Você é argentino?
Por: J. N., o relato de um
sobrevivente
Gilmar Ferreira para o Extra
"O convite chegou por volta
das três da tarde, com o telefonema de um amigo que, feliz, dizia ter uma
entrada sobrando para o jogo Flamengo x Independiente.
Como sou cidadão espanhol,
nascido no México, não podia negar o convite e desperdiçar a oportunidade de
viver uma experiência histórica.
Emoção que poderia ser única, de
viver uma final de Copa Sul-América dentro do Maracanã, maior estádio das
Américas.
Rejeitá-lo, seria um luxo ao qual
apaixonados por futebol, como eu, não se permitem.
Concluí minhas tarefas no
trabalho e fui para a casa mais cedo, saindo de Botafogo para a Barra da
Tijuca, onde troquei o terno por bermuda, camiseta e tênis.
Coloquei os mais sujos para
evitar chamar a atenção.
Peguei o Metrô no Jardim Oceânico
em direção a estação Maracanã, onde combinei de encontrar o amigo que estava
com os ingressos.
No vagão, uma família com
mulheres e crianças reconheceu minha condição de estrangeiro residente e disse
que eu poderia ir com eles até o estádio.
Só que eles não desceram na
estação Estácio para tomar a Linha 2 na direção do estádio porque estava lotado
de gente.
Acabamos descendo na estação São
Francisco Xavier, e dali seguimos a pé até o estádio.
Caminhamos sem nenhum problema
até o Maracanãzinho, até que nos separamos.
Mas antes de a família tomar a
direção do acesso de entrada, houve o cuidado de me indicar por onde seguir
para encontrar meu amigo no Portão C.
Ainda não eram oito horas da
noite.
Já contornando o estádio, um
homem com uma lata de cerveja na mão apontou para mim e perguntou se eu era
argentino.
Com gestos, respondi que não, e
segui em frente.
Não tinha vontade de falar
justamente para que, pelo sotaque, não me confundissem com um argentino.
O homem, porém, insistiu.
Acompanhava meus passos e
repetia, com o olhar fixo e tom ameaçador.
"Você é argentino?"
Tentei responder em bom
"portunhol".
"Não, cara. Não sou
argentino, eu torço para os brasileiros, eu amo futebol".
Mas ele retrucou:
"Seu sotaque te entrega”, e
já foi finalizando a frase com um chute.
PESADELO
Foi quando percebi o pesadelo.
Continuei tentando seguir em
frente, ignorando o fato de que aquele torcedor, bêbado, pensava que eu fosse
um argentino.
Mas ele queria briga e só
consegui dar mais alguns passos à frente.
Logo fui parado por um grupo de
seis torcedores, que me rodeou, fazendo a mesma pergunta - já acompanhada de um
"carinho" (sic) nas costas.
"Você é argentino?"
Nesse momento, tirei do bolso
minha identidade brasileira de estrangeiro, mostrando que era "ESPANHOL",
não argentino.
Tentava explicar que vivo no
Brasil e queria somente realizar um sonho que é o de qualquer apaixonado por
futebol.
Mas a frase que eu mais repetia
era mesmo o "eu não sou argentino!"
Eles, porém, já eram mais de seis
e todos "deixavam" chutes, pontapés, socos e empurrões.
Logo percebi que estavam enfiando
as mãos nos meus bolsos, procurando por coisas de valor.
Eu não tinha muito, mas tentei
segurar a carteira, onde guardo os documentos.
Senti então que haviam levado meu
celular, sem parar com os socos e os pontapés nas costas.
O linchamento estava ficando cada
vez mais forte, quando vi se aproximar um homem alto, loiro e com barba, que
começou a me ajudar a sair das agressões.
Não sei repetir as palavras, mas
ele tentava dizer para o grupo que eu não era argentino, que vivia no Brasil, e
que me deixassem ir.
Os agressores não deram muita
atenção e seguiram com os chutes, agora mais leves.
Talvez tivessem percebido que eu
não era mesmo um argentino.
Aqueles minutos, que pareciam
durar horas, serão eternos...
