Imagem: The Historical Truth Project
Como o futebol alça a bola para a política
Na América Latina, proliferam os presidentes que foram cartolas de clube, numa demonstração da tênue linha entre política e futebol na região
Ariel Palacio para o El País
A Fifa, com 211 países-membros, é maior que a Organização das Nações Unidas (ONU), integrada por 193 Estados.
A entidade futebolística mundial também consegue obter obediência total por parte dos países que a compõem, enquanto as Nações Unidas, a duras penas, conseguem ter suas normas acatadas.
Esse é um dos vários sinais de que os governantes, muitas vezes, levam mais a sério o futebol que a própria política.
“A política é um mecanismo para conciliar conflitos verdadeiros, enquanto o futebol cria conflitos falsos e os mantém perpetuamente. A política é importante e deve ser levada a sério. O futebol não tem transcendência e por isso deve ser levado muito mais a sério”, afirmou o colunista esportivo espanhol Kiko Llaneras.
A política e o futebol são protagonistas no conflito diplomático entre Reino Unido e Rússia.
Nem ministros nem integrantes da família real britânica estarão presentes aos jogos da Copa do Mundo na Rússia, numa retaliação à tentativa de assassinato do ex-espião russo Sergei Skripal, em Salisbury, que o governo da primeira-ministra Theresa May diz ter sido encomendado pelo Kremlin, comandado por Vladimir Putin.
Se a conexão entre a política e os estádios é intensa na Europa, ela é ainda mais forte na América Latina, onde vários cartolas se transformaram em presidentes da República.
Esse é o caso do presidente da Argentina, Mauricio Macri.
Em 1995, Macri resolveu se afastar da figura do pai, o empresário Franco Macri, ao deixar as empresas familiares e disputar a presidência do clube Boca Juniors, o mais popular do país, com 43% da torcida nacional.
Macri não era propriamente dito um fanático do futebol.
Mas a conquista do posto de cartola do Boca lhe serviu de treino para aprender manobras políticas e ter, pela primeira vez, contato com a classe operária.
Sua gestão foi marcada por um viés empresarial, na ocasião uma novidade no mundo futebolístico argentino.
Na sequência, Macri criou seu próprio partido político.
E, em 2007, deixou o Boca para ser prefeito de Buenos Aires.
Do outro lado do Rio da Prata, o atual presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, foi presidente do Club Atlético Progreso em 1989, ano em que esse time conquistou (pela primeira e única vez) o campeonato da Primeira Divisão do Uruguai.
O clube está no bairro operário de La Teja, em Montevidéu, onde Vázquez nasceu.
O presidente do Uruguai é torcedor do Progreso desde criança.
No Paraguai, o presidente Horacio Cartes é outro exemplo de cartola que chegou ao poder. Cartes comandou um dos principais clubes do país, o Libertad.
Em sua gestão, o Libertad voltou à Primeira Divisão do campeonato paraguaio, obteve o tetracampeonato e chegou às semifinais da Libertadores de 2006.
A holding de Cartes, formada por 25 empresas, é o suporte financeiro do clube.
Cartes também foi diretor de seleções da Associação Paraguaia de Futebol durante as eliminatórias da Copa de 2010.
Nesse posto, manteve ótimas e fluidas relações com a diretoria da influente Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), onde os paraguaios, que hospedam a sede da entidade, têm uma influência desproporcional.
Embora a política seja lenta na hora de resolver a miríade de problemas internos do Mercosul, do qual Argentina, Uruguai e Paraguai são sócios fundadores, esses três presidentes se uniram no ano passado para pleitear, perante a Fifa, a realização da Copa do Mundo de 2030.
Uruguai, Argentina e Paraguai querem organizar juntos a edição centenária desse convescote futebolístico mundial, realizado pela primeira vez em 1930 em Montevidéu.
O Chile tem um novo presidente com passado de cartola, Sebastián Piñera, o maior bilionário de seu país.
Piñera foi presidente do clube Colo-Colo, mas deu um passo além de Macri, Cartes ou Vázquez.
Em 2004, ele se transformou no maior acionista individual da empresa que controlava o Colo-Colo.
Na ocasião, o movimento de Piñera foi visto como uma tentativa de usar o clube como trampolim para a política.
