Imagem: Will Oliver/EPA
Você nunca caminhará só — mesmo que tenha dono
Do blog do Juca Kfouri
Por Rodrigo R. Monteiro de Castro
A arcaica estrutura do futebol
brasileiro, mantida pelo dogma de que se trata de um bem inalienável, a ser
protegido pelos clubes associativos, explica, em grande parte, o desnível em
relação ao futebol europeu.
Falar de futebol europeu, de modo
generalizado, exige algum cuidado, pois, ali, se admira, na verdade, o futebol
mundial.
Todos os times minimamente
importantes contam com jogadores estrangeiros e formam, de acordo com as suas
condições financeiras, espécies de seleções.
Mas eles têm outro elemento comum
(em sua grande maioria): a substituição do modelo de propriedade da atividade
futebolística, que se deslocou dos clubes para empresas.
O início do processo, por lá,
também teve seus traumas.
A percepção de que "time é coisa coletiva, não mercadoria
de um torcedor só, ou de dois", conforme as palavras de João Moreira
Salles, não é um fenômeno apenas brasileiro.
A diferença é que ela (a
percepção) foi superada e o dogma deu lugar ao que se pode chamar de
modernidade.
Aliás, a percepção, de certo modo
ingênua a respeito da natureza da propriedade do futebol, revelada na afirmação
de João Moreira Salles, turva a compreensão da realidade: os times, no Brasil,
não pertencem aos torcedores – ou ao povo.
Ao contrário, há décadas estão
todos, com raríssimas exceções, sequestrados por uma casta que, justamente ela,
resiste à abertura e se beneficia com a transformação do jogador de bola em
commodity.
Essa é, infelizmente, a função
atual do País no cenário do futebol: exportador de matéria-prima para
transformação em produto de ponta.
Essa inversão histórica gera
outro efeito perverso: a importação do produto estrangeiro, de qualidade muito
superior.
A qualidade está necessária e
definitivamente vinculada à captação e à geração de recursos para financiamento
da empresa futebolística (nela incluídos todos os seus elementos, como
jogadores, time, arena, uniformes etc).
O AFC Ajax, por exemplo, um dos
semifinalistas da liga dos campeões, é uma companhia cujas ações são negociadas
em bolsa de valores (Euronext).
A composição do capital, conforme
informações públicas, é a seguinte:
Vereniging AFC Ajax
13,383,332
73.0%
NN Investment Partners BV
970,123
5.29%
Invesco Asset Management Ltd.
914,834
4.99%
Richard Strating
551,667
3.01%
I E Strating
551,667
3.01%
Fischedick Monique Catharina
Maria Strating-schulte
551,666
3.01%
Dimensional Fund Advisors LP
14,571
0.080%
O Tottenham Hotspur Limited, um
dos finalistas da liga, também é uma companhia, controlada por outra empresa,
denominada Enic International Limited.
A Enic detém 85,55% do capital do
Tottenham.
Já o capital da Enic é detido por Joe Lewis
(70,6%) e por Daniel Levy e certos membros de sua família (29,4%).
Daniel Levy exerce, também, a
função de "presidente".
O outro finalista da liga, o
Liverpool Football Club and Athletic Grounds limited, não foge à regra: é uma
empresa, controlada pelo Fenway Sports Group. Detêm participações no grupo
controlador uma série de investidores, dentre os quais John Henry, Tom Werner e
Mike Gordon (que integram, também, a administração).
O fato desses times terem donos
não abalou a paixão e a fidelidade dos torcedores.
Em certos casos, ao contrário,
times sem tradição ou perspectiva de conquistas, tornaram-se superpotências.
O maior exemplo é o Manchester
City.
Vendido em 2008 ao Abu Dhabi
United Group, deixou o papel de coadjuvante no passado e se tornou um dos
principais protagonistas do futebol inglês (e mundial): levando-se em conta
apenas os campeonatos realizados desde 1998, após nenhum título nas temporadas
de 1998/1999 a 2010/2011, venceu 4 vezes nas temporadas de 2011/2012 a
2018/2019, sendo o atual bicampeão da Premier League.
Aparentemente, os torcedores
desses times não os abandonaram pelo fato de terem donos.
O orgulho, ao que parece, nunca
foi tão intenso.
Eles jamais deixaram seus times
caminharem sós.
Enquanto isso, no Brasil, ainda
se luta a guerra do convencimento de que a regulação do novo mercado do
futebol, para viabilizar a atração de investimentos, não implicará um ato de
entreguismo.
Pobre Brasil.
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