Imagem: Autor Desconhecido
Há 101 anos algo milagroso
aconteceu na noite de Natal ao longo da Frente Ocidental.
Depois de meses de luta amarga,
os soldados de ambos os lados se reuniram em terra de ninguém em um show
espontâneo de paz e boa vontade.
Eis o que aconteceu naquele dia histórico
– e por que ele marcou o fim de uma era.
Em dezembro de 1914, a guerra
estava entrando em uma nova fase: um cerco prolongado acontecia em trincheiras
estáticas ao longo de uma frente de 750 km.
Durante os quatro meses
anteriores, os soldados estavam morrendo em um ritmo terrível, e não havia um fim
para a guerra à vista.
Mas, durante o Natal, as coisas
de repente ficaram calmas, pelo menos por um tempo.
“Nós não atirar”
Na noite antes do Natal, um
capitão britânico servindo na Rue du Bois ouviu um sotaque estrangeiro do outro
lado do fosso, dizendo:
“Não atire depois da meia noite e nós também não o faremos” e, em
seguida: “Se você for inglês, saia e converse com a gente, nós não vamos
disparar”.
Tropas da Comunidade de Nações
que lutavam na Bélgica e França começaram a ouvir sons estranhos vindos de toda
a terra de ninguém; soldados alemães estavam cantando músicas natalinas.
As tropas aliadas aplaudiram e
comemoraram, gritando por mais.
Os soldados de ambos os lados
começaram a cantar em uníssono, trocando versos em línguas alternadas.
Escrevendo em seu diário na
época, o sargento major do regimento, George Beck, fez a seguinte observação:
“Alemães gritaram para nós e nos pediram para jogar futebol com eles, e
também para não disparar e eles iriam fazer o mesmo. Às 2h (do dia 25) uma
banda alemã passou ao longo de suas trincheiras tocando ‘Home Sweet Home’ e
‘God Save the King’, que soou grandioso e fez todo mundo pensar nas nossas
casas”.
No dia seguinte, alguns soldados
se atreveram a espiar além da terra de ninguém.
Pedaços de pinheiros podiam ser
vistos em observância da ocasião.
Alguns alemães, em um esforço
para levar a uma paz temporária, içaram lanternas acima das trincheiras.
Se tiros não fossem disparados,
seria tomado como um sinal de trégua.
Em um ponto, um alemão foi ouvido
gritando:
“Nós bom. Nós não atirar”.
Os grandalhões confraternizam
Então, com muito cuidado e grande
coragem, soldados alemães e aliados desarmados saíram de suas trincheiras para
ficar no topo de suas defesas.
Perto de Neuve Chapelle, um
soldado irlandês descaradamente atravessou a terra de ninguém onde foi recebido
não com fogo de metralhadora, mas com um charuto.
Seu ato de bravura inspirou
outros em sua tropa a fazer o mesmo.
Cenas semelhantes começaram a se
repetir em outros lugares, com soldados caminhando em direção a trincheira do
outro, ou simplesmente se encontrando no meio caminho.
E quando eles se encontraram, os
militares trocaram saudações de Natal da melhor forma que podiam.
Eles começaram a dar presentes
uns aos outros sob a forma de lembranças, cigarros e alimentos como carne,
vinho, conhaque, pão preto, biscoitos, presunto e até mesmo de barris de
cerveja.
Eles mostraram fotografias da
família e entes queridos que estavam em casa.
Alguns soldados até começaram a
jogar futebol com bolas improvisadas.
Notavelmente, cenas semelhantes
ocorreram em dezenas de pontos distintos desde o Mar do Norte até a fronteira
com a Suíça.
Os brigadistas do coronel George
Laurie, depois de saberem o que estava acontecendo, o avisaram do ocorrido.
“Acredita-se possível que inimigo possa estar contemplando um ataque
durante o Natal ou Ano Novo. Vigilância especial será mantida durante este
período”.
