Imagem: Autor Desconhecido
Na correria: a Corrida de São
Silvestre dos desconhecidos
O lado B da prova de corrida de
rua mais tradicional do país contado a partir da história de Marcos Vale, um
entre os mais de 30 mil atletas amadores que disputarão a charmosa corrida do
último dia do ano.
Por Pedro Henrique Brandão, repórter e comentarista do Universidade do
Esporte
Acontece hoje, nas ruas do centro
de São Paulo, a 94° Corrida de São Silvestre.
Criada em 1924, pelo jornalista
Cásper Líbero, a corrida era disputada à noite e em um percurso menor que os
atuais 15 km, eram apenas 8,8 km em sua primeira edição que contou com apenas
60 inscritos, dos quais somente 37 completaram a prova.
O nome da prova é uma homenagem
ao Santo Silvestre que na época era papa e anos mais tarde foi canonizado.
Noventa e quatro anos depois, a
Corrida de São Silvestre cresceu e é a mais tradicional e charmosa corrida de
rua do país, conta com mais de 30 mil corredores e leva às ruas, além de
atletas profissionais, os atletas amadores no melhor sentido da palavra, pois
são aqueles que praticam o esporte por amor.
São as histórias desses milhares
de amadores que fazem a festa da corrida que encerra o ano, que merecem ser
contadas.
Marcos Vale é um desses atletas
que buscou na corrida uma prática esportiva para acompanhar a correria do
cotidiano e fazer o corpo entrar no ritmo acelerado da mente de quem vive e
trabalha na metrópole.
Trabalhando no escritório de uma
ONG em São Paulo, com as idas e vindas no trânsito caótico da região
metropolitana, praticamente não restava tempo para se exercitar.
Aos 35 anos de idade, Marcos se
viu acima do peso e percebeu a necessidade de praticar uma atividade física.
Como sempre gostou muito de
futebol decidiu voltar a praticar a paixão nacional, mas pela falta de tempo
acabou tendo problemas em conciliar seus horários profissionais com os dos
jogos.
“Decidi voltar a jogar futebol, mas acabei esbarrando na dificuldade de
encontrar pessoas que tivessem horários compatíveis com os meus. Fiquei uns
meses procurando o pessoal e acabei desistindo” conta Marcos.
O que poderia ser a frustração
responsável por manter Marcos no sedentarismo acabou sendo a motivação para buscar
uma atividade que pudesse ser praticada individualmente e no horário que
coubesse na agenda.
Foi então que a corrida entrou na
vida de Marcos Vale, no primeiro semestre de 2016.
“Eu precisava encontrar uma maneira de melhorar minha qualidade de
vida, com 35 anos me sentia muito mais velho, sem disposição para acompanhar o
pique do dia a dia” recorda.
A história de Marcos Vale corre
na esteira de uma tendência que cresce rapidamente no Brasil: a prática da
corrida amadora.
Em janeiro de 2014, a consultoria
espanhola Relevance divulgou uma pesquisa com mil entrevistados em que estima
que 5% da população brasileira acima de 16 anos, cerca de seis milhões de
pessoas, pratique algum tipo de corrida.
Apenas em 2013, a Federação
Paulista de Atletismo registrou 323 eventos sob sua supervisão contra 240 em
2009 - crescimento de 35%.
No mesmo período, as corridas
autorizadas pela CET (Companhia de Engenharia do Tráfego) em São Paulo foram de
81 para 131 - aumento de 62%.
Com tantos eventos de corrida de
rua, Marcos não demorou para participar de sua primeira corrida.
Apenas três meses depois de
iniciar os treinamentos, correu os 5 km da Global Energy 2016, disputada na
Cidade Universitária, na Zona Oeste da capital paulista.
“Fui pegando umas dicas com amigos que já tinham experiência na corrida
e li o livro ‘Correr: O exercício, a cidade e o desafio da maratona’ que o
Dráuzio Varela publicou naquele período. Cerca de três meses depois que comecei
treinar sozinho disputei minha primeira prova”.
Em quatro meses de corrida o
auxiliar administrativo já havia perdido 16 quilos e levava uma vida muito mais
saudável já que para manter o ritmo de treinamentos precisou fazer uma mudança
completa na alimentação, trocando o fast food com refrigerantes e frituras por
legumes, verduras e frutas.
“Enquanto as pernas permitirem”
O ano de 2016 foi de ambientação
na corrida.
