Imagem: Autor Desconhecido
Meu nome é John Langenus.
Nasci em Berchem, na Bélgica, no
distante ano de 1891.
Quando eu era criança, adorava
futebol.
Mas a bola não tinha nenhuma
simpatia por mim.
Batia-me na canela, fugia dos
meus pés, acertava o meu nariz.
Resultado: troquei a bola pelo
apito. Virei juiz de jogos escolares.
Chegava a fazer três partidas por
domingo.
E fui aprendendo os segredos da
coisa.
Mas não passei no meu primeiro
teste para ser árbitro oficial.
Os dois ingleses que me aplicaram
o teste, juízes de juízes, me perguntaram:
- O que você deve fazer quando a bola bater num avião voando baixo?
Eu não soube responder e fui
reprovado.
Três meses depois fiz novamente a
prova e me fizeram perguntas decentes.
Aí passei.
Tive um único apito na vida.
Custou-me trinta centavos.
Levei-o comigo quando fui chamado
para apitar a Copa do Mundo de 1930.
A viagem peguei um trem de Antuérpia
até Paris, depois outro até Barcelona e lá embarquei no Conte Verde, um navio
luxuoso que também levaria as delegações da Romênia, da França, da Bélgica e da
Fifa.
O Jules Rimet, por sinal, não
largava o troféu que entregaria ao país vencedor.
Naquele tempo, a estatueta ainda
se chamava Vitória.
Foram catorze dias muito
divertidos até o Rio de Janeiro.
Cantamos, bebemos e rimos muito.
Os romenos eram os mais animados.
Até fizeram um número de balé.
No Rio demos uma carona para a seleção do
Brasil e para o Gilberto Rego, que seria o juiz brasileiro daquela Copa.
Ficamos muito amigos.
Quando paramos em Santos, ele até
me comprou um cacho de bananas.
Deve ter custado uma fortuna.
Gilberto me explicou que naquela
cidade pegaríamos o único jogador paulista da seleção brasileira, o Araken
Patuska.
A seleção só tinha jogadores
cariocas, pois os dirigentes de São Paulo, como não foram chamados para compor
a delegação, não aceitaram ceder seus jogadores.
Só o Araken, que estava sem
clube, é que pode ir.
Meu amigo explicou que aquilo era
uma pena, pois o goleiro Athié e o atacante Feitiço certamente seriam
titulares.
E um tal de Friedenreich, mesmo
com 38 anos, ainda devia ser o melhor jogador do mundo.
Finalmente, no dia 4 de julho
chegamos a Montevidéu.
Dez mil uruguaios nos esperavam
no porto.
Que festa!
Pontapé inicial Só treze equipes
aceitaram o convite para participar da Copa.
Assim formaram dois grupos com
quatro equipes e dois com três.
Só os primeiros colocados
passariam às semifinais.
O jogo de estreia foi França x
México.
E meu amigo Gilberto atuou como
um dos bandeirinhas.
Nevava quando o Lucien Laurent
fez o primeiro gol das Copas do Mundo.
Foi um belo voleio.
Ele nem sabia que estava entrando
para a história.
No dia seguinte, eu e Gilberto
assistimos ao jogo entre Iugoslávia e Brasil. 2 a 1.
O Brasil parecia intimidado.
Só Fausto e Preguinho mostravam
alguma atitude.
Aliás, o Preguinho fez o primeiro
gol do Brasil em Copas do Mundo.
O Gilberto me contou que o garoto
era campeão em oito esportes: futebol, natação, remo, polo aquático, saltos
ornamentais, atletismo, basquete e vôlei.
Ah, que inveja os juízes têm dos
atletas...
Logo eu apitaria meu primeiro
jogo naquela Copa: Uruguai x Peru.
Coloquei minhas calças bufantes,
minhas meias longas, uma camisa social branca, minha gravata e, é claro, meu
paletó.
Elegância é fundamental.
Foi uma partida nervosa, que o
time da casa acabou vencendo por 1 a 0, marcando só no segundo tempo, com
Héctor Manco Castro.
Depois assisti com o Gilberto ao
segundo jogo do Brasil.
A seleção estava mais solta e
ganhou de 4 a 0 da Bolívia, gols de Moderato e Preguinho.
Mesmo assim, como a Iugoslávia
havia vencido a Bolívia uns dias antes, o Brasil estava fora do campeonato.
- Talvez esse negócio de Copa do Mundo não seja para nós - disse o
Gilberto, conformado.
Fui escalado como juiz no jogo
entre Argentina e Chile.
