O leitor José Carlos de Medeiros
enviou o comentário abaixo para a postagem “A diferença que separa os grandes
clubes dos outros, não se resolve com choramingo e sofisma”, publicada ontem,
dia 03 de dezembro...
Resolvi responder em virtude da
imagem distorcida que José Carlos Medeiros tem do futebol no mundo socialista,
principalmente na extinta União Soviética.
Anônimo disse...
SÓ COM O FIM DO CAPITALISMO.
Ai sim cada Estado vai ter seus
jogadores, da sua terrinha e em seus clubes.
Como na antiga Soviética: vencia
o campeonato pela bola que jogava e não pelos salários; num ano era um time do
norte no outro no sul e até da Sibéria tinha time campeão nacional.
Hoje, só vence time dos
empresários ricos.
PONTO FINAL.
Anônimo que nada,
José Carlos de Medeiros.
Meu caro José Carlos de Medeiros,
Antes de qualquer coisa, saiba
que gostei do seu bordão:
“Anônimo que nada, José Carlos de
Medeiros”...
Muito bom.
Bem, sobre seu comentário, vou
ser obrigado a desapontá-lo...
A imagem que você tem da União
Soviética em termos de futebol, passa longe da verdade.
Mas vamos lá...
Antes da revolução bolchevique a
bola já rolava nas terras de Catarina e Pedro, O Grande.
Entre os anos de 1901 e 1923, a
Liga de Petrograd (Leningrado/São Petersburg) realizou campeonatos no sistema
de pontos corridos com jogos de ida e volta...
Em 1908 criaram a Copa Petrograd
e que era disputada nos mesmos moldes de hoje.
O primeiro campeonato organizado
pela liga foi disputado em 1901, e contou com três equipes...
Nevka; Victoria e Nevski.
O Nevka sagrou-se campeão com 6
pontos ganhos (na época as vitórias valiam dois pontos, os empates um e a
derrotas zero).
A última competição patrocinada pela
liga aconteceu em 1923 e o campeão foi o Mercur.
Em Moscou havia a Liga de
Moscou...
Sua fundação data de 1910 e seu
fim aconteceu em 1920.
O Primeiro campeonato contou com
5 equipes:
KSO Orechovo; SKS; ZKS; KFS e
Union.
O KSO Orechovo foi o campeão com
14 pontos.
Pois bem, em 1912 surgiu o
primeiro campeonato nacional...
Os participantes não eram clubes,
mas sim, combinados de cidades.
Na verdade, os registros indicam
apenas dois campeonatos disputados: 1912 e 1913.
O de 1912, teve como
participantes, Moscou (Rússia); São Petersburg (Rússia); Kharkov (Ucrânia);
Kiev (Ucrânia) e Odessa (Ucrânia)...
Infelizmente foi um fracasso.
Moscou venceu Kharkov por 6 a 1 e
São Petersburgo obteve classificação para final sem jogar, pois Kiev e Odessa
desistiram de participar.
Na final, São Petersburg
conquistou a taça ao derrotar Moscou por 4 a 1, depois de empatar a primeira
partida em 2 a 2, numa disputada prorrogação.
Ambos os jogos foram realizados
em Moscou.
A segunda tentativa em 1913,
também fracassou.
Neste ano, dois grupos foram
formados; o Grupo Norte e o Grupo Sul.
No Grupo Norte, Moscou,
Bogorodsk, São Petersburg e Lódz se apresentaram para a disputa.
No Grupo Sul, Yusovka, Rostov,
Kharkov, Kiev, Sebastopol, Kherson, Odessa e Nikolaev, assinaram a ficha de
inscrição.
Pelo Grupo Norte, Moscou goleou
Bogorodsk por 11 a 0...
Porém, São Petersburg não jogou
devido à desistência da cidade de Lódz.
Na decisão do grupo, São Petersburg
venceu Moscou por 3 a 0 na prorrogação.
Pelo Grupo Sul, Yusovka bateu
Rostov por 5 a 1 e Odessa venceu Nikolaev por 3 a 2.
Kharkov e Kherson se
classificaram em virtude da desistência de Sebastopol e Kiev.
Na semifinal do grupo, Kharkov venceu
Yusovka por 2x1 e Odessa ganhou de Kherson por 10 a 0.
Na final, Odessa ganhou de
Kharkov por 2 a 0.
Campeões de seus grupos, Odessa e
São Petersburg se enfrentaram na cidade de Odessa e os donos da casa venceram
por 4 a 2, mas a vitória nunca foi homologada.
Segundo os documentos
pesquisados, Odessa teria utilizado quatro jogadores estrangeiros, quando só
eram permitidos dois.
Odessa teve o título cassado, mas
São Petersburg nunca foi declarado campeão.
Feito esse longo preâmbulo, entramos
no período onde você afirma ter havido campeões de todas as regiões, inclusive
da Sibéria e que o futebol era disputado por amor e não por salários.
Não é bem assim...
Na verdade, não é nada assim.
