Imagem: Acervo Jornal Última Hora/Arquivo Público do Estado de São Paulo
João Saldanha, o João Sem Medo de ditadura
Entre milicos e comunas, a história do dia em que o treinador da
Seleção Brasileira disse para o ditador que cada um cuidasse daquilo que lhe
era dever: Médici, do ministério, e Saldanha, da Seleção.
Pedro Henrique Brandão Lopes
Há exatos 55 anos, a insatisfeita
caserna marchou pelas ruas do país e, com um golpe de estado, tomou o poder sob
a alegação de evitar a ameaça comunista que o presidente João Goulart
representava com suas reformas de base.
A crise política, desencadeada
ainda em 1961 com a renúncia de Jânio Quadros, foi o pretexto para que os
militares chegassem ao poder.
Com o apoio civil, o movimento
que se autoproclamou “Revolução de 64” para disfarçar um golpe militar e a
(in)consequente ditadura, fez com que o Brasil vivesse 21 anos sob um regime
militar que perseguiu, caçou direitos e assassinou quem ousasse se opor aos
militares.
Os anos de chumbo encerravam
todos os setores da sociedade brasileira, da música à política, passando por
economia e direitos civis, até chegar no futebol, a ditadura controlou absolutamente
tudo durante mais de uma década a partir de meados dos anos 1960.
Neste clima de pouca liberdade, o
comando técnico da Seleção Brasileira foi parar nas mãos de um jornalista
gaúcho, culto, politizado, de temperamento explosivo e que era um ferrenho
militante do Partido Comunista Brasileiro.
João Saldanha, tinha 51 anos
quando foi convidado por João Havelange, então presidente da CBD, para dirigir
a Seleção Brasileira que precisava se classificar nas eliminatórias para
disputar o Mundial de 1970 no México.
Nascido em Alegrete, em 3 de
julho de 1917, Saldanha havia sido jogador das categorias de base do Botafogo,
mas logo percebeu que não tinha talento suficiente para seguir carreira nos
gramados.
Aceitou ser diretor de futebol do
Clube da Estrela Solitária.
Da cartolagem para o banco de
reservas foi um pulo depois de conviver com grandes técnicos que passaram por
General Severiano.
Em 1957, foi campeão carioca
dirigindo um dos melhores times do Botafogo na história que na final bateu o
Fluminense por incríveis 6 a 2, até hoje a maior goleada na final de um
Campeonato Carioca.
Depois do título de 1957, não
conseguiu repetir o sucesso e em 1959, afastou-se do futebol para estudar
jornalismo, sua segunda graduação já que havia se formado em direito no final
dos anos 1940.
Nas tribunas, empunhando
microfone e seu inseparável cigarro, Saldanha se tornou um dos mais importantes
cronistas esportivos do Brasil e o comentarista literalmente técnico.
Nas cabines de transmissão de
rádios como a Guanabara, Nacional e Globo, João modernizou a imprensa esportiva
brasileira, falando a língua de quem ouvia os jogos pelo tradicional rádio à
pilha e levando em seus comentários a visão do ex-treinador de sucesso com
muito conhecimento em futebol.
Mesmo falando de esporte,
Saldanha nunca deixou de criticar a ditadura que sufocava o Brasil.
Sempre que possível dava um jeito
de alfinetar os ditadores, mas como era muito inteligente, dono de uma
invejável retórica e adorado pela opinião pública, permaneceu longe do alcance
da repressão.
Foi este profissional
completamente avesso ao regime, que a CBD quis colocar no comando da Seleção
Brasileira, o maior instrumento de propaganda internacional da ditadura, o
Brasil que dava certo.
Fichado no Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS) desde 1947, comunista de carteirinha, filiado ao PCB,
crítico dos militares e da parceria entre estes e a CBD, o homem que falava nas
principais rádios da época contra os desmandos de João Havelange e cia,
Saldanha se tornou dono do cargo mais importante da vida pública brasileira:
técnico da Seleção Brasileira.
Pode parecer absurdo, mas era uma
tentativa de plano perfeito, uma audaciosa estratégia para calar Saldanha e a
imprensa que malhava as dificuldades do Brasil nas eliminatórias.