Em 2010, meses após tomar posse como presidente da República pela primeira vez (2010-2014), depois de acusações de que usava o clube com fins políticos, decidiu vender sua participação ali.
Na Argentina, o futebol foi usado intensamente pela presidente Cristina Kirchner (2007-2015) com fins políticos a partir de 2009, quando ela decretou a estatização das transmissões pela TV dos jogos do campeonato argentino.
Durante seis anos, até 2015, ela deu mais de US$ 1,3 bilhão aos cartolas, que embolsaram o dinheiro, sem qualquer tipo de fiscalização.
Paradoxalmente, apesar das grandes transferências de recursos, nesse período os clubes estiveram — em sua maioria — com graves problemas financeiros.
O governo Kirchner não ganhou dinheiro algum com as transmissões dos jogos, já que não autorizou publicidade privada, apenas oficial, com autoelogios ao governo de Cristina, a prefeitos e governadores aliados.
Na ocasião, a oposição classificou esse esquema de “populismo esportivo”.
A estatização das transmissões absorvia mais verbas do que os fundos federais destinados à cultura ou ao tratamento e à prevenção da aids.
O futebol já fora usado intensamente com fins políticos na Argentina durante a Copa do Mundo de 1978, quando a ditadura militar do período 1976-1983 colocou toda a máquina de propaganda do regime para exaltar a seleção e expor as pessoas que ignoravam a competição — ou não exibiam um fervoroso interesse pelo futebol — como “traidoras da pátria”.
Devido ao desespero do ditador Jorge Rafael Videla (foto) em vencer a Copa, existem diversas teorias sobre o controvertido jogo no qual a seleção argentina venceu a peruana por 6 a 0 e eliminou o Brasil na fase de quartas de final.
Os jogadores foram intimidados pelo próprio general, que repentinamente adentrou o vestiário dos peruanos quando eles estavam se vestindo para entrar em campo contra a Argentina (e alguns ainda estavam de cuecas) e fez um discurso sobre a intensa “solidariedade” entre peruanos e argentinos.
Vários jogadores peruanos deduziram que os militares argentinos poderiam assassiná-los depois do jogo caso o Peru vencesse e que colocariam a culpa do “atentado” em algum grupo guerrilheiro.
Integrantes da seleção peruana foram a campo tremendo de medo.
O placar de 6 a 0 gerou suspeitas mundiais, mas a Argentina conseguiu chegar à final e vencê-la na disputa contra a Holanda.
A final foi no Estádio Monumental de Núñez, a dez quarteirões da Escola de Mecânica da Armada, a ESMA, que era o maior centro de torturas de Buenos Aires.
Hoje, de forma geral, os argentinos preferem recordar a conquista da Copa de 1986, sem as suspeitas de 1978 e sem a sombra de uma ditadura sanguinária.
A Copa de 1978 teve outro viés muito característico dos eventos esportivos: o superfaturamento.
O almirante Emilio Massera, um dos integrantes da junta militar que governava a Argentina, prometeu a Videla (foto) que o evento — com a construção e remodelação de estádios, entre outros gastos — custaria US$ 70 milhões.
Mas o custo final foi de US$ 700 milhões, dez vezes maior.
O vínculo intenso entre o futebol e a política teve seu pontapé inicial na Copa de 1934 na Itália, quando o “duce” Benito Mussolini usou a competição para promover seu regime fascista: o frenesi nos estádios, com milhares de torcedores agitando bandeiras italianas, servia para desviar a atenção dos problemas econômicos e da censura política na Itália da época.
Ditadores costumam ser obsessivos com o controle dos detalhes.
Isso não se encaixa com o futebol, esporte de natureza imprevisível e fora do controle de um governo.
Obcecados com a vitória, os homens de Mussolini ameaçaram de morte os integrantes da seleção caso não conquistassem o troféu.
Os historiadores esportivos consideram que a seleção italiana, embora contasse com grandes jogadores, foi favorecida de forma pouco discreta pelos árbitros em diversos jogos, especialmente na final contra a Tchecoslovaquia.
Os jogadores italianos — respirando aliviados pela garantia de sobrevivência — receberam da Fifa a Taça Jules Rimet.
