A elitização do futebol: ingresso
brasileiro é o mais inacessível do mundo
Torcedor que ganha salário mínimo
precisa trabalhar 11 horas para entrar no estádio, enquanto o alemão leva menos
de duas
Por Rodrigo Capelo
Infográfico: Giovana Tarakdjian
O Profut, sancionado por Dilma
Rousseff no início deste mês, determina que clubes de futebol, aqueles que
decidirem renegociar suas dívidas fiscais com o governo, mantenham "oferta
de ingressos a preços populares".
Não especifica nem quantos
bilhetes, nem a que preço.
Mas devia.
O ingresso brasileiro é o mais
inacessível do mundo para a camada socioeconômica mais baixa da população.
Quantas horas uma pessoa que
receba um salário mínimo precisa trabalhar para comprar o tíquete mais barato?
A conta, aqui, foi feita por
Oliver Seitz*, brasileiro que leciona administração esportiva na University
College of Football Business em Londres: divide-se o salário mínimo pela carga
horária de trabalho de cada país, depois pelo preço do ingresso mais baixo
disponível.
Vamos nos restringir aos campeões
da última temporada, até porque o jogo do último colocado naturalmente tem
menos demanda do que o do primeiro.
Um torcedor brasileiro precisa
trabalhar dez horas e 18 minutos para comprar um ingresso, o mais barato, do
Cruzeiro.
Se o sujeito quiser ir ao
Mineirão todo domingo, agora que o time não disputa mais a Copa do Brasil,
precisa dedicar quase um quarto da carga de trabalho semanal só para comprar a
entrada.
Sem considerar transporte, talvez
estacionamento, alimentação dentro ou fora do estádio.
Um alemão, no lado oposto, tem de
ficar na labuta uma hora e 48 minutos para assistir a uma partida do Bayern de
Munique.
Talvez a Alemanha não seja a
comparação mais justa, porque lá existe a filosofia de perder alguma receita no
fim da temporada em prol de uma arena plenamente ocupada.
Mas o Brasil é menos acessível do
que todos os outros principais países do futebol.
Um francês, no país que tem uma
das cargas de trabalho mais baixas da Europa, trabalha duas horas e 36 minutos
para ver o Paris Saint-Germain.
Um inglês, no território onde a
camada mais pobre da população vê futebol pela TV a cabo e ingressos são
reconhecidamente caros, leva seis horas e 18 minutos por uma partida do
Chelsea.
Até argentinos e portugueses, em
economias bambas, têm de trabalhar menos para assistir a Racing e Benfica.
Esta análise não pode considerar
só o valor do tíquete, mas o poder de compra da população.
E elitização se mede não com
números médios de preço do ingresso e renda do torcedor, mas mínimos.
O Cruzeiro, por acaso, está bem
perto da média da primeira divisão brasileira: 11 horas e oito minutos de
trabalho por um ingresso.
Alguns demandam um pouco menos,
outros muito mais.
O mais legal é que, a partir da
comparação do futebol brasileiro com as principais ligas europeias, é possível
determinar um valor acessível para o cidadão menos endinheirado: R$ 20,63, ou
quatro horas e 15 minutos de trabalho com um salário mínimo por mês.
O ideal, para um estádio de
futebol, é que o preço do ingresso seja alto suficiente para que o mandante
consiga dinheiro para investir em atletas, mas baixo suficiente para que o
estádio esteja totalmente ocupado.
O futebol inglês pode se dar ao
luxo de cobrar mais caro pelo tíquete porque, afinal, lá os campeões têm 100%
dos lugares preenchidos.
No Brasil, onde a média nacional
fica na casa dos 40%, a maior parte das arquibancadas que fica vazia todo jogo
poderia ser ocupada pela camada mais pobre da população.
Aquela que, antes da modernização
dos estádios forçada pela Copa do Mundo, normalmente comparecia toda quarta e
domingo para apoiar o time.
Maximizaria, inclusive, as
receitas.
Um bom negócio para todos.
Não quer dizer que todos
ingressos devam custar 20 pratas.
Nem que, se custassem, estádios
seriam preenchidos.
Há mais variáveis que atraem ou
afastam torcedores: desempenho do time, ídolo (s), acesso à arena, segurança,
conforto, dia, horário, clima, fase do campeonato, se são pontos corridos, se é
mata-mata.
Mas é fato que o preço é um fator
determinante.
Tanto que o São Paulo, em 2013,
quando baixou preços de ingressos de R$ 26 para R$ 11, em média, aumentou a
média de público do Morumbi de 8.500 para 29.800 por jogo.
O erro são-paulino, o mesmo
cometido pela Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FFERJ) no
Campeonato Carioca de 2015, foi fixar a quantia em um teto (o valor do bilhete
mais caro), e não trabalhar a precificação a partir de um piso (o do mais
barato).
Arena lota de baixo para cima.
Quando começam as vendas,
primeiro esgota o setor que tem entradas mais baratas.
Se a primeira faixa de preço é
cara demais para o torcedor que ganha um salário mínimo, ela é ocupada por
outro, e este deixa de pagar pelo setor seguinte.
O resultado é que, na hora do
jogo, as arquibancadas mais salgadas, geralmente as que ficam visíveis durante
a transmissão da partida pela TV, ficam às moscas.
O Corinthians passa por isso em
Itaquera. Atlético-MG e Cruzeiro, no Mineirão.
O Palmeiras, no Allianz Parque.
Em resumo: estádio precisa ser
setorizado, e as faixas de preço dos ingressos precisam atender a todo tipo de
público, do popular à elite, até encher a casa.
O cartola vai argumentar, como já
faz, que o preço mínimo precisa ser alto para privilegiar o sócio torcedor e
incentivar a adesão ao programa.
Só que para o fulano que ganha R$
788 por mês gastar R$ 30 só para ter preferência na compra de ingressos, ou desembolsar
para lá dos R$ 100 mensais para conseguir 25%, 50% ou 75% de desconto e ainda
ter que pagar pelos bilhetes, tampouco é acessível.
Também tem a meia-entrada, outro
complicador, um problema de toda casa de entretenimento, do cinema e ao
concerto musical.
Mas nem assim se pode ignorar: futebol está caro demais.
Depois de longas discussões entre
CBF, clubes e Bom Senso FC, deputados federais e senadores, esses responsáveis
por representar a população brasileira, concordaram com um Profut que agrada a
todos, menos ao torcedor.
A CPI do Futebol do senador
Romário (PSB-RJ) foi para cima dos sigilos bancário e fiscal de Marco Polo Del
Nero, presidente da CBF, mas tampouco deu atenção a um dos poucos legados da
Copa, a reconstrução dos estádios brasileiros e a consequente exclusão dos
cidadãos mais pobres.
A considerar que o salário mínimo
deveria ser de R$ 2.088,20 para igualar o poder de compra do brasileiro ao do
estrangeiro, e que isso nocautearia de vez a economia, tampouco pode-se esperar
por uma "ajuda" de Dilma.
É isso, torcedor. Conforme-se em
ver teu time pela televisão aberta.
*Oliver Seitz é PhD em indústria
do futebol e professor de administração esportiva da UCFB em Londres (oliver@brain.srv.br).
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