A lógica era a seguinte: a partir
do momento que João estivesse empregado pela CBD, não poderia criticar a CBD, e
por outro lado a crônica esportiva não teria coragem para criticar o trabalho
de alguém com as costas tão largas quanto as que tinha João Saldanha, tanto no
futebol quanto na imprensa.
Ledo engano!
O “eu topo” que falou para
responder o convite de Havelange, mudou o rumo da história do futebol
brasileiro e até da política no Brasil.
No futebol, Saldanha começou
mudando a cara do time escalando seus “feras”.
Num guardanapo de papel escreveu
rapidamente os 11 nomes que estariam com ele até a Copa e os anunciou sem
mistérios para a imprensa na coletiva que marcou sua apresentação no cargo.
Era o time que o comentarista
cansou de repetir como ideal nas transmissões dos jogos.
Entre os 11 feras iniciais de
Saldanha, nada menos do que 8 seriam campeões do mundo como titulares 1 ano
depois no México.
A primeira convocação tinha:
Félix; Carlos Alberto, Brito,
Djalma Dias e Rildo; Piazza, Gérson e Dirceu Lopes; Jairzinho, Tostão e Pelé.
Mas não pense que João era apenas
um animador de grupo, alguém para mexer com os brios dos jogadores.
Muito pelo contrário, Saldanha
tinha uma ideia de time na cabeça, um projeto de grupo coeso e time versátil
que se bem entrosado seria imbatível.
Esse pensamento fica evidente na
fala do treinador ao anunciar seus escolhidos:
“Minha seleção — todo mundo tem a sua e eu também (…) Mas aí vai o
time: no gol, qualquer um — Félix, Ubirajara, Picasso. Tanto faz. São todos
muito bons. Em seguida, uma linha de quatro jogadores formada por Carlos
Alberto, Brito, Piazza e Rildo. Imediatamente à frente desses quatro, o Gérson.
Um pouco mais à frente, formando uma linha de dois homens, o Dirceu Lopes e o Tostão.
Mais à frente ainda, outra linha de três, com Jairzinho, Pelé e Edu. Explico a
razão deste 4–1–2–3. Se nós saíssemos ganhando o jogo, manteríamos a formação
como está acima. Caso tomássemos um gol, Gérson poderia avançar para o lugar de
Tostão e este iria mais à frente juntar-se à linha avançada. Teríamos, então, o
4–2–4. Se o adversário se trancasse mais ainda, teríamos outra alternativa:
avançar Piazza para junto de Gérson e Dirceu Lopes andaria mais à frente.
Teríamos, então, outra formação, o 3–2–5. Poderia ser feita outra alternativa,
com Gérson indo à frente e Dirceu ficando junto a Piazza. Quer dizer, é uma
equipe para jogar qualquer tipo de jogo e contra qualquer adversário. Um time
formado com cobras deste gabarito, treinando uns dois ou três meses, não perde
para ninguém”.
Não se tratava de preferência
apenas, era muito mais, era um projeto e esse projeto seria campeão do mundo um
ano depois.
Mas para isso, antes, fez miséria
nas eliminatórias.
Das seis partidas que faltavam
quando Saldanha assumiu, o Brasil venceu as seis, marcou 23 gols e sofreu
apenas 2.
Enfileirou três sonoras goleadas
marcando cinco ou mais gols em cada uma.
Um time que se tornou uma máquina
de fazer gols.
Mesmo com esses resultados
brilhantes, João Saldanha não chegou a treinar a Seleção Canarinho no México em
1970.
Foi demitido apenas 1 ano e 1 mês
depois de convocar a seleção pela primeira vez e a menos de 2 meses da estreia
na Copa.
O motivo: uma discussão pública
com o ditador do Brasil na época, Emílio Garrastazu Médici.
O general/torcedor cobrou na
imprensa a convocação de Dadá Maravilha, centroavante goleador do Galo.
João Saldanha, também via
imprensa, respondeu com toda sua irascível coragem e retórica perfeita:
“O Brasil tem 80 ou 90 milhões de torcedores, de gente que gosta de
futebol. É um direito que todos têm. Aliás, eu e o presidente, ou o presidente
e eu, temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos, somos gremistas, gostamos de
futebol e nem eu escalo ministério nem o presidente escala time. Você tá vendo
que nos entendemos muito bem?!”.
