Imagem: El País
O martírio dos jogadores abandonados com problemas de saúde
Atletas com doenças crônicas, lesões graves e acidentes de trabalho
cobram clubes na Justiça
Por Breiller Pires de São Paulo para o El País
Kauê Siqueira dirigia no caminho
que liga São Paulo a Penápolis quando perdeu o controle da direção e capotou o
carro no canteiro central da estrada.
Ele foi levado para um hospital
público de Bauru, onde entrou em coma por causa de um trauma na cabeça.
O acidente ocorreu em 10 de junho
de 2013, duas semanas depois de o meia, então com 21 anos, firmar contrato com
o Penapolense para a disputa da quarta divisão do Campeonato Brasileiro.
Durante a recuperação de uma
neurocirurgia, que paralisou todo o lado esquerdo de seu corpo, o jogador foi
deixado de lado pelo clube.
“Me desrespeitaram como ser humano”, diz Kauê, que passou a
engrossar a lista de atletas desamparados no futebol, um panorama que mistura
contratos questionados, regras pouco claras e times insolventes.
Visto como um talento potencial,
ele foi revelado pelo Santo André e, em 2011, teve 50% de seus direitos
econômicos adquiridos pelo grupo DIS, em transação semelhante à de Neymar – que
resultou em um imbróglio jurídico devido à suspeita de evasão de valores na
transferência do atacante para o Barcelona.
Com passagens por Corinthians e
Internacional, o meia chegaria ao Penapolense dois anos depois, parte de um
acordo do DIS para fornecer atletas ao clube.
Após o acidente, tanto o time de
Penápolis quanto o DIS se recusaram a pagar o tratamento do jogador, que ficou
26 dias internado pelo SUS.
Assim que recebeu alta, ele
voltou para São Paulo, onde vivia com a família, e iniciou uma série de exames
na Santa Casa.
Foram detectadas sequelas que
impossibilitavam seu retorno ao futebol.
Contudo, o Penapolense reintegrou
o jogador quando ele deixou de receber o auxílio-doença do INSS e o deixou
treinando sozinho, separado do elenco principal e sem receber salário.
Por causa das limitações físicas,
mal conseguia chutar uma bola.
Nesse período, o meia recorreu à
ajuda de parentes e ao que restava de suas economias para custear o tratamento
particular de fisioterapia e o sustento da filha de 4 anos.
Sem condições físicas para voltar
a jogar, Kauê decidiu abreviar a carreira aos 22 anos e entrou na Justiça
contra o clube cobrando indenização por acidente de trabalho – ele se dirigia
ao centro de treinamentos ao capotar o carro –, ressarcimento das despesas médicas
e o pagamento de férias e 13º salário.
“Se o clube tivesse prestado assistência desde o início, eu poderia
estar jogando novamente”, afirma o meia, que hoje tem 25 anos e ainda sonha
com a reabilitação para retomar o ofício nos gramados.
A Justiça lhe deu ganho de causa
em primeira instância.
Sua defesa tenta incluir o DIS
como corresponsável pela dívida.
O grupo bancava a maior parte do
salário do atleta e havia estipulado uma multa de 1 milhão de reais caso ele
rescindisse o contrato com a empresa.
Enquanto aguarda julgamento de
seu recurso, o Penapolense, que nega ter cometido qualquer irregularidade com o
jogador, enfrenta outros dois processos parecidos.
Os zagueiros William e Daniel
Miller também acusam o clube de abandono e descumprimento de direitos
trabalhistas.
O primeiro sofreu uma pancada na
cabeça durante um amistoso contra o Londrina, no Paraná, e ficou internado no
hospital municipal da cidade sem nenhum auxílio da delegação, que voltou para
Penápolis após o jogo.
Já Miller foi dispensado depois
de sete cirurgias no joelho, que o obrigaram a encerrar a carreira aos 24 anos.
De acordo com André Garcia,
gerente de futebol do Penapolense, o clube cumpriu as obrigações com os
atletas, mas pretende respeitar a decisão judicial em todos os casos.
O grupo DIS, que também detinha
parte dos direitos econômicos de William, afirma que atuava apenas como
investidor dos atletas e que, portanto, não se responsabiliza por custos
empregatícios.
