terça-feira, fevereiro 23, 2016

A ilusão de que o futebol é repleto de ricos...

Que riqueza?

Quatro em cada cinco jogadores de futebol no Brasil ganham até R$ 1.000

Salários acima de R$ 50.000 existem só para 0,8% – no país do futebol, atletas ganham menos do que serventes de obras, catadores de lixo e tratadores de porcos

Por Rodrigo Capelo

Barcelona no ataque, três contra dois.

O espanhol Pedro domina na meia lua da grande área da Juventus e toca para Neymar.

Toque de esquerda para ajeitar a bola, chute com a mesma perna no contrapé do veterano Buffon.

O placar em 3 a 1, com o gol nos acréscimos, dá ao Barcelona o quinto título da Liga dos Campeões.

É a consagração do brasileiro, artilheiro da competição ao lado de Messi e Cristiano Ronaldo, com quem formaria mais para frente, em terceiro na Bola de Ouro, o trio de melhores jogadores do mundo em 2015.

A rápida ascensão foi para lá de lucrativa.

Aos 24 anos, Neymar ganha do clube só em salários, por mês, algo em torno de € 900 mil.

São R$ 4 milhões no câmbio atual.

Fora outros milhões em acordos publicitários que mais do que dobram a remuneração.

Mas esta não é uma reportagem sobre Neymar.

Esta é a história da fábrica de ilusões do futebol brasileiro que se inspira em figuras como ele.

Jogador de futebol “de verdade” ganha menos do que servente de obras.

Não é metáfora, nem exagero.

A diretoria de registro e transferência da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) modernizou sistemas e pôde, pela primeira vez, diagnosticar com mais precisão o estado de saúde do futebol brasileiro.

E ele está doente.

Ao todo, há registrados 28.203 atletas profissionais no Brasil.

Deles, 23.238 ganhavam até R$ 1.000,00 mensais em 2015.

O servente, segundo o Ministério do Trabalho, teve salário médio inicial de R$ 1.000,17.

Não só ele.

Ganham mais do que 82,4% dos jogadores de futebol brasileiros também o ascensorista, o catador de material reciclável, o chapeleiro de senhoras, o garçom e o tratador de porcos. 

Há, claro, quem ganhe mais do que o diretor de produtos bancários, profissional com salário médio inicial mais alto do país segundo o ministério, que chega à empresa com R$ 30.394,85 mensais.

Existem 226 jogadores de futebol em solo brasileiro com contracheques acima R$ 50.000,01.

Ora, ora, então esses atletas faturam pelo menos o dobro do que o banqueiro, provavelmente pós-graduado e com currículo de três páginas, às vezes sem nem terem terminado o ensino médio.

É verdade.

Só que eles representam 0,8% de todos os profissionais desta modalidade.

São a exceção.

Só um em cada centena ganha efetivamente mais do que um banqueiro.

Na verdade, você acha que futebol paga salários obscenos porque só esses jogadores chegam à mídia – só jogos deles em grandes clubes são televisionados, só eles aparecem em programas, só fofocas sobre carrões, mulheres e “parças” deles ganham repercussão.

A desigualdade entre a elite e a larga base da pirâmide também existe em outros países.

Na Inglaterra, números da Associação de Futebolistas Profissionais (PFA, em inglês) obtidos pela Sporting Intelligence mostram que, em 2009/2010, um jogador da Premier League, a primeira divisão, ganhava média de £ 96.863 por mês.

Um da quarta divisão, £ 3.237 mensais, ou 3,3% do que fatura o colega mais rico.

A razão é a mesma: no Brasil e na Inglaterra os clubes do topo dispararam em arrecadação depois que valorizaram contratos de televisão e patrocínio, reformaram estádios e criaram programas de associação.

Os times de baixo continuam sem ter acesso a essas fontes de receita.

Os mercados se comportam da mesma maneira.

O que nos difere é que os pobres do Brasil são mais pobres do que os da Inglaterra.

E, também, que os britânicos, divididos em um sistema de ligas que passa da décima divisão, jogam o ano todo.
  
A realidade do jogador invisível piora consideravelmente quando se acrescenta outro dado da CBF sobre um termo que assusta qualquer brasileiro: desemprego.

Dos 28.203 atletas profissionais que tinham contrato assinado em 2015, somente 11.571 chegaram a janeiro de 2016 com contrato ativo.

Quer dizer que 59% dos jogadores, seis em cada dez, ficaram desempregados no decorrer da temporada.

A taxa de desemprego para todo o país, que bota medo no governo de Dilma Rousseff, está na casa dos 9%.

Como tanta gente pôde ficar sem clube em tão pouco tempo?

Houve 7.973 rescisões de contratos, equivalentes a 48% de todos os jogadores que perderam o emprego na temporada.

Outros 52% são de pessoas cujos contratos foram feitos para acabar antes do fim do ano mesmo.

Aí entra uma das justificativas para salário baixo e desemprego alto: falta calendário.

A maioria dos clubes contrata em dezembro, funciona de janeiro a abril, durante campeonatos estaduais, e fecha as portas durante todo o restante da temporada.

Se não tem jogo, não entra dinheiro, e aí não tem jeito.

Todo mundo vai para a rua se aventurar em outras profissões para botar comida na mesa.

A maioria daqueles 16.632 jogadores de futebol que perderam o emprego no decorrer de 2015 tentou encontrar trabalho compatível com seu nível de instrução.

Talvez alguns tenham virado serventes de obras, catadores de materiais recicláveis e garçons, profissões que pagam tanto quanto o futebol, mas não têm o mesmo apelo emocional na cabeça do atleta.

Por que alguém sonha em ser jogador de futebol no Brasil?

Desinformação.

Reprodução de clichês.

A ideia de virar um Neymar e enriquecer da noite para o dia, estatisticamente restrita a 0,8% dos jogadores brasileiros, faz com insistam na ilusão do futebol.

Um comentário:

Glauberto Leilson disse...

Fernando, o que vou comentar talvez não mude a análise que está posta. Claro que salários milionários ficaram para poucos jogadores. Por outro lado, a análise baseada em contratos registrados na CBF também é imprecisa. Muita coisa é paga "por fora" a começas pelos próprios salários, mas também premiações, direito de imagem (que é para poucos, eu sei) e os tais "bichos". Também há o interesse dos clubes de "mascarar" reais salários para recolher menos INSS e tributos.