A declaração caiu como uma bomba
na ditadura e com essa frase João Saldanha alterou a ordem da política
brasileira.
Ninguém antes havia tido a
coragem de enfrentar a ditadura assim, ainda mais estando num posto de tanta
evidência no exterior.
Ganhou de Nelson Rodrigues um
apelido e se tornou o João Sem Medo.
Aliás, Saldanha era reincidente.
No final de 1969, enquanto
viajava com a Seleção, o treinador havia apresentado à imprensa internacional
um dossiê de mais de três mil páginas sobre os abusos da ditadura militar
brasileira.
O suficiente para que João fosse
monitorado de perto na volta ao Brasil.
Como a corda sempre estoura do
lado mais fraco, Saldanha foi alvo de pressões da própria imprensa que passou a
acusar-lhe de temperamental.
Com a derrota frente à Argentina
a situação piorou e a crítica pesou a mão sobre o trabalho de João.
Descobriu-se que bastava jogar a
isca da provocação que Saldanha morderia com raiva e seria fisgado pela ira.
Assim muitas entrevistas com
críticas ao treinador da Seleção Brasileira passaram a circular no início de
1970.
A gota d’água no copo
transbordando foi a entrevista da Revista Cruzeiro com Yustrich, técnico do
Flamengo.
O rubro-negro direcionou à João
uma porção de insultos como ‘ignorante’, ‘falastrão’, ‘mentiroso’,
‘desconhecedor de futebol’, ‘oportunista’ e ‘covarde’.
E finalizou se referindo ao caso
da briga em que Saldanha atirou no goleiro Manga, em 1967:
“É um valentão que puxa o revólver e sai correndo”.
João não pensou duas vezes,
passou a mão no revólver e foi até São Conrado no C.T do Flamengo, para tirar
satisfações com o desafeto.
Não encontrou Yustrich, mas
aterrorizou ameaçando funcionários do clube.
Por sorte foi embora sem machucar
ninguém.
Não pegou nada bem e a crônica
esportiva pedia a cabeça que planejou a Seleção (que ainda não sabiam) do Tri.
A queda no desempenho também
pesou, além de uma birra do treinador contra Pelé, dizendo que o Rei tinha
problemas na visão e não poderia fazer jogos noturnos.
A panela de pressão verde e
amarela apitou e João Saldanha foi chamado à sede da CBD no dia 17 de março de
1970.
Lá ouviu de João Havelange que “a comissão técnica está dissolvida”.
Respondeu com uma graça: “Não sou sorvete para ser dissolvido. O que
quer dizer dissolvido? Demitido?”
Ouviu como resposta de Havelange,
“está demitido”.
E finalizou: “Até logo, boa noite. Vou para casa dormir”.
Pode ter dormido naquela noite e,
provavelmente, até bem.
Mas acordou no dia seguinte para
viver mais 20 intensos anos em que voltou às cabines de transmissão, abraçou
todas as mídias disponíveis em seu tempo, se consolidou como a maior autoridade
em táticas de futebol no Brasil e decidiu encerrar sua vida fazendo mais
daquilo que fez a vida toda: contrariar.
Doente, contra todas as
recomendações médicas e pedidos da família e amigos, foi à Itália em 1990 para
cobrir a Copa do Mundo.
Embarcou de cadeira de rodas no
Galeão para voltar num caixão.
Morreu no dia 12 de julho depois
de escrever diariamente sua coluna no Jornal da Tarde e cobrir todos os jogos
em que estava escalado para comentar pela TV Manchete.
Mais uma vez não teve medo.
Nem da morte certa pelo enfisema
pulmonar que tragou aos poucos em milhares de cigarros durante décadas como
fumante, nem da morte que poderia vir muda e dissimulada pela repressão militar
depois de achincalhar o ditador.
Talvez tenha tido medo de morrer
no Brasil longe da Copa e sem fazer o que mais gostava e sabia.
Aos 73 anos, durante a cobertura
de uma Copa do Mundo, morreu João Sem Medo, o João Saldanha.
Sem medo da morte João viveu, sem
medo da vida João morreu.
Sem medo da ditadura João
sobreviveu e sem medo do futebol João se eternizou como o arquiteto da Seleção
do Tri.
Foi-se o homem, ficou a fama.
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