Quanto pesa o Marrocos no circo
da FIFA?
Por Geraldo Hasse.
Publicado no blog do José Cruz.
Anunciado pela FIFA como sede do
Mundial de Clubes de 2013 e 2014, o Marrocos não é marinheiro de primeira
viagem em eventos esportivos.
Há mais de vinte anos esse país
agrícola do norte da África, com pouco mais de 30 milhões de habitantes, busca
espaço no rico mundo do futebol.
No final da década de 1980,
disputou o direito de sediar a Copa de 1994, afinal realizada nos EUA.
Se está no jogo, agora como
antes, é porque tem grana para apostar.
Bem como a FIFA aprecia e o Diabo
gosta, a grana marroquina se concentra nas mãos da família real e poucos
apaniguados, o que tende a facilitar a concretização de negócios no âmbito do
turismo — palavra que abrange várias atividades, do transporte à hotelaria,
passando pela gastronomia, a música e a prostituição.
Nesse circo armado para que times
de todos os continentes tenham chance de chegar à grande final, os espetáculos
esportivos são a cereja do bolo.
O continente africano está
chegando tardiamente ao mundão dos eventos esportivos.
Já estaria nadando de braçada ao
lado das Américas, da Ásia e da Europa se não vivesse tropeçando em recorrentes
problemas de subdesenvolvimento econômico e cultural.
Já nos tempos de João Havelange a
FIFA investia na expansão do futebol na África.
O grande parceiro era a
Coca-Cola.
Um dos protagonistas centrais
dessa epopeia, lá no começo, foi o Santos de Pelé, cujo time – campeão do mundo
em 1961 e 1962 — lotava estádios e produzia goleadas em campos sem grama e com
escassa cobertura de agências noticiosas internacionais.
Jogava por cachês milionários
(para a época), metade deles embolsados pelo próprio Craque Café. Também o
Botafogo de Garrincha fez excursões pelo continente negro, aproveitando o saldo
da fama das Copas de 58, 62 e 70. Com tudo isso, a África levou quase meio
século para sediar uma Copa do Mundo.
A festa da África do Sul em 2010
revelou que o continente negro continua cheio de problemas que o futebol ajuda
a mascarar.
Torneio do Rei
Todo esse contexto de décadas
remete a uma história vivida por um grupo de jornalistas brasileiros
convidados* a conhecer o Marrocos em julho de 1987.
Não foi uma daquelas visitas
convencionais, com guias e autoridades mostrando instalações esportivas,
aeroportos, estradas e hotéis.
Para animar os convidados de sete
países mais os donos da casa, o trade turístico marroquino inventou um torneio
de futebol entre jornalistas.
Esse programa mezzo amador, mezzo
profissional, concebido para provar que o país tinha condições de sediar a Copa
de 1994, não funcionou.
Sem acreditar nas possibilidades
de o Marrocos sediar uma Copa, a maioria dos jornalistas encarou a viagem como
passeio grátis e o torneio como festa de fim-de-semana num país exótico.
Praticamente ninguém buscou
informações sobre a infraestrutura turística do Marrocos.
Os próprios marroquinos pareciam
descrer do projeto bancado pelo rei Hassan II, dono de metade dos negócios do
país.
Além de brasileiros e marroquinos,
compareceram jornalistas da Itália, França, Espanha, Portugal, Senegal e
Tunísia. Cada “seleção” jogou três partidas na sexta, sábado e no domingo, sem
o descanso recomendado pela FIFA, sob o calor senegalesco de Agadir, a Miami da
África.
A “seleção brasileira” foi
convocada pela Fenaj.
Um dos seus diretores, José Paulo
Kupfer, não teve dificuldade em conseguir três jogos de material esportivo com
a Alpargatas, fornecedora dos uniformes (Topper) da Seleção da CBF.
Camiseta amarela, calção azul, meias brancas.
Sim, a seleção brasileira de
jornalistas vestiu a gloriosa camiseta canarinho nessa jornada africana.
Prevalecendo o critério de
representação geográfica, a caravana fenajosa reuniu gente do Amazonas, Ceará,
Rio Grande do Norte, São Paulo, Minas, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Rio
Grande do Sul.
No total, 19 pessoas, sendo três
mulheres.
Viajou quem tinha passaporte ou
arranjou folga ou estava de férias ou era frila ou estava desempregado.
Como alguns não tinham prática no
esporte bretão, foi possível apenas formar a espinha-dorsal de um time.
A princípio, a equipe contava com
um goleiro de nível de Seleção, pois fazia parte da caravana Raul Plassmann,
ex-Cruzeiro, ex-Flamengo, na época agente turístico da Air Maroc, estatal de
aviação do Marrocos.
Dublê de guia e comentarista da
TV Globo, Raul dispensou-se de atuar como goleiro ao ver o desempenho de
Madson, jornalista de Natal, que fechou o gol nos treinos.
Solidário, o craque imortalizado
pelo uso de camisa amarela no gol do Cruzeiro acabou ocupando a vaga de
treinador, inicialmente reservada para o célebre João Saldanha, outro
jornalista global, que ficou no Rio, com uma distensão na língua.
Em tempos pré-internet já se
cogitou mobilizar a equipe brasileira para escrever essa história que merece
ficar nos anais da crônica esportiva, mas nunca foi possível coordenar uma
narrativa conjunta.
Agora talvez seja mais fácil
recontar o causo completo a 22 mãos ou mais.
Para alguns, a viagem ao Marrocos
foi uma simples aventura turística, mas para outros foi uma grande e
inesquecível jornada futebolística.
