Muito longe da trave
Times de futebol flertam com o mercado de capitais, mas a realidade frustra qualquer aspiração espelhada no modelo europeu
Por Adriana Souza Silva
asilva@revistacapitalaberto.com.br
Não é preciso recorrer a um antropólogo para enxergar o quanto o futebol está enraizado na cultura do brasileiro. Tampouco ser um especialista em finanças para deduzir que muitos torcedores ou mesmo investidores profissionais se interessariam pela compra de ações de um time se, um dia, os nossos clubes fossem parar na bolsa. Na Europa, aconteceu exatamente isso no início dos anos 90. A paixão pela camisa foi convertida em oportunidade de negócio. Desde então, 38 clubes já viraram empresas de capital aberto com direito a participarem do ranking anual da revista Forbes com as sociedades desportivas mais caras do mundo. No mais recente, divulgado em março, o Manchester United, da Inglaterra, aparece no topo da lista, avaliado em US$ 1,4 bilhão, seguido pelo espanhol Real Madrid (US$ 1,01 bilhão) e o italiano AC Milão (US$ 920 milhões) — veja texto na página 47. E no Brasil? Por que o jogo Futebol versus Mercado não sai do zero a zero?
Vontade até existe por parte dos times brasileiros. O Botafogo, por exemplo, está com toda a papelada para a abertura de uma empresa, a Botafogo Futebol SA, cuja intenção é exatamente aproveitar o bom momento da bolsa de valores no País e partir para o ataque, via uma operação com debêntures ou uma emissão de ações. No Atlético Paranaense, a ida à bolsa de valores também chegou a ser cogitada. Mas, sem a mesma pressa que o time carioca, a discussão ficou para o ano que vem. A intenção de abocanhar um naco das fortunas negociadas nas recentes ofertas na Bovespa mexe até com a imaginação de times pouco conhecidos. “Estamos mais perto de ir a mercado do que de subir para a segundona”, garante Osvaldo Teixeira, presidente do Náutico de Roraima, um pequeno clube da terceira divisão do futebol brasileiro.
Sim, sonhar não custa nada. Mas entre a vontade de ver as ações do time no pregão e a realidade atual das agremiações desportivas do País há uma distância do tamanho do Maracanã. E a culpa não é só da desordem administrativa da maioria dos nossos clubes. Afinal, se a abertura de capital fosse mesmo um objetivo, nada impediria que a diretoria contratasse meia dúzia de consultores para ajudá-los a pôr ordem na casa. O problema é que, para a maior parte dos dirigentes, a simples idéia de transparência, eqüidade e prestação de contas — os três pilares da governança corporativa — já é motivo de desespero.
“Atualmente, nenhum clube brasileiro tem como oferecer isso ao investidor”, avalia José Antônio Alves, consultor e professor do curso de Direito Esportivo da FGV-Rio. “As condições dos times são temerárias. Nem sequer podemos dizer que são mal gerenciados, pois a gestão simplesmente não existe. Os diretores são pessoas que exercem outras atividades e, nas horas vagas, aparecem na sede para saber o que está acontecendo. Há clubes com mais de uma centena de conselheiros.”
Mesmo após a Lei Pelé, nº 9.615/01, que obrigou a divulgação pública de balanços de todos os times, a prestação de contas ainda peca pela falta de padronização. O Conselho Federal de Contabilidade (CFC) fez sua parte e editou, no ano passado, um conjunto de normas como referência para esse segmento. Mas ainda existem muitos times que contabilizam como ativo desde os direitos de imagem de um campeonato que ainda não aconteceu até eventuais multas a serem cobradas caso um de seus jogadores decida ir para outro time.
A primeira tentativa de listagem de um clube na Bovespa fracassou exatamente por uma confusão contábil. Em janeiro de 2003, o Coritiba, através do Coritiba S.A, entrou com pedido de registro na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para uma oferta pública de ações. A questão é que, dos R$ 51 milhões declarados como patrimônio, mais de R$ 50 milhões, ou 99%, eram relativos ao direito sobre o uso da marca do Coritiba. Nas demonstrações do time, o direito do uso da imagem foi considerado no cálculo da integralização do capital da companhia, sendo descrito como “patrimônio intangível gerado internamente”. Porém, na ocasião, a CVM vetou o projeto avaliando que intangíveis gerados internamente não podem ser contabilizados.