Marcos tomou gosto pelos treinos
e decidiu dar um passo adiante: correria a São Silvestre em 2017.
A preparação para atletas
amadores costuma ser árdua já que não há tempo para dedicar somente aos
treinamentos.
Com a vida profissional tomando
boa parte do dia dos atletas cada um, procura espaço em sua agenda para
treinar.
“Faço de duas a três vezes por semana o trajeto entre minha casa e o
local onde trabalho. Aproximadamente 12 km considerando que a prova tem 15 km
acredito ser uma boa preparação”.
Explica Marcos que mora em Taboão
da Serra, cidade da Grande São Paulo, e trabalha em Santo Amaro, bairro na Zona
Sul da capital.
Durante os treinos sozinho encontrou
um grupo que estava se preparando para a prova, ganhou companhia nos
treinamentos e a motivação extra das amizades para a preparação.
Junto ao grupo fazia simulados no
trajeto oficial da São Silvestre.
Além dos treinamentos existe a
preocupação com a alimentação e o sono, na vida de um atleta profissional é
mais fácil cuidar de tudo isso, mas na vida de um ser humano comum que decide
correr uma São Silvestre é um desafio e tanto passar por esse processo.
“Nos simulados eu treinava o conhecimento do percurso, como superar os
aclives, onde dar um gás mais forte, como resistir à Brigadeiro que com certeza
é o ponto mais difícil do circuito”.
Foram doze meses de preparação
para executar uma prova no último dia do ano.
Até que em 31 de dezembro de
2017, Marcos Vale pisou na Avenida Paulista com o número de inscrição no peito,
tênis e disposição para completar o trajeto.
Conseguiu e foi pego pelo “barato” dos corredores que prende quem
disputa uma corrida. Sobre a emoção de disputar a quase centenária corrida,
Marcos exalta: “É um ano inteiro da sua
vida que você vai diluir nos 15 km. A São Silvestre é percurso extremamente
exigente e seletivo, mas que tem a questão de tudo que envolve a prova. As
superações, as amizades que fiz durante a preparação ou durante a prova. A
principal lição que a São Silvestre nos deixa é que todos podem correr, ali na
largada não tem classe social, gênero, raça. Nada nos distingue e somos pessoas
iguais que dependemos apenas de nossos esforços. Por isso quero continuar até
quando as pernas permitirem”.
A vida depois da corrida
A corrida muda a vida das pessoas
que a praticam.
É o que garante o corredor Garth
Battista, autor da coletânea de história de outros corredores, intitulada “Runner´s High”, uma expressão que em
português se refere ao “barato” que
os praticantes da corrida sentem.
"É um estado em que a corrida parece não exigir esforço, em que o
corpo e a mente se libertam de qualquer peso. É raro, mas todo corredor sente
isso de tempos em tempos" descreve Garth Battista.
Já Marcos Vale vai além ao falar
das mudanças que a corrida levou a sua vida.
“Primeiro mudou a minha qualidade de vida, hoje me sinto uma pessoa
muito mais preparada e disposta fisicamente. Mentalmente também estou mais
forte, mais focado para superar os desafios que a gente encontra no trabalho,
em casa e na vida como um todo. A corrida é um exercício que exige disciplina e
isso é bom para qualquer área da vida. Acredito que liberar endorfina é algo
que faz muito bem, que faz enxergar a vida com a perspectiva do ‘copo d’água
cheio’. Trouxe minha esposa para o universo da corrida e hoje treinamos junto,
o que nos aproximou ainda mais”.
Neste ano vai disputar sua
segunda São Silvestre, não se preparou tanto como no ano passado, mas foi por
um ótimo motivo: a chegada do pequeno Heitor, seu segundo filho, que fez as
noites ficarem mais curtas e agitadas, por isso o sono não tem sido o
necessário para descansar dos treinos e preparar para a prova.
Nada que o impeça de disputar
novamente a prova que tem tudo para virar tradição da família Vale já que Ana
Carolina, sua esposa, planeja debutar na edição 2019 da corrida.
Em meio a tanta mudança Marcos
não deixa de lado os planos.
Tem como meta para o próximo ano
disputar sua primeira meia maratona.
Mas isso é só para o ano que vem,
por enquanto vive os preparativos finais para enfrentar a subida da avenida
Brigadeiro Luís Antônio.