Imagem: Dado Galdieri/The New York Times
Um incêndio matou 10 meninos no Brasil — e expôs um lado sombrio do
futebol
Um incêndio em um campo de treinamento de jovens jogadores de futebol
revelou que um sistema destinado a desenvolver novos atletas se tornou um
mercado especulativo que engole milhares de crianças brasileiras.
Tariq Panja and Manuela Andreoni para o The New York Times
RIO DE JANEIRO — Mesmo depois da
morte, a barganha continuou.
Christian Esmério seria “o cara”
— sua família tinha certeza disso.
Ele tinha 15 anos e era alto, com
um sorriso fácil que escondia sua habilidade entre as traves do gol.
Já se falava em contratos e em
comprar uma casa para os pais, que haviam investido todas as economias no sonho
de que o filho pudesse ser o próximo grande produto de exportação do futebol
brasileiro — um novo Ronaldo, Romário ou Neymar.
Agora, do lado de fora de um
prédio de escritórios do Rio, cercado por advogados, o pai estava atordoado
pela dor do luto.
Dias antes, Christian morrera
queimado em um incêndio no Centro de Treinamento de um dos clubes de futebol
mais famosos da América do Sul, o Flamengo.
Ele foi uma das 10 vítimas
fatais.
A tragédia revelou uma linha de
produção do futebol internacional e levantou questões sobre um aparato brutal
que engole milhares de jovens brasileiros para cada estrela que produz.
Era hora de descobrir a resposta
para a pergunta: o quanto Christian realmente valia?
O jogo por trás do jogo
“Sonhos...”
A palavra flutuou no ar enquanto
Rafael Stival deixou escapar um suspiro.
A empresa de olheiros de Stival
publicou uma nota no Facebook lamentando a morte de três de seus pupilos
vítimas do incêndio no Flamengo.
Desde então, as mensagens seguem
chegando.
Porém, não de condolências. O
post no Facebook tinha, inadvertidamente, funcionado como uma propaganda — um
sinal para pais ambiciosos de que a empresa de Stival poderia colocar seus
filhos não em qualquer clube, mas no grande Flamengo.
Queriam que Stival desse uma
chance aos seus meninos.
A morte dos 10 meninos em um dos
baluartes do futebol do Brasil revelou a maior linha de produção do futebol
internacional: um aparato brutal que engole milhares de jovens brasileiros para
cada estrela que produz.
É um mundo povoado por uma
variedade de personagens, alguns atraídos pela glória, mas quase todos
seduzidos pela chance de sair da pobreza, talvez alcançar a fortuna.
Há os meninos, claro, e suas
famílias.
Há os investidores e os
intermediários como Stival, que vasculha o país de dimensões continentais em
busca de promessas que podem ter apenas nove anos de idade.
E há também os times, muitos em
tal estado de desordem financeira que apenas a venda do último craque os salva
da insolvência.
O lucro de investir com
sabedoria, e cedo, em um único jogador pode chegar a dezenas de milhões de
dólares.
Para muitos do ramo, a indústria
cresceu descontroladamente e passou de um sistema destinado a desenvolver
jogadores promissores para um mercado internacional que atualmente movimenta
US$ 7 bilhões por ano, de acordo com a FIFA.
Neste ambiente especulativo,
jovens atletas talentosos — alguns deles crianças — são comprados e vendidos
como qualquer outra matéria-prima. No Brasil, os melhores são até chamados de “pedras preciosas”.
Uma noite de chamas
Ninguém sabe ao certo quantos
meninos fazem parte do sistema de futebol infantil do Brasil.
Não há números oficiais.
As estimativas variam de 12.000 a
15.000, mas este dado é difícil de ser checado.
A Confederação Brasileira de
Futebol não se esforça para registrar os jogadores até que completem 16 anos e
se tornem profissionais.
Mas uma coisa é sabida: na noite
do incêndio do Flamengo, em 8 de fevereiro, mais de duas dúzias de jovens— a
maioria de famílias pobres e todos na esperança de realizar um sonho — estavam
recolhidos em um dormitório do clube.
Em um país obcecado pelo futebol,
o Flamengo se orgulha de ser o time mais popular, com recursos que causam
inveja nos rivais em toda América do Sul.
Mas essa adoração e esse poder,
ao que parece, podem ter permitido ao Flamengo escapar durante anos de qualquer
punição pelo tratamento dado aos meninos sob seus cuidados.