Profissão de risco
Os irmãos Filipe e Thiago Rino se
especializaram em causas trabalhistas no direito esportivo.
A cada mês, o escritório dos
advogados protocola cerca de 100 processos em nome de jogadores na Justiça.
A maior parte deles coincide com
o fim dos campeonatos estaduais, em que clubes pequenos, com baixo orçamento,
muitas vezes não conseguem honrar seus compromissos e dão calote em milhares de
atletas pelo país.
Em São Paulo, de acordo com o
Sindicato dos Atletas, foram quase 500 processos trabalhistas nos últimos dois
anos.
Aproximadamente 40% das ações se
referem à saúde dos trabalhadores da bola que acabam negligenciados pelos
clubes.
“Abandonar jogadores lesionados e doentes à própria sorte virou uma
praxe dos dirigentes. A maioria dos clubes se preocupa apenas com o resultado,
e não com o lado humano de seus empregados”, afirma Thiago Rino, que
representa Kauê, William e Daniel nas ações contra o Penapolense.
Em casos de enfermidade ou lesão,
os departamentos jurídicos dos clubes costumam dizer que o jogador já
apresentava uma condição preexistente para justificar o rompimento do vínculo.
Entretanto, para Filipe Rino,
essa argumentação não se sustenta nos tribunais.
“Todo contrato entre clube e atleta tem a assinatura de um médico, que
é o responsável por liberá-lo para a prática esportiva. A partir do momento em
que o compromisso é firmado, não há como atribuir eventuais problemas de saúde
ou lesões a um período anterior ao registro do contrato”, explica o
advogado.
Henrique Choco descobriu uma
arritmia cardíaca durante o exame admissional no CSA, de Alagoas.
Ainda assim, o clube decidiu
contratar o volante.
Ele afirma ter passado por
procedimentos de cardioversão, que consiste em choques elétricos no coração,
antes de algumas partidas.
Uma das sessões teria acontecido
na véspera da final do Campeonato Alagoano, contra o CRB.
Todavia continuava sentindo falta
de ar e tontura em campo.
Ao fim do torneio, Choco fez uma
cirurgia cardiovascular, mas o clube o dispensou um mês depois da operação.
O antigo capitão do time conta
que havia assinado um novo contrato com o CSA até novembro de 2016, que só não
foi registrado por conta de seu estado de saúde.
“O presidente [Rafael Tenório], que me chamava de ‘filho’, comparou
minha situação à do Serginho [zagueiro que morreu após uma parada cardíaca
durante o confronto entre São Caetano e São Paulo, em 2004]. Ele disse que
seria arriscado me manter no clube e falou para eu procurar outra coisa pra
fazer”, diz o volante de 27 anos, que desde então não jogou mais futebol.
Rafael Tenório, mandatário do
CSA, que se defende de uma ação trabalhista, nega ter submetido o jogador a
choques elétricos e argumenta que o contrato dele havia terminado.
“Agimos de forma correta com o Choco. Vamos provar que essa reclamação
não tem fundamento.”
Condições precárias de trabalho
também colocam jogadores em risco.
Somente este ano, sindicatos de
atletas e Ministério Público do Trabalho já registraram mais de 50 queixas por
maus tratos em clubes de futebol.
Em março, o elenco do União
Barbarense foi obrigado a percorrer 240 quilômetros de ônibus no mesmo dia da
partida contra o Batatais pela segunda divisão paulista.
Jogadores viajaram deitados no
assoalho do ônibus na tentativa de poupar as pernas para o jogo.
O clube terminou o campeonato na
última colocação e com pelo menos sete processos por atrasos de salário,
incluindo o técnico Edson Leivinha, que comandou a equipe em três partidas.
No início do ano, a Justiça do
Trabalho de Santa Bárbara d’Oeste determinou a penhora do estádio do União por
dívidas superiores a 8 milhões de reais com atletas que defenderam o clube nos
últimos cinco anos.
Um deles é o ex-zagueiro Marcos
Aurélio. Em 2014, ele foi dispensado do União após sofrer uma lesão no nervo
fibular da perna direita, que comprometeu 75% dos movimentos do pé.
Depois de ganhar a ação na
Justiça, ele se tornou, aos 36 anos, o primeiro jogador do Brasil a ter direito
a uma pensão vitalícia por invalidez.