Quem vencesse iria à semifinal.
Desconfio que estes países não se
dão muito bem, porque houve uma tremenda briga entre os atletas.
Normalmente eu expulsaria um
monte de cada lado, mas as autoridades pediram e fui condescendente.
A Argentina venceu por 3 a 1 e
foi à semifinal contra os Estados Unidos.
Também apitei este jogo.
Logo aos dez minutos, um
norte-americano se contundiu.
Não havia substituição e o time
ficou só com dez jogadores.
Aí foi um passeio: 6 a 1 para a
Argentina.
Nesta partida houve um fato
curioso: depois que marquei uma falta, o médico norte-americano entrou em campo
para tirar satisfação.
Ao chegar perto, intimidado pelo
meu um metro e noventa, ele desistiu de brigar e apenas atirou sua maleta no
chão com raiva.
Todos os frascos se quebraram,
inclusive um de clorofórmio.
O sujeito desmaiou e teve que ser
levado de maca.
Ou seja, o médico é que precisou
de atendimento médico.
A outra semifinal foi entre
Uruguai e Iugoslávia.
O juiz foi o Gilberto Rego.
E o placar também foi 6 a 1.
A decisão seria entre Uruguai e
Argentina.
Um jogo de sair faísca.
Estava passeando em Buenos Aires
quando me deram a notícia: eu tinha sido escolhido para apitar a partida decisiva
e deveria retornar imediatamente.
Não mesmo!
Aquele seria um jogo de vida ou
morte.
E a morte poderia ser minha.
Então fiz três exigências para
entrar na arena.
Queria um seguro de vida para mim
e para os meus dois assistentes.
Uma escolta policial deveria me
levar até o porto depois do jogo.
E o navio Duílio, que partiria às
15h00 para a Europa, deveria me esperar, pois o jogo só terminaria às 17h00.
Só quando eles me garantiram que
as três exigências seriam cumpridas é que atravessei o Rio da Prata de volta
para o Uruguai.
O barco estava repleto de
argentinos.
Foi uma invasão.
Muitas armas foram apreendidas na
alfândega e houve várias brigas entre as torcidas nas praças de Montevidéu.
Viver é perigoso.
Ainda mais para um juiz de
futebol.
Quando entrei no Centenário, meu
queixo quase caiu.
Nunca tinha visto um estádio tão
cheio.
Pensei que ele se chamava
Centenário porque o país festejava o centenário de sua constituição.
Mas acho que era porque cabiam
cem mil pessoas.
Antes de apitar o início do jogo
já surgiu o primeiro problema: os argentinos queriam a bola argentina, os
uruguaios só aceitavam a uruguaia.
Apelei para a diplomacia.
Usaríamos uma bola no primeiro
tempo e a outra no segundo.
Começou a partida.
Os uruguaios marcaram logo aos
12’, com Dorado.
Oito minutos depois, Peucelle
empatou.
E aos 37’, Stábile, o artilheiro
do campeonato, virou o jogo: Argentina 2 a 1.
Neste momento ouvimos um tiro na
arquibancada.
Acho que foi de comemoração, mas
fiquei assustado do mesmo jeito.
Na etapa final, os uruguaios
voltaram enlouquecidos.
Logo aos 12’ igualaram a partida,
com Cea.
E, aos 23’, num chute de fora da
área, o grande Iriarte revirou o placar: 3 a 2 para o Uruguai.
Foi a vez dos argentinos
atacarem.
Houve uma chuva de cruzamentos,
chutes batendo nos beques, bolas na trave e o guardião Ballestrero fazendo
milagres.
O empate parecia inevitável.
Mas, num contra-ataque, o pequeno
Manco Castro subiu como se tivesse molas nos pés e deu uma cabeçada certeira: 4
a 2.
Os argentinos alegaram toque de
mão, mas como Manco era maneta, fiz-me de surdo.
Alguns minutos depois soprei o
apito final.
O Uruguai era o primeiro campeão
do mundo.
A festa no estádio foi imensa.
Mas nem fiquei para ver.
Saí correndo para o porto.
Para minha surpresa, não havia
cem policias para minha escolta.
Só um civil.
Mesmo assim, chegamos sãos e
salvos.
- Já podemos partir – falei ao capitão.
- Não podemos, não – ele me respondeu.
– O nevoeiro está muito forte. Só amanhã.
- Teremos que ficar aqui?
- E se uma horda de argentinos atacar o navio?
Ele deu de ombros.
E eu passei a noite escondido no
camarote.
Apitar é perigoso.
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