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A Croácia, o nacionalismo e os perigos de
atribuir rótulo de fascista em um país tão complexo
Por Felipe Lobo para o Trivela
A Croácia é a
grande história da Copa do Mundo de 2018, caminhando até a final de forma
surpreendente.
E quanto mais
longe vai um país na Copa, ainda mais um que nunca chegou tão longe, maior o
interesse por ele.
Assim, uma das
polêmicas que a Copa trouxe foi a relação entre o fascismo e a Croácia, por
episódios durante o Mundial.
O país dos
Bálcãs é o mais jovem entre todos os 32 participantes, com uma república que
completará 27 anos em outubro.
Rotular o país,
ou os jogadores, como fascistas pode ser um erro para analisar um país que é
muito mais complexo do que rótulos ou caixinhas ideológicas possam explicar.
Unidade de sangue
A Croácia é
independente desde 1991, em um plebiscito.
A Iugoslávia,
porém, não aceitou a separação de uma parte do seu território e tentou manter a
unidade à força.
Uma guerra civil
que durou até 1995, com muitas vítimas nesse processo.
A região dos
Bálcãs passou por muitas mudanças e disputas ao longo da história e questões
étnicas e religiosas tiveram uma grande influência.
E a separação da
Iugoslávia deixou muitas feridas abertas.
As duas grandes
guerras no início do século 20 mudaram muito o que era a Croácia.
Na Primeira
Guerra Mundial, a Croácia era parte do território do Império Austro-Húngaro.
Já naquela
época, havia uma doutrina que permearia a região por décadas a fio: o
pan-eslavismo.
A ideia é que
haja um território unificado unindo todas as etnias de origem eslava.
Assim, seria um
Estado eslavo, em última instância.
E foi dessa
ideia que surgiu a Iugoslávia (“Eslavos do Sul”, enquanto os eslavos do norte
são os poloneses, ucranianos e russos), logo depois do fim dos conflitos.
O problema da Iugoslávia
era ser de maioria sérvia, algo que outras nações, entre elas a Croácia,
contestava.
A unidade era
frágil e isso causava instabilidade.
Em 1941, a
região foi invadida por países do Eixo, em meio à Segunda Guerra Mundial.
E isso criaria
uma marca.
A Croácia foi
separada da Iugoslávia, tornando-se um Estado Independente e que tinha Ante
Pavelic à frente.
General do
exército, ele foi o fundador da Ustase, em 1929, uma organização
ultranacionalista croata.
Foi essa
organização que foi alçada ao poder pelos nazistas alemães e fascistas
italianos.
A Ustase
praticava atos terroristas e Pavelic articulou com a Organização Revolucionária
Macedônia.
Por isso, foi
condenado à morte pela primeira vez.
A segunda
condenação veio depois de um atentado em 1932, que culminou na morte do rei da
Iugoslávia, Alexandre.
Exilado na
Itália, foi condenado à morte em um julgamento na França, em que ele não estava
presente.
Pressionada, a
Itália o prendeu por 18 meses, mas o manteve vivo.
Ele chegaria ao
poder em 1941 para ser um Estado fantoche dos nazistas.
Pavelic
estabeleceu um governo, portanto, similar ao dos nazistas, com ambições de
expansão territorial, querendo anexar a Bósnia e parte da Sérvia, além de
políticas contra sérvios e antissemita.
O governo
praticou crimes de guerra como a limpeza étnica, com a morte de 500 a 700 mil
sérvios, judeus, muçulmanos e ciganos, entre outras minorias, além de torturas
e campos de concentração.
A sede de sangue
de Pavelic era tamanha que até o Estado alemão nazista tentou intervir para
tentar restringir as ações genocidas.
Nem mesmo a
rendição alemã, em maio de 1945, fez Pavelic parar.
Ele mandou as
tropas continuarem lutando.
Quando não havia
mais o que fazer, ele ordenou que as tropas fossem até a Áustria e se rendessem
ao exército britânico.
Mas os
britânicos se recusaram a aceitar a rendição e ordenaram que ela fosse feita
diante dos Partisans, um movimento de resistência à invasão do Eixo na
Iugoslávia.
Parte desse
movimento armado surgiu do partido comunista da Iugoslávia.
Em vez disso, a
Ustase lutou contra os Partisans. Pavelic, por sua vez, fugiu para a Áustria e
depois para a Argentina, com abrigo oferecido pelo então presidente Juan Perón,
que recebeu diversos criminosos de guerra nazistas.