O primeiro campeonato disputado
nacionalmente por clubes aconteceu em 1936, e foi dividido em duas partes...
Campeonato da Primavera e
Campeonato de Outono.
No Campeonato da Primavera,
participaram as seguintes equipes:
Dínamo Moscou, Dínamo Kiev,
Spartak Moscou, CDKA (mais tarde CSKA) Moscou, Lokomotiv Moscou, Dínamo
Leningrado (São Petersburg) e Kr Zaria Leningrado.
O campeão foi o Dínamo Moscou.
No Campeonato de Outono,
participaram as equipes do Spartak Moscou, Dínamo Moscou, Dínamo Kiev, Dínamo
Leningrado, Kr Zaria Leningrado, CDKA (mais tarde CSKA) Moscou, Lokomotiv Moscou
e Dínamo Tbilisi.
O campeão foi Spartak Moscou.
Não houve decisão entre Dínamo
Moscou e Spartak Moscou.
De 1936 até 1991, quando a União
Soviética evaporou, tivemos os seguintes campeões:
Dínamo Kiev, 13 títulos;
Spartak Moscou, 12 títulos;
Dínamo Moscou, 11 títulos;
CSKA Moscou, 7 títulos;
Torpedo Moscou, 3 títulos;
Dínamo Tbilisi, 2 títulos;
Dnipro Dnipropetrovs'k, 2
títulos;
Ararat Yerevan, 1 título;
Dínamo Minsk, 1 título;
Zenit Leningrado, 1 título e Zorya
Voroshilovhrad (Luhansk), 1 título.
A distribuição de títulos por
república é a seguinte:
Rússia 34, Ucrânia 16, Geórgia 2,
Armênia 1 e Bielorrússia, 1.
Portanto, igualzinho a qualquer
lugar no planeta...
Ganha quem pertence às regiões
economicamente mais fortes.
Perceba, nunca houve um campeão
das repúblicas da Moldávia, da Estônia, da Letônia, da Lituânia, do Uzbequistão...
Assim, como nunca a região da Sibéria
venceu nenhuma competição.
Em relação aos jogadores, nenhum
deles jogava por amor tão somente...
Eram quase todos, funcionários do
Estado que recebiam seus salários não para prestar serviço ao público, mas sim,
para jogar futebol.
Todos moravam em apartamentos
pagos pelo governo e todos aqueles que ganhassem um campeonato ou chegassem à
seleção eram presenteados com carros da marca, Lada.
Da mesma forma que a maioria dos
clubes era propriedade do Estado e mantidos com dinheiro público.
Eis aqui uma pequena lista de
quem pertencia a quem.
Dínamo de Moscou – NKVD ou KGB, CSKA
Moscou – Exercito Vermelho, Torpedo Moscou – Indústria Automobilística, Zenit Leningrado
– Siderúrgica de Leningrado, entre outros.
A única equipe da União Soviética
que se enquadra no que você chama “futebol jogado por amor” é o Spartak Moscou.
Fundado em 1922 por Nikolai
Starostin, o clube sempre foi independente.
Mesmo que lhe cause espanto, o
Spartak surge da vontade de rapazes pobres (havia pobreza na URSS) que sem
espaço para jogar entre os clubes da elite (havia elite na URSS) jogavam
futebol nas ruas ou em qualquer lugar com espaço o bastante para a bola correr –
esses jovens e sua forma de jogar eram conhecidos com praticantes do “futebol
marginal”.
O primeiro nome do clube foi Krasnaya
Presnya, via principal do Bairro de Presnya...
O bairro estava localizado numa
região habitada por trabalhadores braçais, repleta de fábricas, cortiços e
favelas (sim, havia cortiço e favela na URSS) e conhecida pelas gangs que
dominavam o local e o tornavam um lugar violento e perigoso.
Nikolai e seus irmãos, Alexander,
Pavel e Anatoly, fundadores e jogadores do time, mais tarde rebatizaram o
Krasnaya Presnya com o nome do líder da revolta de escravos contra o Império
Romano – Espártaco.
Daí, Spartak.
A sobrevivência do Spartak longe
das benesses estatais se deu pelo espirito empreendedor (também havia
empreendedores na URSS) de Nikolai e sua capacidade de gerir os recursos
conquistados através de doações (deve ter sido o modelo sócio torcedor a moda
soviética) e venda de ingressos.
A independência do regime e sua
rebeldia (seus torcedores grivam “bei militsia” ou, peguem os policiais, quando
jogavam contra o Dínamo) atraíram para o Spartak uma legião de torcedores.
Torcer pelo o Spartak,
significava dizer não ao estado policial e opressor.
Ainda hoje, mesmo sem conseguir
reeditar as glórias passadas, o Spartak é dono da maior torcida da Rússia.
Espero que este longo texto,
sirva para aclarar sua visão sobre o futebol por trás da “cortina de ferro”.
Obrigado por seu comentário.
2 comentários:
Obrigado pela aula !
Cordialmente,
José Leonardo.
Uma aula de quem gosta de pesquisar! (José Vanilson Julião - jornalista)
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