Em Agadir, cidade turística com
cerca de 100 mil habitantes, reconstruída após o terremoto de 1961, as crianças
chamavam os jornalistas brasileiros por nomes familiares: “Sócrates!”, “Zico”,
“Falcão”, “Careca!”, craques que nessa época jogavam na Itália, ali perto, e
tinham brilhado nas Copas de 82 e 86.
Nem a fantasia superaria tudo
aquilo.
Era real, mágico, inverossímil.
Um dos jornalistas recusou-se a
assinar um autógrafo: “Veja a minha barriga, sou jornalista, não sou jogador de
futebol”, disse ao garoto que insistia no souvenir.
Alguns membros da comitiva
sorriam intimamente gratificados por essa maravilhosa identificação popular
oriunda do reconhecimento do talento futebolístico dos brasileiros.
Na abertura do Torneio do Rei, o
estádio municipal lotado juntou 15 mil pessoas.
E, segundo a versão entusiasmada
dos garçons do Hotel Atlas de Agadir, as partidas foram transmitidas pelo canal
estatal de TV, visando especialmente a agradar ao rei, que vive em seu palácio
em Rabat, a duas horas de carro da capital do sul do Marrocos.
Ao que consta, o único jornal
brasileiro que publicou alguma coisa sobre essa bizarra excursão brasileira foi
O Estado de S. Paulo, que mandou uma “enviada especial”: Kássia Caldeira,
recém-chegada do Estado de Minas, onde fora uma das primeiras repórteres a
cobrir a área de esportes.
A revista Imprensa, editada então
por Manoel Canabarro, publicou uma nota sarcástica na seção Gente da edição de
setembro de 1987.
Nela aparece uma foto do time
brasileiro acuado numa barreira: meia dúzia de canarinhos se encolhendo e se
protegendo de uma bolada na cobrança de uma falta.
O time brasileiro terminou em 4º
lugar, após um desempenho sofrível: na estreia ganhou por 1 a 0 da Tunísia e em
seguida levou 3 a 0 do Senegal.
Na disputa pelo terceiro lugar,
perdeu nos pênaltis para Portugal, depois de um renhido 1 x 1 – foi o único
jogo do torneio que teve briga, provocada por um desentendimento brutal entre o
goleiro brasileiro e o centroavante português.
Considerando o sol inclemente, as
altas temperaturas, a falta de preparo físico e o rigor das disputas, a
“seleção brasileira” deu-se por satisfeita por voltar inteira ao Brasil, só
lamentando uma violenta torção no joelho do mineiro Manoel e quatro pontos na
testa do gaúcho Luiz Armando Vaz.
Além do goleiro que colocou Raul
para a reserva, os melhores da equipe eram os dois de Brasília e Guilherme
Cunha Pinto, o Jovem Gui, que jogava como meia-atacante e era muito respeitado
porque aos 19 anos fora para a Europa tentar o futebol profissional e
sobrevivera um ano num time da segunda divisão da Suíça.
Numa das assembleias prévias para
discutir a escalação e a tática do jogo de estreia, Gui mostrou o seu outro
talento, como contador de histórias (era repórter especial da Play Boy): “Não
me venham com táticas nem estratégias. Se pudermos ganhar o jogo, tudo bem, mas
acreditem que estou aqui realizando um sonho de criança”. E calou a todos
falando por cada um: “Quando eu era criança, eu me imaginava jogando bola num
estádio qualquer com a camiseta da Seleção Brasileira.” E fechou assim: “Me
deixem continuar sonhando”.
Entre uma partida e outra, os
jornalistas foram levados a conhecer as principais cidades do país: Marrakesh,
Meknes, Fes, Casablanca e Rabat, a capital.
Segundo a versão oficial, em duas
dessas cidades já havia estádios para 100 mil pessoas, coisa que ninguém chegou
a conferir, pois tanto a viagem como o torneio e tudo o mais embalavam os
convidados num clima surrealismo.
Acreditava quem quisesse,
iludia-se quem pudesse.
Essa história faz parte de uma
época em que mal começava a germinar a semente do narcofutebol, com essas
transações milionárias que agora dominam os bastidores do esporte.
No Marrocos daquele final dos anos 1980,
parecia prevalecer ainda o amor ao esporte.
Jogava-se pela gana de jogar.
Todos os participantes do
torneio, desde os organizadores até os “atletas”, estavam ali para brincar, sem
saber que dali por diante os interesses mercantis começariam a arruinar o
futebol.
O Marrocos perdeu de goleada para
os EUA na disputa para sediar a Copa do Mundo de 1994.
Agora esse país tropical, que está para a
África como o Peru está para a América do Sul, conseguiu a escalação como sede
do Mundial de Clubes de 2013 e 2014.
Quanto lhe custou, quanto lhe
custará essa indicação?
Uma grana pesada, com certeza.
É possível que alguns membros da
delegação brasileira tenham uma noção dos valores em jogo.
Não me surpreenderia se o próprio
Raul Plassmann, que trabalhou para a empresa aérea do Rei do Marrocos, soubesse
detalhes das transações entre a FIFA e Rabat.
Alô, Raul: vai que essa bola é
sua!
* Seleção Brasileira de
Jornalistas que foi ao Marrocos em julho de 1987
AM – Deocleciano de Souza
CE – José Paulo de Araújo
DF – Marcos Lisboa e Hamilton
ES – Jésus Miguez
MG – Manoel Guimarães, Luiz
“Peninha” Bernardes (com Leonor) e Humberto (Juiz de Fora)
RJ – Octávio Costa, Wilson Timóteo
(com Vilma) e Raul Plassmann
RN – Madson Fernandes
RS – Luiz Armando Vaz
SP – Edgar Alves, Guilherme Cunha
Pinto e Geraldo Hasse.
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