Um dos mais
proeminentes líderes dos Partisans era o Marechal Josip Broz Tito, que comandou
a resistência e a retomada do poder em Belgrado, em 1944, antes de conquistar a
Croácia em 1945, com a poderosa ajuda da União Soviética.
Tito, croata de
nascimento, era um pan-eslavista.
Foi o ponto
crucial da criação do Estado da Iugoslávia depois da Segunda Guerra Mundial,
agora em um regime socialista e com ligações com a União Soviética, mas com
muito mais independência em relação a outros países do leste europeu.
Com um regime
autoritário, Tito manteve o país sob uma mesma bandeira, mas o caldeirão sempre
ferveu.
Com a morte de
Tito, em 1980, o caldo entornou.
Os movimentos
separatistas, sempre combatidos por Tito, emergiram.
A Iugoslávia,
socialista, sofreu a influência da derrotada soviética e de regimes socialistas
sob sua influência.
A queda do Muro
de Berlim, em 1989, com a Alemanha unificada em 1990 e a dissolução da União
Soviética, em 1991, aconteciam, enquanto a Croácia declarava a sua
independência por plebiscito.
Assim como a União
Soviética, a Iugoslávia era uma panela de pressão prestes a explodir, o que nos
Bálcãs aconteceu a partir da morte de Tito.
O renascimento da Croácia e o futebol
Como um país
jovem, com menos de 30 anos de vida independente, é de se esperar que a vida dos
jogadores presentes na Copa tenha muito a ver com o violento processo que levou
à independência croata.
As marcas de uma
guerra nas vidas das pessoas são indeléveis e deixam sequelas que são
importantes demais para serem ignoradas.
E mais do que
isso, os símbolos nacionais possuem um peso muito diferentes de outros países.
Alguns jogadores nasceram em uma Iugoslávia em que se sentiam perseguidos,
sofreram com a guerra e viram nascer o Estado para a sua nação.
E isso significa
muita coisa.
O futebol sempre
foi uma forma altamente politizada de expressão nacional na Croácia
pós-socialista.
Franjo Tudman,
que lutou pela independência da Croácia desde 1989, era um líder nacionalista e
anticomunista, como ele mesmo se descrevia.
E aqui é
importante pontuar: ser contra o regime iugoslavo pan-eslavista era, quase
necessariamente, ser alguém oposto ao socialismo ou ao comunismo apregoado por
Tito.
Enquanto Tito e
o seu regime minimizava os sentimentos nacionalistas dentro do Iugoslávia por
algo acima disso, um Estado pan-eslavista, os opositores incitavam o
nacionalismo.
Por isso, não é
surpresa que o líder que queria a separação da Iugoslávia fosse dessa matriz
ideológica.
Afinal, política
se faz não só por semelhança, mas também por oposição ao que se estabelece.
Franjo Tudman se
tornou o primeiro presidente da Croácia e tinha uma relação com o futebol que
era muito militarizada.
Os jogadores
eram tratados como heróis e guerreiros e vistos como símbolos nacionais.
“Vitórias no futebol moldam a identidade da
nação tanto quanto as guerras”, dizia Tudman.
Algo que se
aproxima do que um grande escritor já dizia.
George Orwell
afirmava que o futebol era “a guerra sem
os tiroteios”.
Não é por acaso
que muitos dos termos usados como metáforas no futebol são bélicos.
O esporte
tornou-se uma manifestação nacional, o que para uma nação recém-criada era
fundamental.
“Atletas são os melhores embaixadores do
nosso país”, afirmou Tudman.
A Croácia
disputou as Olimpíadas de 1992 já como um país independente, mesmo em meio ao caos.
No futebol, a
questão foi um pouco mais complicada.
Os sucessos do
esporte, e especificamente do futebol, eram estendidos ao país.
Futebol, na
Croácia, nunca foi só futebol.
Sempre foi uma
forma de unidade nacional em um país que sofreu muito para ser o que é.
Com tantas
feridas abertas, o nacionalismo é uma faca de dois gumes, com faces bastante
afiadas dos dois lados e muito menos óbvios do que pode parecer ao olhar de
quem está de fora.
A cicatriz do craque
Em meio à guerra
pela independência, uma cidade foi atingida pelo conflito.
Ali, no vilarejo
de Modrici, um senhor levava o gado subindo a montanha em um dia, como fazia
todos os dias.
Era dezembro de
1991 e a Croácia tinha declarado independência, após um plebiscito.
Como a
Iugoslávia não aceitou, o país viva uma guerra civil.
Enquanto alguns
guerreavam, outros tentavam apenas sobreviver.