Em 2015, promotores do estado do
Rio de Janeiro processaram o Flamengo pelas condições de seu centro de
treinamento.
Os procuradores mencionaram
falhas na proteção dos menores, declarando que as condições eram “inferior até mesmo `aquelas atualmente
ofertadas aos adolescentes em conflito com a lei”.
As autoridades emitiram uma ordem
para interditar o centro em 2017, mas nunca a cumpriram, limitando as sanções a
dezenas de multas.
Nos últimos anos, o Flamengo
gastou milhões para melhorar sua escola.
No ano passado, os dirigentes do
clube se gabaram de que as novas instalações seriam as melhores do Brasil.
Mas o dormitório que acomodava 26
meninos na noite do incêndio era uma estrutura improvisada, formada por seis
contêineres de aço interligados.
Nunca havia sido inspecionado,
segundo as autoridades locais.
Entrevistas com sobreviventes do
incêndio e com autoridades que participaram do caso sugerem que uma série de
falhas pode ter contribuído para as mortes dos meninos:
— A regulação federal exige pelo
menos um cuidador para cada 10 meninos, mas não havia nenhum adulto presente no
momento do incêndio.
— Sobreviventes disseram que a
única saída ficava em uma extremidade do dormitório. Alguns garotos poderiam
estar em camas mais longe do que os 10 metros exigido pela regulação.
— Os quartos tinham portas de
correr, outra violação, porque elas podem emperrar.
— Ainda que cada quarto tivesse
uma janela, elas estavam obstruídas por grades.
Um menino que estava no quarto de
Christian disse a jornalistas que a porta travou quando ele tentou sair.
O garoto conseguiu se espremer
através das grades da janela.
Mas Christian, um goleiro de 1,90
metro, não conseguiu.
Quando os socorristas chegaram, o
corpo estava tão carbonizado que só pôde ser identificado por meio da arcada
dentária.
Funcionários do Flamengo não
responderam aos pedidos de entrevista.
Mas em fevereiro, o presidente,
Rodolfo Landim, negou saber sobre irregularidades quando concedeu entrevista
coletiva após o incêndio.
“Nosso objetivo é resolver esse problema o mais rápido possível”,
disse ele.
Em busca de um Tesouro
O futebol não é o único setor que
atrai os desesperados do Brasil.
Sergio Rangel, jornalista que
cobre o esporte há três décadas, diz que o sistema de treinamento de jogadores
de base recorda a gigantesca mina de ouro em Serra Pelada.
Suas terríveis condições foram
imortalizadas pelo fotógrafo Sebastião Salgado nos anos 80.
Homens desesperadamente pobres de
todo o país invadiram a mina a céu aberto, garimpando na esperança de encontrar
a pepita que mudaria suas vidas.
O futebol também tem sido uma
espécie de ouro dos tolos para muitas famílias — algumas das quais percorrem
centenas ou milhares de quilômetros desde suas cidades de origem para
matricular os filhos em programas de treinamento que classificarão, examinarão
e, na maioria das vezes, rejeitarão as crianças como inúteis.
“Pegue um, examine e descarte se não for bom”, disse Rangel.
Os jovens não são apenas
descartáveis.
Para aqueles que dirigem a
indústria, são muitas vezes indistinguíveis.
Isso ficou claro em um serviço
fúnebre para os 10 jogadores que morreram no Flamengo.
No meio da cerimônia, um
funcionário do clube correu para cobrir uma grande montagem de fotos dos
meninos: alguém percebeu que um sobrevivente fora incluído por engano.
O Centro de Treinamento
As ruas de Xerém, a cerca de 50
quilômetros do Rio, estão repletas de meninos de várias idades com camisas
vermelhas, verdes e brancas — as cores do Fluminense.
Antes que o clube construísse seu
centro de treinamento, Xerém não passava de um pântano, dizem os moradores
locais.
Mas agora, apesar do calor úmido
que ultrapassa 38 graus Celsius, tornou-se o lar de jogadores e famílias cujas
vidas giram em torno do clube.
Entre eles, um garoto de 11 anos,
apelidado de Maradoninha, por sua semelhança com o astro argentino Diego
Maradona.
Mesmo nesta cidade altamente
competitiva, Maradoninha atraiu uma atenção especial.
Há dois anos, um olheiro do
Fluminense viu o garoto, cujo nome verdadeiro é Leandro Gomes Feitosa, disputar
um torneio local e se aproximou de sua família.