No entanto, o coronel Laurie deu
ordens para não atirar no inimigo no dia seguinte, a não ser que eles atirassem
primeiro.
Às 20h30 da véspera de Natal, ele
sinalizou para o quartel-general da brigada.
“Os alemães têm iluminado suas trincheiras, estão cantando canções e
nos desejando um Feliz Natal. Elogios estão sendo trocados, no entanto, estou
tomando todas as precauções militares”.
Ele ainda acrescentou que nenhum
tiro havia sido disparado desde 20h.
Laurie passou a descrever como os
soldados de ambos os lados estavam se misturando.
Os alemães, escreveu ele, eram “homens finos, limpos e bem vestidos. Eles
nos deram bonés, crachás de capacete e uma caixa de charutos. Um deles afirmou
que a guerra terminaria em três semanas, já que haviam derrotado a Rússia!”.
O quartel-general da brigada
respondeu às 00h35 do Dia de Natal dizendo que comunicação alguma, de qualquer
tipo, poderia ser realizada com o inimigo e que eles não estavam autorizados a
se aproximar das trincheiras sob pena da abertura de fogo.
Mais tarde, o coronel relembrou:
“Você não tem ideia do quão agradável tudo parecia com nenhuma bala de
fuzil ou cartuchos voando ao nosso redor”.
Em seu diário, o tenente Kurt
Zehmisch, do regimento Saxony 134, escreveu que “Nenhum tiro foi disparado”.
Após o evento, os soldados
estavam ansiosos para compartilhar o que tinha acontecido com seus entes
queridos.
Henry Williamson, na época um
cabo de 19 anos da London Rifle Brigade que sobreviveu à guerra para se tornar
um escritor, enviou uma carta do front para a mãe dele.
“Na minha boca está um cachimbo presentado pela princesa Maria. No
cachimbo tem tabaco alemão. Ha ha, você diz, (isso) é de um prisioneiro ou foi
encontrado em uma trincheira. Ah, não! (O cachimbo) veio de um soldado alemão.
Sim, um soldado alemão vivo em sua própria trincheira. Maravilhoso, não é? ”.
A trégua também permitiu que as
tropas de ambos os lados recolhessem e enterrassem seus mortos, o que também
não era pouca coisa.
Era cruel para um militar saber
que os restos mortais de companheiros ainda estavam a céu aberto.
Bolsões de resistência
Mas a trégua não foi honrada em
todos os lugares.
Em um incidente que só veio à
tona recentemente, três soldados – dois britânicos e um alemão – foram mortos,
apesar da paz temporária.
Ao contrário da maioria dos
relatos, nem todos os setores ao longo da linha de frente que separava as
tropas aliadas dos alemães estavam exalando calma e tranquilidade.
Pelo menos 250 soldados morreram
no dia de Natal, incluindo 149 soldados da Comunidade de Nações, embora a
maioria deles tenha sucumbido a ferimentos infligidos anteriormente.
No caso dos três soldados mortos,
tudo começou de madrugada, quando militares britânicos da Brigada de Guardas
atiraram em uma lanterna alemã enquanto ela estava sendo içada – uma declaração
de recusa em reconhecer a trégua proposta.
“Havia muita comoção acontecendo na linha de frente alemã, a cerca de
140 metros de distância. Depois de alguns momentos, havia objetos acesos acima
do parapeito alemão, que pareciam lanternas chinesas para nós”, conta o
cabo Clifford Lane, do regimento H Company Hertfordshire.
“Os alemães estavam gritando para a nossa trincheira. Recebemos ordem
para abrir fogo rápido, o que fizemos. Os alemães não responderam ao nosso fogo
e continuaram com suas celebrações”.
O britânico conta que a Brigada
de Guardas era a mais disciplinada do exército e por isso atendeu às ordens
superiores e ignorou a trégua.
“Eu me arrependi muito depois, porque teria sido uma boa experiência”.
Assim, com alguns trechos da
frente em um estado de trégua temporária e outros não, os soldados foram colocados
em grande perigo.