Foram premiados ainda com uma copa própria, a Coppa del Duce (a Copa do Duce), uma espécie de troféu adicional que tinha seis vezes o tamanho da Jules Rimet.
O escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, era um fanático do futebol, mas alertava que as tensões futebolísticas, ocasionalmente, transbordam dos estádios.
“Futebol, metáfora da guerra, às vezes se transforma em guerra real”, disse o escritor, a respeito da única ocasião da história mundial na qual o futebol foi protagonista de um conflito bélico, a denominada “Guerra do Futebol”.
Essa guerra explodiu em 1969, quando existia uma crescente tensão entre El Salvador e Honduras devido a ataques de grupos paramilitares contra os imigrantes salvadorenhos do lado hondurenho da fronteira.
Por trás dos ataques estava a política do presidente de Honduras, López Arellano, de realizar uma reforma agrária para tentar aliviar a crise entre os camponeses de seu país.
Mas, para não confiscar terras da empresa americana United Fruit Company (que tinha 10% do território do país) ou dos latifundiários hondurenhos, López Arellano decidiu expropriar os sítios dos imigrantes salvadorenhos.
Dezenas de milhares de lavradores salvadorenhos — muitos dos quais estavam havia décadas em Honduras — começaram a ser expulsos de volta para seu país de origem.
A tensão foi turbinada pelos jornais e rádios de cada país.
Nesse contexto de ânimos enfurecidos, foi realizado o primeiro jogo entre as seleções de Honduras e El Salvador, em Tegucigalpa, em junho de 1969, para as eliminatórias da Copa do México de 1970.
Honduras venceu por 1 a 0.
Torcedores e jogadores de El Salvador foram hostilizados e agredidos pelos hondurenhos.
No segundo jogo, dias depois, em San Salvador, os salvadorenhos venceram por 3 a 0.
A seleção hondurenha, da janela do hotel, viu como um jovem torcedor de seu país foi apedrejado até a morte na calçada da frente.
Os hondurenhos tiveram de fugir para casas de pessoas que os receberam de forma secreta.
No dia seguinte, o Exército salvadorenho os escoltou até o estádio, onde um pano de cozinha substituía a bandeira de Honduras, que jazia queimada no chão.
Um terceiro jogo foi realizado em território neutro, o México, dias mais tarde — e El Salvador venceu de novo, por 3 a 2.
No mesmo dia, o governo salvadorenho rompeu relações diplomáticas com Honduras, já que López Arellano nada fazia para deter a violência contra os imigrantes salvadorenhos.
Dias depois, o Exército de El Salvador invadiu Honduras e conseguiu chegar perto de Tegucigalpa, até ser empurrado de novo para seu lado da fronteira.
López Arellano protagonizou cenas pouco marciais ao se esconder dentro dos cofres do Banco Central de Honduras durante as 100 horas que durou a “Guerra do Futebol”.
Dali, desde o subsolo blindado — com o conforto de provisões de alimentos adequadas e linhas telefônicas para emitir ordens —, o ditador comandou as batalhas, enquanto as tropas dos dois países se confrontavam.
Seus críticos ironizaram: “No século passado faziam estátuas de presidentes a cavalo, com o sabre, para celebrar vitória na guerra. Neste caso, ficará difícil montar um monumento a um homem dentro de um enorme cofre de banco...”.
A guerra gerou 3 mil mortos e 15 mil feridos em ambos os lados, entre civis e militares.
Trezentos mil salvadorenhos expulsos de Honduras transformaram-se em refugiados em seu próprio país, criando as tensões que alimentaram a guerra civil de El Salvador dos anos 1970 e 1980.
Um dos mais famosos correspondentes internacionais da segunda metade do século XX, o polonês Ryszard Kapuściński, foi o autor da denominação “Guerra do Futebol” para esse conflito centro-americano.
“Os pequenos países do Terceiro Mundo têm a possibilidade de despertar um vivo interesse somente quando se decidem a derramar sangue. É uma triste verdade, mas é assim”, disse.
Em 2002, em Buenos Aires, ao falar dessa guerra.
Kapuściński disse, em espanhol, com forte sotaque de Varsóvia: “Foi talvez a guerra mais absurda que já vi. De forma geral, na América Latina, a fronteira entre o futebol e a política é tão, mas tão tênue, que é quase imperceptível!”.
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