Como era o caso
daquele senhor, que subia o gado na montanha, cuidando como sempre fazia.
Alguns homens
uniformizados apareceram.
Supostamente
policiais, mas não se sabe.
Levou aquele
senhor, junto a cinco outros, para o vilarejo seguinte a Jesenice.
O crime dele, e
de todos aqueles ali, não era nada do que eles tinham feito.
Era algo que
eles eram.
Eram milicianos
sérvios e o crime daqueles capturados era serem croatas.
Aquele senhor
deixou uma família que o amava.
Entre eles, um
garoto de seis anos de idade, que ele ajudava a criar enquanto os pais
trabalhavam em uma fábrica de roupas.
O garoto era
Luka Modric, com 32 anos em 2018, prestes a capitanear a sua seleção a uma
final de Copa do Mundo.
Um sonho
realizado em uma vida que teve um início que mais soava como pesadelo.
O assassinato do
avô era um método de intimidação em meio à guerra.
Não foi o único.
A casa onde a
família morava foi queimada, como tantas outras.
Os pais fugiram,
levando Luka Modric, para Zardar, onde moraram em um hotel abandonado que
serviu como abrigo para diversas famílias que viviam situação similar.
Em meio ao caos
de uma guerra, de viver em uma situação limite, Luka Modric jogava futebol no
que era o estacionamento do hotel.
Às vezes
sozinho, às vezes com outras crianças.
“Quando a guerra começou, nós nos tornamos
refugiados e foi um tempo muito difícil. Eu tinha seis anos de idade. Aqueles
eram tempos realmente muito duros. Eu lembro deles vividamente, mas não é algo
que você queira lembrar ou pensar a respeito. Nós vivemos em um hotel por
muitos anos, já que nós sofríamos financeiramente, mas eu sempre amei futebol.
Eu lembro das minhas primeiras caneleiras que tinham o brasileiro Ronaldo neles
e eu as amava”, contou Modric em 2008, quando chegou ao Tottenham.
“A guerra me fez mais forte. Foi um momento
muito difícil para mim e para a minha família”, disse Luka Modric ao The
Sun.
“Eu não quero carregar isso comigo para mim,
mas eu não quero esquecer também”.
A Croácia se
tornou finalista passando por muitas batalhas – em mais uma metáfora bélica,
tão comum no futebol.
Contra
Dinamarca, vitória nos pênaltis, depois de ver o seu capitão, o próprio Luka
Modric, perder um pênalti na prorrogação.
Nos pênaltis,
Modric não teve qualquer medo de cobrar novamente.
E marcou.
No final,
vitória da Croácia.
Ivan Rakitic
declarou, após o jogo, que o time fez tudo para vencer por Modric.
“Lukita já nos salvou tantas vezes. Era a
hora de retribuir”, disse o meio-campista.
Os croatas
enfrentaram os russos e tiveram que passar novamente por prorrogação e
pênaltis. E venceram.
Veio a semifinal
e mais um duelo duro contra a Inglaterra.
Mais uma
prorrogação.
Desta vez, sem
pênaltis.
Vitória.
Os croatas
chegam com três prorrogações nas costas.
É difícil
imaginar o que ser croata representa para esse time e o que esse time
representa para os croatas.
Só mesmo os
jogadores podem sentir o que é poder representar um país que se sentiu tantas
dores recentes da guerra.
O valor de poder
vestir a camisa da Croácia, para esses jogadores, é algo que nós, que não somos
croatas, sequer podemos imaginar.
A história
croata tem capítulos sombrios com as relações com fascistas, os nazistas e tudo
isso. Mas tem também uma história de dores que muitos dos jogadores viveram na
pele.
Jogadores como
Dejan Lovren, ou como Ivan Perisic, que se tornaram refugiados na Alemanha
antes de serem obrigados a voltar ao país após o fim da guerra.
São marcas
difíceis de tirar.
O
ultranacionalismo croata era terrível, em vários aspectos.
Mas quem pode
condenar alguém que sente o orgulho de ser croata, de ter a liberdade de
gritar, a plenos pulmões, pelo seu país?
Ainda mais na
Rússia, um país que tem ligações com aqueles que os perseguiram.
E os croatas
sabem que a população russa não tem nada a ver com isso.
Eram questões de
governo.
“Eu não gosto de voltar para essas coisas.
Está tudo no passado”, afirmou Modric, na coletiva de imprensa antes da
final da Copa.
“É claro, tudo influencia você. Isso nos fez
resilientes como pessoas, como nação”.
