Cruyff: “Futebol é cometer erros
e não se frustrar”
Mítico holandês deixou escrita em
uma autobiografia sua peculiar filosofia sobre a vida e o esporte
Por Luis Martín para o El País
Em uma livraria de Londres foi
realizada na última quarta-feira a apresentação mundial de 14 The
Autobiography, de Johan Cruyff, evento do qual participaram como mestres de
cerimônias seu filho Jordi e Pep Guardiola, e que teve como moderador o
jornalista Jaap de Groot, que colaborou com Johan na redação do volume, escrito
em holandês quando o treinador já estava a par de sua doença.
Falecido em 24 de março de 2016,
Cruyff estava revisando o livro, uma obra de 319 páginas, um compêndio de
frases, histórias e arrazoados que desvenda de maneira cronológica a vida do
Magro, seu amor à família, sua gratidão ao Ajax e a razão pela qual interpretou
o futebol como o fez.
E como sempre fez, dá opinião
sobre quase tudo, porque para tudo teve uma reflexão em vida. Este jornal teve
acesso às páginas de suas memórias.
“Tudo o que sei aprendi por experiência”, proclama de cara.
Avisa: “Quando perdi meu pai, minha vida ficou determinada pelo Ajax”.
Desde a primeira página, na qual
anuncia que “o importante é aprender”,
Johan demonstra sua imensa gratidão ao clube de Amsterdam, que marcou uma vida
cuja máxima está no prólogo:
“O desejo de perfeição e de melhorar a mim mesmo”.
“Tudo o que fiz”, insiste Johan, “foi aprendendo com a experiência e olhando para o futuro”.
Define-se como “bastante engenhoso” e admite que não
tirou muito proveito da passagem pelo colégio:
“Para mim, tudo começava na rua”.
Ou em uma sala de cirurgia, onde
seu pai morreu quando ele era menino.
“Sempre me preocupou morrer jovem”, conta.
E explica como se salvou na
Clínica Sant Jordi de uma arteriosclerose:
“Enquanto estive doente, não fiquei nervoso. Se havia tantas pessoas
dedicadas a cuidar de mim não era possível que fosse continuar doente. O mundo
inteiro estava fixo no cirurgião e eu sabia que ele iria se esforçar ao máximo.
Era uma sensação agradável”, relata.
“Parecia um camarão”
Cruyff se lembra de como, sendo
menino e magrela –“parecia um camarão”—,
aos oito anos o deixaram entrar no De Meer antes de uma partida para passar o
ancinho pelo gol.
“Essas sensações, preparar o campo para meus heróis, estou certo de que
influíram na pessoa em que me transformei.”
Deixa entrever seu respeito
reverencial por Jany van der Ven, Rinus Michels e Vic Buckingham, seus
primeiros treinadores.
A morte do pai, quando tinha 12
anos, o marcou.
Quando passava diante do
cemitério, falava com ele, lhe fazia perguntas sobre o colégio, o futebol.
"Mas não sou muito crente e ninguém voltou da morte. Um dia o testei e
lhe disse que parasse o meu relógio."
E o relógio parou.
Bem de Johan, como seu gosto
pelos números.
Apesar de ser um aluno medíocre,
ele justifica isso pelo tempo que ajudou na quitanda familiar:
“Não ia até a caixa registradora e somava mentalmente”, diz.
Também aplicava os números à vida
familiar.
“Nós nos casamos no segundo dia do duodécimo mês. Dois mais doze são
14, meu número. Um casamento duas vezes bom... se há uma mulher de jogador de
futebol que nunca buscou publicidade, é ela”.
A vida com Danny mudou sua
maneira de se envolver com o futebol:
“A responsabilidade que adquiri em casa, transferi para o vestiário e o
jogo. Não me preocupava comigo mesmo”.
Em seu processo de interpretação
futebolística, jogar beisebol ajudou:
“Era muito bom e me ensinou a entender muitas coisas que pus em prática
no futebol porque no beisebol você tem de se antecipar. Aprendi a estar um
passo à frente”.
Recorda seu talento para jogar
como goleiro – “era realmente bom”– e
considera que aprendeu rápido:
“O futebol é um processo que consiste em cometer erros, analisá-los e
não se frustrar. Se não tivesse cometido erros eu teria perdido coisas
fantásticas”.
Seu objetivo sempre foi um:
“Jogar de forma bonita e no ataque”.
Teve muito presentes os
ensinamentos de Michels.
Lembra-se de como se escondia nas
árvores para não correr muito nos treinamentos pelas florestas e como na
partida de 0x5 no Bernabéu fez um movimento tático surpreendente:
“Em Madri vivia Theo de Groot, jornalista amigo de Michels e vizinho de
Gregorio Benito”. Este segredou toda a tática a De Groot. “O eixo de seu jogo é
que eu teria uma marcação por zona, que a última linha do Madrid faria. Quando
Michels soube disso, me pediu que jogasse mais atrás. Os quatro defensores
ficaram desconcertados”.
Escolheu a Espanha ao brigar com
o pessoal do Ajax por várias razões:
“Tinha falado com Rexach em Mallorca algumas vezes... Gostava de
Barcelona e, além disso, iria receber o dobro e pagaria a metade de impostos.
Criei um laço que se reforçou quando voltei como treinador”, diz.
“Quanto mais tempo passava na Espanha, mais evidente era a importância
da política no jogo... como jogador estrangeiro era intocável, de modo que
podia provocar Franco de vez em quando”.
Considera que suas diferenças com
Rexach têm a ver com sua mentalidade holandesa:
“Ele me expressava sua opinião, mas não agia. Deixava-se levar. Eu
expressava minha opinião e apresentava uma solução”.
Situação política
Garante que vê a situação na
Catalunha igual à de 40 anos atrás:
“A coisa está 50-50. Em caso de secessão, a população se dividiria: é
isso o que querem? Como holandês estou acostumado a chegar a acordos a partir
de opiniões distintas. Isso não se fez na Espanha, ninguém está disposto a
ceder. Nem os que querem separar-se nem os que querem continuar juntos, nem em
Madri”.
Elogia Guardiola:
“Tem uma grande personalidade e uma mente inteligente. E embora não se
apoie em conselhos, gosta de conhecer minha opinião”.
Recorda que quando o nomearam,
apenas comentou com ele:
“Devia ser capaz de dizer ao presidente: ‘Saia do vestiário, aqui mando
eu’”.
Argumenta que Busquets será um
bom treinador.
“Gostaria de ver Neymar e Messi sem Iniesta e Busi”, afirma.
Johan reconhece que sua carreira
afetou muito a sua família, e a ninguém como Jordi, que em 1983 ficou no Ajax
quando ele foi para o Feyenoord, que abandonou sua vida e seus amigos para o
seguir em Barcelona.
“No Barcelona teve de escutar que, se jogava, era por ser meu filho.
Transformaram o garoto em um jogo político contra mim. Núñez arrastou meu filho
para a lama. ”
Confessa que poucas coisas o
deixaram mais feliz do que ajudar na Fundação.
Avisa que “a criatividade está sendo atacada” e é necessário “voltar à base porque, se você vai comer,
precisa de uma faca e um garfo”.
Mas é “otimista” em relação ao futuro do futebol.
Ele não o verá, mas seu legado
perdura.
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