todo, o controle é muito rígido. Eu nunca presenciei alguém sair para dar entrevista."


Gente do universo do atletismo de ponta achar normal o fato de um atleta sair da sala com seu pote de urina nas mãos e esse poder passar de mão em mão é assustador. O próprio Adauto disse que já pegou o frasco de urina da vários atletas. Rafael Trindade afirma que isso é mais raro acontecer, mesmo no Brasil, mas que o meio não dá muita importância ao fato. "Já vi até no Troféu Brasil, no Rio de Janeiro. Mas entendem que se a urina fica com o atleta ou acompanhante, está segura e que o atleta é o maior interessado em cuidar da sua amostra. Já em provas internacionais, nunca vi isso [sair com a urina em mãos], porque a estrutura é melhor", afirma.


O atleta pode ser o maior interessado em cuidar da sua amostra, mas há atletas bem e mal-intencionados. Um atleta dopado poderia ou não aproveitar essa brecha para trocar sua urina contaminada por uma limpa? “Se o atleta encontra alguém do lado, pode trocar, fazer uma fraude”, diz Claudinei, indignado.


No Desafio Internacional Olímpico de Atletismo, no Ibirapuera (São Paulo), Simone bateu o recorde sul-americano dos 5 000 metros. Nesse 20 de maio, não houve controle antidoping, nem para Simone, nem para nenhum outro atleta. "Todas as provas nacionais e internacionais com a chancela da CBAT são obrigadas a fazer o controle. E também as de rua com premiação superior a 20 000 reais. Já o Desafio, uma prova estadual e de pista, foi organizado pela Federação Paulista de Atletismo (FPA), que não solicitou antidoping", explica Martinho. Tanto a CBAT como as federações argumentam que os altos custos impedem testes em todas as provas do calendário. E, segundo Esmeralda de Jesus, vice-presidente da FPA, "aquele era apenas um evento inaugural, fizeram uma provinha para abrir a pista para o GP Internacional no domingo".

Não havia a obrigatoriedade, mas um recorde sul-americano em uma "provinha" sem antidoping é sinal de que algo precisa ser revisto. E, infelizmente, pode servir de estímulo para atletas usarem substâncias proibidas.

O drama de Simone – Tempos difíceis.

Simone nasceu no Morro do Chapéu, município baiano com cerca de 35 000 habitantes, mas, aos 3 anos, mudou com a mãe e os três irmãos para Jacobina (com cerca de 80 000). Nunca parou quieta. Vivia correndo, mas sempre atrás da bola. Handebol, vôlei, futebol, era só chamar. Até que uma tragédia familiar veio mudar seu gosto por esportes e sua história de vida. "Meu irmão se envolveu com coisas erradas e foi assassinado aos 18 anos. Drogas, vinganças, essas coisas... Ele adorava correr e ia participar da primeira prova de rua, a Duque de Caxias, em Jacobina. Era o sonho da vida dele. Pensei: 'Vou correr essa prova pra ele'", conta. Aos 13 anos, Simone treinou uma semana e fez os 10 km. "Fiz em 45 minutos. Ganhei meus primeiros 50 reais, um troféu e não parei mais."


Para a estreia na São Silvestre, em 1998, contou com uma vaquinha dos amigos para pagar a passagem: a turma do comércio se reuniu e cada um deu 1, 5, 10, 50 reais... "Vim de ônibus clandestino, foram três dias de viagem." Fez os 15 km em 1h13. "Para outra São Silvestre, comprei um bode e fiz um bingo. Uma vez, o dinheiro foi pouco, vendi dois botijões de gás que estavam cheios", conta a mãe. Em 2010, tornar-se-ia a brasileira mais rápida da história da competição. "Depois daquele ano, parei de ter medo das quenianas e etíopes. Pensei: 'Não são pessoas surreais'", conta. Com o vice, afirma ter recebido uma proposta para turbinar ilegalmente os resultados. "Médico famoso, de atleta de triatlo, me ligou e disse: 'Você ficou a 15 segundos da vitória. Podemos tirar isso aí'." Mas diz não ter dado ouvidos ao doutor.


Simone conta que tinha uma vida sofrida em Jacobina, mas que soube o que era mesmo passar dificuldades em São Paulo, cidade que adotou em 2001. "Minha filha, você vai pra lá, não tem lugar pra ficar, não tem nada...", alertou a mãe. Ela veio e conheceu o técnico Adauto nesse mesmo ano. Enquanto números mais expressivos e contratos não pipocavam, trabalhou para poder treinar.