DESFALQUE NOS COFRES PÚBLICOS — Outra questão que os times precisam resolver antes de pensarem em atrair o investidor são as dívidas trabalhistas e com o poder público. Somente em débito perante a Previdência Social há um montante de R$ 400 milhões a ser pago, segundo o Ministério dos Esportes, por falta de repasse do FGTS. Em maio do ano passado, levantamento da revista Consultor Jurídico apontou que, juntos, os clubes brasileiros possuíam 2.821 processos na Justiça do Trabalho. Isso porque, após a Lei Pelé, o atleta passou a ter contrato como qualquer outro trabalhador comum, o que deu espaço aos jogadores para reclamarem de falta de décimo terceiro, atraso salarial e outros direitos. O não-repasse à Receita Federal do Imposto de Renda deduzido na fonte também entrou na lista de irregularidades das agremiações.
Em 2003, foi criada pelo Ministério do Esporte uma loteria para tentar resolver o impasse entre dirigentes e cofres públicos, a chamada Timemania. Na operação, o dinheiro arrecadado pelo governo seria usado para abater as dívidas da falta de recolhimento do INSS e do Imposto de Renda. Os clubes de futebol, por sua vez, emprestariam a sua marca para ser usada na loteria e aumentar a venda dos boletos. O Botafogo, por exemplo, aguarda apenas a aprovação da Timemania para anunciar a abertura de sua nova S.A. Contudo, apesar de ser mais cobiçada do que taça em final de campeonato, a tal solução fiscal, por enquanto, ainda é um projeto de lei. Precisa passar pela Câmara, ir ao Senado e, depois, ganhar a sanção da Presidência.
Entre os especialistas no assunto, há os otimistas e os sóbrios. O primeiro grupo encontra-se representado na figura do vice-presidente jurídico da Federação de Futebol do Rio de Janeiro, Pedro Trengrouse. Zagueiro da ajuda financeira aos clubes, ele acredita que a medida serviria como incentivo para a melhoria da gestão e adequação dos times às exigências do mercado. Já na equipe dos sóbrios, o atacante José Antônio Alves, da FGV, não perdoa e marca: “O futebol brasileiro é movido à paixão. Não adianta só injetar dinheiro enquanto não houver uma mudança de paradigma, que visa corte de custos, conselho independente e profissionalização dos dirigentes”.
COM OU SEM LUCRO? — Mesmo num mundo perfeito, isto é, de times com dívidas sanadas e contabilidade ajustada às recomendações do CFC, haveria ainda uma terceira barreira para driblar: o fato de a grande maioria dos clubes brasileiros não ser formado por empresas — condição imprescindível para vir a mercado. Assim poderiam se aventurar numa operação de securitização, por exemplo, ou qualquer outra relacionada ao mercado de capitais. Mas se o clube deixar a condição de sociedade civil sem fins lucrativos perde a isenção de impostos aplicável a essas instituições e tem de arcar com a mesma mordida que as demais companhias hoje levam do fisco. Compensa?
O advogado do escritório Barbosa, Müssnich & Aragão, Felipe Portugal, acredita que possa haver um jeito de o time manter sua isenção fiscal e, ao mesmo tempo, conseguir desfrutar do mercado de capitais. A solução, para ele, estaria na criação de uma nova empresa, desta vez com fins lucrativos, como quer fazer o Botafogo. O clube seria o acionista controlador dessa S.A que, mediante os devidos registros na CVM, serviria de veículo para as captações do time e financiaria projetos como a construção de um estádio ou a compra de um jogador. A dúvida é se os dirigentes dessas S.As criadas pelos clubes teriam credibilidade perante os investidores.
