Imagem: Getty Images
Lica, de excluído por ser
portador do HIV a maior goleador da América
Brasileiro brilhou no futebol
peruano depois de ser diagnosticado com o vírus
Para muitos, ainda nos anos 1990,
isso significava uma sentença de morte
Por: Breiller Pires para o El
País
Há duas décadas, Eduardo Esídio
recebeu o diagnóstico que poderia ter encerrado precocemente sua carreira no
futebol.
Teste de HIV: positivo.
Até então, ele se preparava para
o maior desafio da trajetória como jogador.
Havia sido contratado pelo clube
mais popular do Peru, que amargava um jejum de cinco anos sem títulos
nacionais.
Mas o sonho do atacante de
triunfar no estrangeiro esbarrou no preconceito.
Ao saber do resultado do exame, o
Universitário o dispensou antes mesmo da estreia.
Dirigentes não queriam contar com
“um doente” no time.
Conhecido como Lica, nascido em
Santa Rita do Passa Quatro, no interior paulista, o canhoto Eduardo Esídio
rodou por clubes pequenos do Brasil até receber uma proposta do não menos
modesto Alcides Vigo, da capital peruana.
No primeiro semestre em Lima, não
evitou o rebaixamento da equipe para a segunda divisão, mas os seis gols que
marcou foram suficientes para chamar a atenção do maior campeão do país, o Club
Universitário de Deportes.
Naquela altura, já tinha 27 anos
e encarava a mudança como a chance de ouro de sua carreira.
Passou por uma bateria de exames
médicos antes da pré-temporada.
Quando vivia a expectativa pelo
início dos treinos, recebeu a notícia, em 15 de janeiro de 1998, de que o clube
havia feito, sem ele saber, um teste de HIV com suas amostras de sangue.
A contraprova detectou sorologia
reagente para o vírus.
O atacante entrou em desespero.
Pegou o primeiro voo rumo ao
Brasil.
Durante a viagem, desejou várias
vezes que o avião caísse, para acabar logo com o pesadelo.
Antes de chegar a Santa Rita do
Passa Quatro, um dirigente do Universitário vazou a informação de que Eduardo
Esídio “estava doente, tinha Aids”, segundo suas palavras, que rapidamente
correram o noticiário.
A família de Lica ficou sabendo
do diagnóstico pela televisão, da forma mais sensacionalista possível.
O pai, Adão Esídio, passou mal.
Todavia, ao recobrar os sentidos,
deu apoio para que o filho superasse a adversidade e seguisse no futebol.
Lica, então, realizou exames mais
detalhados, que constataram que ele era portador assintomático do HIV.
Não tinha Aids, como havia dito o
cartola de seu clube, tampouco manifestava qualquer sintoma que o impedisse de
jogar.
Decidiu voltar ao Peru.
No entanto, ao se reapresentar no
Universitário, descobriu que o presidente Alfredo González havia rescindido seu
contrato.
Nessa época, o HIV ainda era um
mito que causava assombro no Peru do ditador Alberto Fujimori.
Em 15 anos, desde 1983, o país
tinha contabilizado mais de 8.000 infecções pelo vírus.
O índice de mortalidade dos casos
que evoluíam para a Aids era um dos maiores da América Latina.
Para evitar uma epidemia, o
Governo peruano baixou em 1996 uma lei federal que, além de focar na prevenção,
impedia que pessoas diagnosticadas com HIV fossem demitidas do trabalho.
Baseado na legislação, Eduardo
Esídio acionou a Justiça para restabelecer o vínculo com o Universitário.
Foram três meses de batalha nos
tribunais até o clube ser obrigado a readmiti-lo.
Porém, o caminho aos gramados não
seria fácil.
A Federação Peruana relutava em
registrar seu contrato.
Havia resistência até mesmo
dentro do próprio elenco dos cremas.
“Seria melhor ele ter ficado no Brasil. Os jogadores estão com medo”,
afirmou o diretor de futebol Miguel Silva, referindo-se aos atletas que tinham
receio em dividir o vestiário com Lica por causa do HIV.
Aos companheiros, o atacante não
cansava de repetir: “Eu tenho um vírus no
meu corpo, mas não sou doente”.
Graças à intervenção do técnico
argentino Osvaldo Piazza, que defendia a integração de Lica e pregava que,
independentemente do rótulo de portador do HIV, deveriam tratá-lo como um ser
humano, o brasileiro conseguiu a aceitação dos colegas.
Mas a Federação Peruana só
concordou em inscrevê-lo após a apresentação de laudos médicos, um deles
assinados pelo ministro da Saúde, Marino Costa, atestando que a presença do
atacante em campo não exporia outros jogadores ao risco de infecção pelo vírus.
Assim, ele finalmente estreou
pela La U no fim de abril de 98, sob holofotes da mídia que o chamava de “Magic Johnson do futebol”.