Conta que, com frequência, ficava sem o dinheiro da condução e dormia literalmente debaixo da ponte. "Em cima de jornal, de cobertor. Quantas vezes tive que dormir em cemitério depois de trabalhar e treinar? E também no banheiro de ginásio. Eu subia em cima do vaso pra ninguém ver e dormia lá." Conta que chegou a dar um pique extra para escapar de um trauma maior. "O segurança de um ginásio tentou abusar de mim. Ficou correndo na quadra atrás de mim e me tranquei no quarto. Só saí quando vi o movimento de gente", conta.

Faltava dinheiro para o básico. "Cheguei a comer minhoca por uma semana, porque não tinha mais mistura em casa. Pegava e fritava", diz, com os olhos cheios d'água. Às vezes, faltava força para chegar aos treinos ministrados por Adauto na USP (Universidade de São Paulo). "Desmaiava porque só tomava chá. Tive anemia profunda." Sensibilizado, o treinador levou a garota para morar com ele e a esposa – e ela ficou lá por dois anos. "Mas eu ajudava, cuidava do filho dele sem cobrar nada. Não reclamo, mas fiz minha parte", diz.


Foi em um dos treinos de Adauto, em 2006, que Simone conheceu o também atleta Carlos e de uma vez só ganhou marido e um teto definitivo. Mas foi em 2009, por intermédio de Adauto, que ela conseguiu o contrato com a BM&F. E a vida dentro e fora das pistas deslanchou de vez.


Com o salário do clube, pôde alugar uma casa em Santo André, perto do local de treinos, em São Caetano do Sul, São Paulo ("Gastava 3 horas para chegar lá, a pé, e passei a gastar só 25 minutos", conta), e também parar de vender lingerie e começar a se alimentar e dormir direito. Passou a receber acompanhamento de nutricionista, fisioterapeuta, ortopedista. O volume de treino aumentou e o lado psicológico foi trabalhado.


"Com tudo isso, não é para melhorar?", indaga o marido, revoltado com as suspeitas acerca da evolução da esposa. Muita gente ficou de orelha em pé com a ascensão de Simone. Nem tanto nos 5 000 metros (ela bateu o recorde com 15min18, em 2011, mas já tinha um 15min49, em 2010), mas nos 10 000 metros: depois de ter como melhor marca em 2010 um 33min25, ela disparou no Troféu Brasil e fez os 10 000 metros em 31min16, dando uma volta na segunda colocada. "Estou no atletismo há 14 anos. Finalmente minha vida estava melhorando e por isso os resultados estavam aparecendo. Não precisava usar alguma coisa", afirma Simone.

O drama de Simone – Para sempre corredora.

Hoje Simone treina de 40 minutos à uma hora por dia – principalmente no parque Celso Daniel (leva 12 minutos correndo até lá). "Não parei totalmente, só na hora do choque. Eu e Carlos acordamos lá pelas 7h da manhã, damos esse trote e à tarde vendemos as lingeries, de onde tiramos o pão de cada dia. Vendemos em casa, vamos até os fregueses ou no salão da minha irmã, na lojinha", afirma. Ela conta que seu volume semanal gira em torno de 130 km, diferente dos 180 de época de pico de treino. Mesmo assim, uma quilometragem respeitável.


Até o fechamento desta edição de RW, Simone aguardava o julgamento no STJD. Disse ter ouvido de um dirigente do atletismo, sarcástico: "Você tem alguma medalha olímpica para reverter à situação?" Pois seus treinos diários de corrida também eram impulsionados pela esperança de conquistar uma. "Esse sonho ninguém me tira. Vou brigar para tentar fazer o índice para a Olimpíada. É até abril, daria tempo, né?"



Ainda não havia escolhido o treinador do eventual retorno. "Só tenho certeza de que não será o Adauto. Não quero o mal dele, mas é ele lá e eu cá. É fácil pra quem vê o Adauto lá, bonzinho, legal. Na hora que eu bati o recorde, eu era a melhor pessoa do mundo e, hoje, eu sou a pior pessoa. Pra que ter uma pessoa dessa? Não quero não! Na volta, vou trabalhar pra melhorar e despertar o interesse de algum clube."


Antes do veredicto final, Simone só tinha uma certeza: jamais deixaria de correr. "A corrida não é só dinheiro. É minha alegria, onde conheci muitas pessoas boas, é o que mais gosto de fazer. Eles podem me fazer parar de competir, mas jamais de correr."



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