Imagem: Autor Desconhecido
O cinquentenário do gol mais bizarro
da história do Maracanã...
Valdir Appel, o goleiro do Vasco da Gama, na tarde de 16 de março de 1969
16 de março de 1969
O dia amanheceu, no Hotel das
Paineiras.
O sol se infiltrou entre os blackouts
da janela do meu quarto, no segundo andar.
Três batidas fortes na porta
convidaram a mim e ao meu colega Nado a abandonar as cobertas, esticar o
esqueleto e pular de nossas camas.
Ali, pertinho do Corcovado, o
frio inibia o desejo de levantar de qualquer um, e somente depois da higiene
matinal nós nos animávamos a seguir em passos lentos para o salão onde nos
aguardava um café fumegante acompanhado de saborosos produtos coloniais.
Pura rotina de concentração.
O prazo para fazer o desjejum
terminava às 8h30min.
Depois, quem quisesse podia
voltar pra cama.
E era o que a maioria fazia.
Eu preferi ler o jornal e
prosseguir na leitura de um romance, que já estava pela metade.
Pra variar, o livro já estava com
três orelhas, providenciadas pelo Acelino, que passou a marcar deliberadamente tudo
o que eu lia, a partir do dia que eu expliquei o motivo do uso do marcador de
páginas.
O almoço foi o feijão com arroz
de sempre: muita salada de tomate, bife grelhado, purê de batata, água mineral
e uma gelatina de sobremesa para rebater.
Depois de um breve footing, nos
arredores do hotel para fazer a digestão, o técnico Pinga pediu que todos
descessem com as suas bagagens, às 13h30min.
Na sala de reuniões, fez uma
breve preleção sobre o comportamento tático que o time iria adotar.
Deixou claro que nos vestiários
daria os detalhes individuais.
Nosso ônibus iniciou o lento
processo de descida das Paineiras em direção ao Maracanã.
O agito de bandeiras carregadas
por alegres torcedores vestindo a camisa do Vasco, descendo dos trens da
Central, dos ônibus, misturando-se aos pedestres, faziam prever um grande
público para o clássico contra o Bangu.
Estávamos rodeados por dezenas de
fiéis torcedores cruzmaltinos que acenavam sorridentes, batendo nas laterais do
ônibus, desejando boa sorte.
Nos vestiários, a preleção, o
aquecimento, a oração.
Eu estava tranquilo.
Vivia o meu melhor momento em São
Januário.
A camisa número um era minha.
O meu mundo era perfeito.
Era o que eu imaginava.
Subimos para o gramado.
Estouro de fogos de artifício!
Gritos de casaca:
“Vaaascoo! Vaaascooo!”.
A massa vascaína tomava conta
praticamente de todo o estádio, contrapondo-se a pequena torcida do Bangu.
O jogo foi equilibrado até os 19
minutos, quando o goleiro Devito cometeu duas falhas consecutivas.
Na primeira atrapalhou-se num
cruzamento do nosso ponta direita Nado, largando a bola nos pés de Adilson que
não perdoou.
1 a 0.
Logo em seguida cometeu um
pênalti desnecessário.
Pênalti mal cobrado por Buglê que
conseguiu a proeza de mandar a bola quase nas arquibancadas do Maracanã.
O jogo estava difícil, bem
disputado, e eu fazendo boas defesas e transmitindo confiança ao time.
Aos 44 minutos da primeira etapa,
o centroavante adversário Dé dominou uma bola de costas para a minha baliza,
entre a marca do pênalti e arisca da grande área; girou o corpo e desferiu um
sem-pulo espetacular no meu canto baixo, à direita.
Realizo um salto perfeito e
encaixo firme a pelota!
Deu pra ouvir o comentário
zangado do Dé:
“Filho da puta! Como é que pega uma bola dessas?!”.
Um longo aplauso veio das
arquibancadas.
Ergui-me do gramado, com a bola
nas mãos.
Observei a saída da zaga e as
colocações de Eberval e Silvinho, pelo setor esquerdo da minha área.
O primeiro tempo estava para
acabar, e decidi repor a bola nos pés do Silvinho.