Sete anos antes, o astro do
basquete norte-americano havia declarado ser soropositivo em um pronunciamento
à imprensa.
Na mesma temporada, Johnson
disputou o Jogo das Estrelas à revelia de vários jogadores da NBA, que temiam
ser infectados pelo HIV com um possível corte ou sangramento provocado durante
a partida.
Ele ainda ganhou a medalha de
ouro na Olimpíada de 1992, em Barcelona, com o Dream Team dos Estados Unidos.
Mas sua carreira nas quadras
acabou interrompida devido à crescente objeção das equipes rivais.
Lica viveu situação semelhante no
Peru.
Juan Carlos Oblitas, lenda do
futebol local e então treinador da seleção, era um dos principais opositores à
participação do brasileiro na liga peruana.
Dizia abertamente que “se fosse jogador, jamais dividiria uma bola
de cabeça com Esídio”.
Nas entrevistas depois dos jogos,
o atacante não era questionado sobre gols e desempenho, mas sim sobre a suposta
“doença” que o acompanhava.
“Não tenho vergonha de dizer que sou soropositivo. Essa não é uma cruz
que eu vou carregar”, rebatia.
Recordista de gols e símbolo no enfrentamento ao preconceito
Médicos do clube e até
autoridades em saúde peruanas o desaconselhavam a seguir jogando.
Consideravam sua aventura pelo
esporte de alto rendimento um risco para ele e para os adversários.
Esídio se lembrou da história de
um atacante que seu primo Nilson Pirulito, ex-jogador com passagens por grandes
times brasileiros, enfrentara no início dos anos 90.
Gérson, goleador que despontou no
Atlético-MG e foi campeão da Copa do Brasil com o Internacional, também era
portador do HIV.
Morreu aos 28 anos, em 1994,
abandonado pelo clube colorado após o diagnóstico.
Lica estava determinado a não ter
o mesmo destino de Magic Johnson, muito menos o de Gérson.
Com o vírus controlado, Esídio,
evangélico convicto, se apegava apenas à fé.
“Deus me faz sentir uma pessoa normal.”
Logo no primeiro ano em ação pelo
Universitário, foi o artilheiro, com 25 gols, da campanha que levou o clube ao
título nacional.
Havia perdido muitos amigos
durante sua jornada, que se afastaram depois de saber sobre o HIV, mas ganhou a
admiração incondicional da maior torcida do Peru.
Na Copa Libertadores de 1999,
entretanto, voltou a ser discriminado.
Em um jogo contra a Universidad
Católica, em Santiago, Esídio se chocou pelo alto com um zagueiro e ambos
começaram a sangrar.
Embora seja bastante improvável o
risco de contágio pelo vírus em ocasiões como essas, jogadores chilenos
exigiram ao árbitro que o brasileiro fosse retirado da partida.
Antes do Universitário enfrentar
o Vélez Sarsfield, da Argentina, pelas oitavas de final, o lateral Federico
Domínguez demonstrou o descontentamento de seu time.
“Não somos contra os portadores [do HIV], mas é muito difícil enfrentar
um deles no futebol profissional. E se houver um choque e ele sangrar de novo?”
Contrariando prognósticos e
preconceitos, Lica festejou seu casamento no mesmo ano em que se sagrou
bicampeão pelo Universitário.
A temporada seguinte seria o
ápice da carreira.
Além do tricampeonato, ele anotou
37 gols, um recorde no país e na América.
Em 2000, somente Jardel, do
Porto, marcou mais vezes (38) que ele em ligas nacionais de primeira divisão.
Consagrado, Esídio se transferiu
para o Alianza Lima, rival da La U, onde voltou a conquistar o título peruano,
dessa vez ao lado do ex-são-paulino Palhinha e sob o comando do técnico Paulo
Autuori, no ano do centenário do clube.
Sua última temporada como jogador
foi em 2006, defendendo o União Barbarense na segunda divisão paulista.
Hoje, aos 48 anos, Eduardo Esídio
vive em Santa Rita do Passa Quatro com a filha e a mulher, Soraya.
Ele não fala sobre o vírus.
Prefere exaltar as glórias que
viveu no Peru.
“Fiz história e fui muito feliz por lá. Sou grato ao povo peruano, que
me acolheu como se eu tivesse nascido no país”, diz.
Seu recorde só foi quebrado no
início de novembro deste ano —o argentino Emanuel Herrera fez 39 gols pelo
Sporting Cristal.
De qualquer forma, o nome de
Esídio permanece marcado como o primeiro jogador com HIV a atuar
profissionalmente no futebol.
E, como o próprio Ministério da
Saúde peruano reconheceu, a imagem do goleador abraçado por crianças e
reverenciado por torcedores de todo o país mostrou que o estigma de “doentes”
que ronda os portadores do vírus é uma cruz que eles não devem carregar.