De repente, um deles se aproximou
e disse:
"Me ajuda a te ajudar! Vem
comigo, que eu sou policial à paisana... me acompanha até aquela rua ali
atrás".
Sou estrangeiro, mas não sou
burro...
E, num ato de coragem, respondi:
"Se vai me bater, bate logo
aqui na frente de todo mundo, não em uma rua escondida".
Nesse momento, quando já estavam
quase tirando a carteira do meu bolso, chegaram os policiais.
Provavelmente, chamados por
aquele homem loiro, que tentou me ajudar anteriormente.
Mas não puderam dar conta daquele
grupo, ensandecido.
Cheguei até a acreditar que o
cenário poderia ficar ainda pior.
Mesmo assim, conseguiram afastar
os agressores, e um dos policiais me perguntou para qual setor eu estava indo.
Num segundo, o grupo dos
agressores ressurgiu em maior número.
Os policiais, então, pegaram os
cassetetes e começaram a tentar dispersa-los, afugentando-os com a chegada do
reforço policial.
"SE VOCÊ FOR LÁ, VOCÊ
MORRE!"
Resgatado, livre dos agressores,
fui perguntado mais uma vez, agora pelo policial.
"Você é argentino?"
Eu disse que não.
"Preciso apenas ir até ao
portão em frente à estação do Metrô para encontrar meu amigo, e estou sem
celular..."
Fui desaconselhado.
"Se você for lá, você
morre!"
Me vi em um beco sem saída, sem
telefone para me comunicar com meu amigo, sem ingresso, e na terra de ninguém.
Enquanto falava com o policial,
um rojão estourou do meu lado, deixou algumas marcas na parte da frente das
pernas.
Já não sentia dor, e só queria
dar um jeito de sair daquele inferno.
Logo em seguida chegou um outro
grupo de policiais, acompanhado de dois rapazes argentinos, resgatados com as
camisas rasgadas.
Não havia dúvidas: o cenário era
de guerra.
Um dos policiais nos escoltou até
o setor da torcida visitante.
E vale ressaltar a valentia dele,
o policial, também ameaçado, alvejado por latas de cerveja e cuspes
direcionados a mim e aos argentinos.
Esse homem estava arriscando a
vida dele por pessoas que nem conhecia, e provavelmente não teremos a
oportunidade de agradece-lo por isso.
Finalmente, chegamos ao setor
destinado ao público visitante, a torcida do Independiente.
Nunca pensei que teria
tranquilidade em estar no meio dos "Barras Bravas" argentinos.
Mas foi assim: sem querer, acabei
virando mais um do "clã".
Foi aí que chegou um taxi na área
próxima ao portão destinado aos visitantes, no qual entrei, pedindo que me
levasse para a casa.
LOUCOS
Dentro do carro, pude sentir as
dores das patadas, dos socos, e das bombas que felizmente não explodiram em meu
corpo.
Como estrangeiro, amante do
futebol acostumado à troca de países, sei que há loucos por seus clubes tem em
todos os lugares.
Fanáticos, mal-intencionados, que
acham fazer o bem a seus clubes destruindo o que veem pela frente e brigando
com quem vem do lado contrário.
Porém ontem pude perceber que as
agressões que recebi não foram conduzidas apenas por um grupo de fanáticos, mas
sim por bandos organizados.
Não se pode culpar toda uma
torcida de um clube pela conduta de uma minoria que atinge famílias, mulheres e
crianças.
E que faz com elas tenham de se
afastar dos estádios.
Quanto a mim, é claro que
voltarei ao Maracanã, só que na próxima vez acompanhado de amigos brasileiros.
Aprendi que não posso cometer o
"pecado" de ser reconhecido como estrangeiro em uma cidade que, paradoxalmente,
vive do turismo.
No mais, que a bola seja rolada
novamente, pois daqui a pouco chegam os Campeonatos Estaduais..."
J.N., executivo de um banco
espanhol a serviço há mais de um ano no Brasil, pediu que seu relato fosse
mantido no anonimato.
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