Na decisão judicial, o clube foi
obrigado a pagar um montante superior a 1 milhão de reais de uma só vez ao
atleta.
Porém, mesmo quando favorecidos
por sentenças trabalhistas, jogadores são reféns da penúria financeira dos
clubes que sequer conseguem arcar com as despesas do dia a dia.
Em abril, o zagueiro Sanny, do
Central de Caruaru, afirmou que os atletas haviam ficado mais de seis horas sem
alimentação antes de entrar em campo contra o Náutico, pelo Campeonato
Pernambucano.
O time, que perdeu por 5 x 0,
afastou o defensor após a denúncia.
Na última semana foi a vez do
técnico Álvaro Gaia reclamar da estrutura do clube por alojar jogadores que
dormiam no chão.
Em 2013, um atacante do América,
de Sergipe, desmaiou de fome diante do Confiança.
O clube não tinha dinheiro para
pagar o jantar do elenco.
Descaso como regra
Silas Brindeiro fez fama como
goleador no interior de São Paulo.
Depois de defender Mogi Mirim e
Guarani, ele sagrou-se artilheiro do Capivariano na campanha do título da
segunda divisão paulista, em 2014.
No entanto, quando se preparava
para disputar a Série A1 no ano seguinte, o centroavante foi diagnosticado com
leucemia e teve de interromper o auge nos gramados para tratar do câncer.
Apesar de enfrentar três
quimioterapias em dois anos, a doença não regrediu.
O contrato com o Capivariano
venceu em abril de 2016. Os custos do tratamento saem de seu bolso.
Aos 29 anos, Silas passou o
último 1º de maio internado no CTI de um hospital em Brasília.
Antes de voltar para o leito, com
seu estado agravado por uma pneumonia, o ex-goleador lamentava a falta de
suporte do time onde virou ídolo.
“Quando eu mais precisei, o clube me deixou na mão”, afirmou.
Ele processou o Capivariano por
falta de pagamentos durante o período em que esteve afastado pelo INSS.
Um problema é comum à maioria dos
28.000 jogadores profissionais registrados na Confederação Brasileira de
Futebol (CBF).
De um lado, 80% deles ganham até
1.000 reais por mês, boa parte sem carteira assinada, o que dificulta o acesso
a benefícios como seguro-desemprego e fundo de garantia.
Do outro, a minoria que recebe
mais de 1.000 reais, valores que, em muitos casos, são diluídos em direitos de
imagem – um truque dos clubes para reduzir encargos trabalhistas.
A artimanha é sentida pelos
jogadores no momento em que precisam recorrer ao INSS, que leva em conta as
contribuições previdenciárias com base no salário em carteira e estabelece um
teto de 5.531 reais para o pagamento de benefícios como o auxílio-doença.
Raramente os clubes arcam com a
diferença entre o salário integral, incluindo direitos de imagem, e o benefício
da Previdência ao longo do afastamento de um atleta.
Kauê Siqueira, o atleta que
sofreu um acidente de carro, por exemplo, recebia 1.500 reais em carteira do
Penapolense e 3.500 reais por fora, pagos pelo grupo DIS.
Já Silas Brindeiro viu sua
remuneração mensal despencar de 10.000 para 4.000 reais com o auxílio-saúde,
pois boa parte dos rendimentos no Capivariano estava atrelada aos direitos de
imagem.
Por não se tratar de acidente de
trabalho, a doença do atacante não lhe garantiu o direito à estabilidade
provisória de 12 meses no emprego, como a legislação determina para evitar que
o trabalhador seja demitido após retornar do período de licença médica.
O projeto de lei 166/2016 que
tramita no Senado quer estender o benefício a todos os portadores de câncer no
país, mas ainda aguarda para ser votado em plenário.
Mesmo em casos de acidente de
trabalho, há clubes que ignoram o direito à estabilidade.
Em 2015, o Tupi, de Juiz de Fora,
foi condenado a pagar indenização ao meia Hugo Imbelloni, dispensado depois de
uma cirurgia no joelho esquerdo.
Como o clube não emitiu o CAT
(Comunicação de Acidente de Trabalho), algo corriqueiro em equipes que não
assinam a carteira de trabalho de seus atletas, o jogador sequer conseguiu
usufruir do auxílio-doença.