O garoto tinha apenas 9 anos.
A legislação brasileira não
permite que clubes de futebol abriguem crianças com menos de 14 anos.
No entanto, se a família se
mudasse para o Rio, disse o olheiro, o Fluminense treinaria o menino.
Um grupo de empresários locais
bancou o investimento — por uma fatia dos lucros futuros — e há dois anos a
família viajou mais de 1.900 quilômetros, da cidade de Palmas para Xerém, para
perseguir o sonho.
Quase todas as famílias que vivem
na comunidade de 26 sobrados têm uma história parecida, disse o pai de
Maradoninha, Evandro Feitosa.
Maradoninha pode não ter idade
suficiente para cursar o ensino médio, mas ele sabe que o futuro da família
está ligado às suas habilidades com uma bola de futebol.
“Se Deus quiser”, ele disse, “vou
me tornar um grande jogador para ajudar minha família em Palmas, minha família
aqui e aqueles que precisam”.
As chances de conseguir isso são
pequenas.
Menos de 5 por cento das
promessas do futebol no Brasil chegarão a ser profissionais, segundo a maioria
das estimativas.
Menores ainda são as chances de
ganhar um salário decente no esporte.
Um estudo publicado pela
Federação Brasileira de Futebol em 2016 constatou que 82% dos jogadores de
futebol do país ganhavam menos de 1.000 reais (US$ 265) por mês.
Aproximando-se do sonho
Quaisquer que sejam as
probabilidades, sejam quais forem as dificuldades, há suficientes histórias de
sucesso no futebol para alimentar as esperanças de crianças e famílias que têm
pouco mais com que sonhar.
Existe o Neymar, tão bem-sucedido
que é mais uma marca internacional do que jogador.
Ele é o produto de um humilde
bairro nos arredores de São Paulo.
Existem Rivaldo, Ronaldo e
Romário, três ex-campeões de Copa do Mundo, todos já premiados pela FIFA com o
título de melhor jogador do planeta.
E, mais recentemente, está
Vinicius Júnior, um brilhante atacante que saiu da escola do Flamengo.
Treinou nos mesmos campos que os
10 meninos que morreram.
Viveu o sonho: em 2017, quando
tinha 16 anos, o clube espanhol Real Madrid concordou em pagar 45 milhões de
euros (pouco mais de 198 milhões de reais) por seu passe depois de ter atuado
apenas por 11 minutos em seu jogo de estreia.
Todos esses jogadores, e centenas
mais, emergiram da fábrica de craques do Brasil e agora jogam nos principais
clubes do mundo.
No começo da carreira, os pais de
Christian gastaram tudo o que tinham — e fizeram empréstimos com amigos e
vizinhos — para financiar o sonho de ver o filho se tornar um jogador de
futebol.
Ele parecia estar se aproximando
de sua própria versão da história de sucesso.
Em 5 de março, dia em que
completaria 16 anos, estava previsto que assinasse o primeiro contrato
profissional no Flamengo.
Seu sonho, de tantos anos,
parecia ao alcance.
Ele morreu quatro semanas antes
daquele aniversário.
Dias depois de sua morte, o pai,
Cristiano Esmério, estava do lado de fora de uma torre de escritórios no centro
do Rio, onde os defensores públicos se reuniam com representantes do Flamengo.
Ele estava com um grupo de
advogados.
Um se dirigiu a ele.
Quando tratou da indenização, o
advogado argumentou que seria injusto que Christian fosse tratado como os
outros jovens.
Afinal de contas, disse, alguns
dos meninos mortos eram recém-chegados.
Christian, no entanto, já fora
convocado para uma das seleções brasileiras de juvenis.
Ele valia mais do que os demais.
Esmério assentiu em silêncio.
Ele e o filho também tinham
falado de dinheiro.
“Pai, vamos procurar uma casa”, lembra o pai, contando sobre
Christian reagiu quando recebeu a notícia de que estava fechando um contrato
profissional.
“Com meu primeiro salário, quero uma casa para minha mãe, assim ela vai
ter que sofrer mais por falta de água ou de luz”.
Uma semana antes de morrer, o
garoto postou uma homenagem à família no Facebook.
Acima de duas fotos de pai e
filho separadas por uma década, ele fez uma promessa:
“Todo o sacrifício será compensado, meu velho”.
Imagem: Leo Correa/AP
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