No setor de Lane, um
franco-atirador alemão acertou Percy Huggins, que estava servindo de sentinela
auditivo em um posto avançado a apenas 20 metros do lado inimigo.
Em retaliação, o sargento Tom
Gregory assumiu o cargo, conseguiu localizar o atirador, e o matou.
Alguns momentos depois, enquanto
procurava por mais snipers, ele próprio foi baleado e morto por um segundo
atirador alemão.
Curiosamente, o evento inspirou
os britânicos a “estudar a arte do sniping”.
O último suspiro de uma era morta
Assim foi a Trégua de Natal de
1914.
Em alguns lugares, ela continuou
por mais de um dia.
Mas quando generais souberam do
acontecido, garantiram que isso nunca ocorreria novamente.
E, apesar de tentativas
esporádicas em anos posteriores, ela nunca se repetiu.
Um século depois, é fácil
descartar todas as lembranças e homenagens como sendo excessivamente
sentimentais e piegas.
O que é muitas vezes esquecido,
no entanto, é o que a paz temporária representava no esquema maior das coisas.
Há uma razão muito boa para uma
trégua nunca mais ter acontecido nesta guerra e nas guerras subsequentes – e
muito disso tem a ver com a natureza mutável da estratégia militar, o novo
papel dos soldados e como eles se engajam com o inimigo e os altos riscos
envolvidos nas nações industrializadas em uma guerra sem compromisso.
Os políticos e líderes militares
já não conseguiam mais tolerar tal confraternização em face a exércitos de
massa existentes em uma época de fervor revolucionário.
Era uma questão de controle.
A Trégua de Natal de 1914 também
pode ser vista como o último suspiro do romântico século XIX, o gesto final de
uma era que contou com soldados “cavalheirescos” e heróis galantes que podiam
enfrentar seus adversários cara-a-cara.
Os soldados profissionais da
Primeira Guerra Mundial foram substituídos por recrutas sem nenhum senso de
tradição militar.
Campos de batalha, assim como as
fábricas, tinham se transformado em locais de trabalho industrializados.
Guerras não eram mais definidas
por movimento e batalhas decisivas.
Em vez disso, se tornaram uma
batalha de atrito na qual exércitos de milhões eram lançados contra outros
exércitos de milhões.
Enquanto isso, nos lares dos
militares, multidões se reuniam para fornecer apoio material com sua força
industrial.
Finalmente, os soldados não
tinham realmente aprendido a odiar uns aos outros.
Muitos deles viam-se como peões
em um jogo que não entendiam, lutando contra um inimigo por razões que não eram
imediatamente óbvias.
A trégua de 1914 aconteceu apenas
alguns meses após o início das hostilidades.
Muitas dessas tropas eram verdes,
ainda não tinham sido ensanguentadas pelos horrores que estavam por vir.
No Museu Imperial da Guerra, em
Londres, historiadores como Alan Wakefield dizem que a amargura e o ódio ainda
não tinham tomado conta de ninguém.
“A guerra ainda não tinha ficado, como se diz, tão suja nessa fase”,
disse Wakefield. “Foi em 1915, na verdade, que chegaram coisas como gás
venenoso. Dirigíveis Zeppelin bombardearam Londres, alemães afundaram o navio
Lusitânia com vítimas civis. E a máquina de propaganda ainda não se alimentava
com isso e criava esse tipo de ódio entre as duas forças”.
A guerra começou a se tornar uma
atividade vingativa e altamente impessoal muito depois do Natal.
E, ao contrário da Segunda Guerra
Mundial, em que os fatores ideológicos eram evidentes para quase todo mundo, a
Grande Guerra foi para muitos um conflito estranho, um desperdício, algo sem
sentido.
O início da Primeira Guerra
Mundial marcou o verdadeiro início de uma nova era, mas foi a Trégua de Natal
de 1914 que puxou a cortina final sobre a que estava morrendo.
Fonte: Hype Science