O braço fez a alavanca e a bola
saiu forte de minhas mãos.
Perdi o equilíbrio: as pontas dos
meus dedos tocaram de leve a bola, que mudou sua trajetória, indo chocar-se com
força no meio do poste esquerdo do meu arco, morrendo no fundo das redes.
Apoiado em um dos joelhos, me
senti impotente, com vontade de sair correndo pra buscar a bola, fazer voltar o
lance, apagá-lo da minha mente!
Silêncio total no maior estádio
do mundo...
Eu me senti profundamente
envergonhado.
Mesmo quando Mário do Bangu e meus
companheiros foram me consolar.
Arnaldo César encerrou o primeiro
tempo sem sequer dar nova saída de bola.
Preparei-me para iniciar o que
seria a maior travessia do Maracanã.
Estava no gol, à direita da
tribuna de honra, e meu vestiário estava do lado esquerdo.
Antes mesmo de chegar à linha da
grande área, um batalhão de repórteres, empunhando seus microfones, já me
cercava, perguntando:
“O que é que houve?”.
Minha resposta saiu rápida e
definitiva, detendo outras perguntas:
“Um acidente de trabalho!”.
Continuei em frente.
Aplausos tímidos da minha torcida
tentavam me consolar; os colegas faziam o mesmo.
Fiquei entorpecido.
Minha cabeça não parava de pensar
nas consequências que poderiam advir daquele gol absurdo.
Tinha que reagir ou poderia ser crucificado.
Cheguei próximo ao banco de
reservas.
Pinga, Evaristo Macedo, doutor
Arnaldo Santiago e Carlos Alberto Parreira me aguardavam.
Apressaram minha descida para o
vestiário.
“Espero que ninguém esteja pensando em me sacar por falta de condições
psicológicas”, disparei.
Pinga respondeu tranquilo...
“Apenas desça, pra evitar maiores assédios”.
Nos vestiários, Parreira – que
também era o treinador de goleiros, tomou uma providência importante: pediu que
eu fosse me refrescar, trocasse a camisa, e o acompanhasse.
Enquanto os demais jogadores
relaxavam em suas cadeiras e ouviam novas orientações do treinador, passei o
intervalo inteiro batendo bola com Parreira.
Desta forma, ele tentava impedir
que eu parasse pra pensar no desagradável episódio.
Como se isso fosse possível!
Na volta pro segundo tempo, Alcir
me perguntou se eu estava tão tranquilo quanto aparentava.
Respondi que estava bem e que
iríamos ganhar o jogo.
Dentro do túnel, uma surpresa: o
repórter volante de uma emissora de rádio me perguntou:
“Valdir, você vai voltar?”.
“Não! É sua mãe que vai pro gol, seu filho da puta!”.
Já no gramado, outro repórter me
abordou.
Colocou um fone de ouvidos em mim
e me botou em contato com o goleiro Barbosa, que estava nas tribunas.
Barbosa tentou me incentivar,
dizendo que eu levantasse a cabeça, e que com ele havia sido pior – uma falha
havia custado ao Brasil o título da Copa de 1950.
Agradeci ao grande goleiro.
Se bem que a última coisa em que
eu estava interessado naquele momento eram comparações.
Minha preocupação era fechar o
gol e não permitir suspeitas sobre o meu equilíbrio emocional.
Eu sabia que um segundo tempo
ruim poderia significar o fim da minha carreira.
Joguei bem, mas o placar
permaneceu igual.
Nos vestiários, tive que dar mil
entrevistas, repetindo sempre como a bola me escapara das mãos ao
arremessá-la...
À noite eu estava parcialmente
refeito.
Pesava um pouco o fato de o Vasco
ter perdido um ponto – e por causa daquele gol.
Mais tarde participei como
convidado de um programa de TV.
Ao lado de locutores e
comentaristas tive a oportunidade de ver o vídeo tape do gol várias vezes.
Senti-me pior do que no campo.
Em casa, mal consegui dormir
lembrando das palavras confortantes do Barbosa ainda nos vestiários:
O importante no frango é
sobreviver a ele.
Eu sabia que a partir daquele dia
eu estaria tentando sobreviver ao pior gol da minha vida.
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