O caminho até o mercado requer cuidados. Os times que têm essa pretensão podem seguir os ensinamentos do folclórico Vicente Matheus, presidente do Corinthians nos anos 70 e 80: “começar do começo”. Isso implica investir em governança dentro das atuais administrações dos times, antes mesmo de pensar em abrir uma empresa ou aventurar-se a tentar um registro na CVM. Para Alves, da FGV, a situação atual permanecerá enquanto o esporte não se livrar de um círculo vicioso. A falta de profissionalismo se reflete numa decisão errada da diretoria que, por sua vez, atrapalha o desempenho dos jogadores, leva o time à derrota e afasta os patrocinadores. Ainda muito longe dos grandes times europeus de capital aberto, os nossos precisam, antes de mais nada, vestir a camisa de uma gestão competente. ■
Dentro e fora dos gramados, o
Manchester é modelo a ser seguido
Por Cíntia Cristina da Silva
Os ingleses inventaram o futebol e a maneira mais eficiente de ganhar milhões de libras com o esporte. O exemplo mais contundente e bem acabado é o Manchester United, um dos clubes mais conhecidos do mundo. Fundado em 1878, foi uma das primeiras agremiações de futebol a abrir o capital, em 1991. Na época, o time atravessava uma situação difícil. Sem dinheiro para reformar o estádio Old Trafford como exigia o Relatório Taylor — legislação que obrigou uma mudança nas condições de segurança dos estádios de futebol —, o Manchester resolveu lançar ações na Bolsa de Valores. A empreitada deu certo: o time captou dinheiro suficiente para reformar o estádio, investir em jogadores e ganhar títulos. Desde então, venceu oito campeonatos ingleses entre 1993 e 2003.
O preço das ações de times de futebol segue a mesma lógica de mercado a que estão sujeitas outras companhias. No entanto, a valorização da empresa depende de uma variável interessante: as vitórias e derrotas dentro de campo são levadas em consideração, destaca o especialista em gestão de clubes de futebol e professor da Fundação Getúlio Vargas, Antônio Carlos Kfouri Aidar, autor de A Transformação do Modelo de Gestão no Futebol.
Com as vitórias em campo, o retorno financeiro do Manchester se manteve nas alturas: o clube está no topo dos times mais ricos do mundo há oito anos consecutivos. O ranking publicado anualmente na Forbes é feito pela empresa de consultoria inglesa Deloitte Sports Business Group, especializada em administração esportiva. Além do patrimônio dos clubes, a Deloitte leva em consideração os rendimentos anuais.
Quando abriu o capital, o time inglês tinha um patrimônio de 18 milhões de libras. Em 2001 foi apontado como o time mais bem-sucedido na bolsa de valores com um lucro estimado em 22 milhões de libras.
A administração eficiente e a exploração máxima de sua marca — cujo emblema é facilmente reconhecido entre fãs de futebol — foram revertidas em rendimentos. O Manchester passou a tratar seus torcedores como clientes e essa profissionalização gerou uma empresa multifuncional. Hoje, os “red devils” têm sua própria emissora de TV e uma estrutura impressionante. O estádio Old Trafford abriga um museu, lojas, restaurantes e camarotes, com capacidade para até 4 mil pessoas. Todo esse aparato funciona em tempo integral, pois o local é alugado para festas e convenções.
O time também administra seu próprio banco. Oferece seguros, fundos de investimento, cartão de crédito, financiamentos, além das vantagens que o “dinheiro não pode comprar”, ou seja, possibilidades de visitas aos vestiários, encontros com os jogadores e outras atividades que, de fato, têm valor inestimável para torcedores de futebol.
O modelo de gestão implantado no Manchester não tem nada de mambembe. Ao contrário dos times brasileiros, as equipes inglesas sempre tiveram uma administração profissional. Já eram gerenciadas como empresas confiáveis; portanto a transição para o mercado de capitais transcorreu sem sobressaltos.
Todo esse vigor financeiro atraiu grandes investidores. Recentemente o empresário Malcolm Glazer, dono do time de futebol norte-americano Tampa Bay Buccaneers, comprou 70% das ações do clube. Mas as chances de ele fazer uma oferta pelo restante das ações é para lá de remota. Além de acionistas, os minoritários do Manchester são torcedores fervorosos e contam com o governo inglês como aliado. Glazer, imagina-se, não compraria essa briga.