Nacionalismo,
então, é uma questão muito mais complexa do que uma relação com fascismo.
O caso da presidente
A Croácia tem
uma presidente e um primeiro-ministro, que é quem tem o maior poder.
A presidente se
tornou uma figurinha carimbada na Copa do Mundo.
Kolinda
Grabar-Kitarovic foi vista durante todo o torneio com a camisa da Croácia e
comemorando.
Ela é candidata à
reeleição nas próximas eleições presidenciais, em 2019.
O governo do
país atualmente é de centro-direita e tem um discurso economicamente liberal e
capitalista.
Como forma de
manutenção de governabilidade, deu espaço a alguém como Zlatko Hasanbegovic,
que se tornou ministro da cultura e é uma figura conhecida de grupos de extrema
direita que tem discurso que minimiza os crimes da Ustasa.
O primeiro
governo, liderado por Tihomir Oreskovic, caiu ainda em 2016, com essa e outras
controvérsias – por lá o regime é parlamentarista.
Depois da
vitória suada contra a Dinamarca, nos pênaltis, pelas oitavas de final,
Grabar-Kitarovic foi vista no vestiário.
Algo inesperado
para uma chefe de Estado, que foi cumprimentando um a um, a começar pelo
técnico, sendo que alguns jogadores sequer estavam completamente vestidos
enquanto se filmava o evento.
Luka Modric foi
quem recebeu o mais longo abraço, além de palavras trocadas com a presidente.
Enquanto o ato foi visto por seus pares como algo patriótico de alguém que
gosta muito de futebol, os opositores viram como um grande golpe de marketing
político para capitalizar em cima do time.
E eis quando o
caldo engrossa.
Zdravko Mamic, o
dirigente mais poderoso da Croácia dos 10 anos, foi condenado à prisão dias
antes da abertura da Copa.
Ele fugiu para a
Bósnia, país onde também tem nacionalidade e, assim como o Brasil, não
extradita seus cidadãos.
Figura
controversa, ele foi um apoiador da campanha da presidente Grabar-Kitarovic,
financiando e promovendo jantares em favor dela.
A presidente alega
que não conhecia as práticas criminosas do dirigente.
Modric também
foi condenado por perjúrio justamente pelo processo contra Mamic, onde ele
mudou o depoimento para não prejudicar o dirigente.
Seu julgamento
será após a Copa.
Certamente como
destaque do time croata e do país.
Talvez como
campeão.
Desilusão no país, esperança no futebol
Tudo isso está
ligado.
O sentimento
nacionalista croata é muito ligado ao futebol e isso ficou evidente na campanha
de 1998.
A empolgação com
o que fez o time na Copa do Mundo de 1998, na França, causou uma enorme euforia
no país.
Era uma
empolgação com o país, que estava batendo às portas de entrar na União
Europeia.
A campanha na
França servia como uma propaganda do país, um símbolo de união que faria a
Croácia integrar a comunidade europeia – algo que só aconteceu em 2013, aliás,
depois de se candidatar oficialmente em 2003.
O clima de
empolgação não é o mesmo em 2018.
Se há 20 anos o
olhar era para o futuro, agora se volta ao passado.
Naquela
campanha, a promessa era de um futuro de estabilidade e prosperidade econômica.
A esperança era
parte da política, tanto quanto era do time.
Mas esse futuro
nunca chegou e a desilusão tomou conta.
Estudos mostram
que muitos croatas são muito menos otimistas sobre o futuro do país e há uma
enorme desconfiança da população em relação às instituições do país, políticas,
judiciais e outras coisas.
Há constantes
conflitos entre políticos, a economia mostra poucos sinais de melhora e a
imigração cresce em uma medida preocupante.
Se nos anos
1990, depois da independência, o sentimento de nacionalismo emergia como uma
forma de orgulho e símbolo de um sonho de país realizado, 20 anos depois a
situação é bem diferente.
A Croácia de
2018 é uma nação bem mais dividida em muitas questões e o futebol não é uma
exceção.
A economia e a
sociedade do país vivem uma crise, com imigração em grande número e 43% de
desempregados entre os jovens.
Os jogadores
podem sentir a sombra do confronto com a França, olhando para a derrota de
1998, mas a sombra que assola a Croácia é a de uma transição do socialismo para
o capitalismo que fracassou.
E, assim como
tantos outros países de terceiro mundo, o futebol é a única esperança de uma
vitória.
É a única coisa
capaz de causar uma empolgação coletiva no país.
A esperança que
falta na política sobra no futebol.
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