Pelo mesmo motivo, o lateral
Formiga também processou o Tupi no fim do ano passado.
Ele ainda reivindica indenização
pelo fato de o clube não ter contratado o seguro obrigatório de acidentes
pessoais, previsto no artigo 45 da Lei Pelé.
“Poucos clubes, mesmo entre os de primeira divisão, se previnem com o
seguro para os atletas”, afirma o advogado Thiago Rino.
Reconhecendo isso, a CBF fechou
acordo com uma seguradora para garantir o benefício equivalente a 13 salários a
todos os atletas com contratos ativos no sistema de registro.
Porém, a apólice oferece
cobertura apenas por morte ou invalidez e só entrou em vigor em março de 2016.
Desassistidos, jogadores que
amargam lesões e sequelas de trabalho têm de recorrer à Justiça e podem levar
mais de uma década para receber dos clubes.
Exceções confirmam a regra. Um
erro médico na correção de uma fratura na perna direita forçou Lucas Patrick a
abortar a carreira com apenas 20 anos.
O Grêmio Osasco não oferecia o
seguro, mas, após uma ação judicial, o clube rapidamente chegou a um acordo
para indenizar o jogador.
Na maioria dos casos, entretanto,
incapacitados para a atividade futebolística como Kauê, Choco e Silas precisam
se desdobrar entre a batalha nos tribunais pela indenização do seguro e os
custos elevados do tratamento médico.
Silas Brindeiro, que brilhou pelo
Capivariano, que só se pronuncia sobre o tema na Justiça, ainda busca um doador
compatível de medula óssea.
Parado há dois anos, o atacante
já gastou mais de 15.000 reais em exames não cobertos pelo plano de saúde.
Neste momento, ele alimenta a
esperança de um dia voltar a jogar lutando por seus direitos e, acima de tudo,
pela vida.
JOGADORES DE CLUBES TRADICIONAIS TAMBÉM SOFREM
Habitual em equipes menores, a
indiferença com atletas que peregrinam no estaleiro também atinge o alto
escalão da bola.
O caso mais emblemático é o de
Everton Costa, que parou de jogar em 2014 depois de passar mal em uma partida
pelo Vasco.
Com uma anomalia cardíaca, ele
anunciou a aposentadoria aos 29 anos e precisou cobrar direitos trabalhistas
tanto da equipe vascaína quanto de seus ex-clubes, Coritiba e Santos – de quem
ganhou uma indenização de 350.000 reais.
Seu empresário ainda acusou o
time santista de negligência.
Médicos do Peixe teriam deixado
de informar o jogador sobre alterações detectadas no exame admissional.
O clube alegou que os resultados
não impediam o atleta de seguir praticando futebol.
Em situação semelhante, o
Cruzeiro foi condenado a desembolsar 1,3 milhão de reais ao volante Diogo
Mucuri por não ter garantido o seguro ao atleta, que encerrou a carreira em
2006 por causa de um infarto.
Em 2014, a Justiça do Trabalho
condenou o Ceará a pagar indenização ao zagueiro Thiago Geraldo, demitido após
uma lesão no joelho.
Já este ano, o volante Sandro
Silva, com passagens por Vasco e Palmeiras, disputou apenas sete jogos pela
Portuguesa até romper os ligamentos do tornozelo.
Ele foi dispensado sem tratamento
adequado e exige do clube ao menos o pagamento da cirurgia, avaliada em 45.000
reais.
O QUE DIZ A LEI PELÉ
Art. 45. As entidades de prática desportiva são obrigadas a contratar
seguro de vida e de acidentes pessoais, vinculado à atividade desportiva, para
os atletas profissionais, com o objetivo de cobrir os riscos a que eles estão
sujeitos.
§ 1º A importância segurada deve garantir ao atleta profissional, ou ao
beneficiário por ele indicado no contrato de seguro, o direito a indenização mínima
correspondente ao valor anual da remuneração pactuada.
§ 2º A entidade de prática desportiva é responsável pelas despesas
médico-hospitalares e de medicamentos necessários ao restabelecimento do atleta
enquanto a seguradora não fizer o pagamento da indenização a que se refere o §
1o deste artigo.