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“Muitos jogadores de futebol consagrados já foram vítimas de abuso
sexual”
Ex-goleiro sofreu assédio nas categorias de base e hoje milita pela
proteção de direitos dos jovens atletas
Por Breiller Pire de Brasília para o El País
Ex-goleiro sofreu assédio nas categorias de base e hoje milita pela
proteção de direitos dos jovens atletas
Nunca deixou de martelar em seu
peito.
Ele sofreu várias vezes com o
assédio sexual de técnicos, preparadores e dirigentes ao longo de sua
trajetória nas categorias de base.
Tinha apenas 14 anos na primeira
investida.
O ex-goleiro revela que o suporte
da família foi fundamental para que as abordagens não evoluíssem para abusos.
No entanto, outros colegas não
tiveram a mesma sorte.
O convívio com essa realidade, de
crianças e adolescentes expostos a diversas formas de violação de direitos em
clubes de futebol, fez com que rompesse o silêncio para ajudar a proteger
jovens atletas que sonham ganhar a vida nos gramados.
Em parceria com o Sindicato de
Atletas, Alê tem rodado pelo Estado de São Paulo ministrando palestras
educativas.
Sua missão é alertar pais e
jogadores para o perigo que ronda as categorias de base.
E, acima de tudo, impedir que o
abuso sexual continue sendo o grande tabu do futebol.
P. Você escreveu o livro Futebol: sonho ou ilusão?, em que dedica
um capítulo à questão do abuso sexual no futebol.
Chegou a ser abordado por
abusadores durante sua iniciação em categorias de base?
R. Eu fui assediado durante 10 anos da minha carreira.
Não cheguei a ser abusado.
Venho de uma família de classe
média, que sempre foi muito presente e me aconselhou desde pequeno para evitar
esse tipo de contato com adultos.
Mas isso é tão comum que os
jogadores comentam com frequência no vestiário.
Lamentavelmente, já é algo que
faz parte da cultura do futebol.
E, por isso mesmo, acaba sendo um
problema ainda mais difícil de se combater.
Crianças e adolescentes muitas
vezes sequer tomam consciência de que são abusados, não sabem que são vítimas
de um crime abominável.
As poucas denúncias que vêm à
tona acontecem depois de o garoto comentar sobre o abuso com um adulto alheio à
rotina do clube ou alguém da família.
Os abusadores se aproveitam do
sonho dos meninos para fazer com que se calem e, acima de tudo, entendam o
assédio ou o abuso como uma precondição para vingarem na carreira.
P. Quando e por que decidiu romper o silêncio?
R. Desde que parei de jogar, eu senti que precisava fazer algo para
contribuir com o futebol.
E colocar o dedo nessas feridas é
uma forma de sensibilizar as pessoas.
P. Como aborda o assunto diante de crianças e adolescentes?
R. Nas minhas palestras, eu tento explicar, em primeiro lugar, o
que é o abuso sexual. Como isso acontece no futebol e o que fazer para evitar.
Os jogadores hoje vivem numa redoma. Não é interessante para quem ganha
dinheiro com o futebol que os atletas tenham estudo e informação. É importante
que os clubes se comprometam com a educação dos jovens formados em suas
categorias de base. E, infelizmente, há poucos times que oferecem boas
condições para que o atleta em formação não abandone a escola.
P. Ainda existem muitos clubes que não atentaram para essa questão?
R. A maioria deles. Há dois meses, visitei um clube no interior de
São Paulo. O diretor me contou que os atletas, meninos que têm 13, 14 anos, são
abordados por homens que oferecem pizza, chuteira ou 50 reais em troca de um
programa sexual. Mesmo que não cometam diretamente as violações, os clubes não
sabem lidar com isso.
P. Nos últimos seis anos, foram registrados pelo menos 102 casos de
abuso sexual relacionados ao futebol...
R. Certamente, esse número deve ser bem maior. Assédio e abuso
sexual de crianças existiu no passado, existiu na minha época e continua
existindo no futebol. O pior é que está longe de acabar. Os jogadores têm medo
de denunciar. E os clubes são coniventes com abusadores e aliciadores. Quando
descobre um caso de abuso envolvendo um diretor ou treinador, o clube apenas
manda embora esse profissional, em vez de denunciá-lo às autoridades e discutir
o problema na mídia. Dirigentes temem que seus clubes fiquem marcados por isso.
O fato é que os jovens em categorias de base no Brasil estão largados. Salvo um
ou outro grande clube, que conta com o suporte de psicólogos, assistentes
sociais e pedagogos, a maioria das equipes descumpre direitos de crianças e
adolescentes, expondo-os não só ao assédio sexual, mas a vários outros tipos de
abuso, como trabalho infantil, violência física e psicológica. Em geral, clubes
tratam atletas como mercadoria. Para atingir o sonho de se tornar profissional,
há vários garotos dormindo em condições precárias nos alojamentos, se
prostituindo, submetidos a inúmeras violações. Essa é a realidade do futebol,
que precisa ser mais debatida, principalmente por atletas de grande
visibilidade.
P. Ouviu muitas histórias de jogadores ou colegas que foram vítimas
de abuso?
R. Muitos jogadores de futebol consagrados, inclusive de seleção
brasileira, já foram vítimas de abuso sexual. Quem convive no meio, sabe de
vários casos. Mas ninguém fala sobre isso. No dia em que um atleta de peso, um
ídolo de gerações, tocar nesse assunto, podemos ter a revelação de milhares de
jogadores e ex-jogadores que já sofreram com essa prática. Assim como aconteceu
na Inglaterra após um ex-jogador revelar os abusos que sofreu de um treinador
na infância. Duvido que haja um atleta que nunca tenha ao menos presenciado ou
ouvido falar de assédio e abuso sexual no futebol. É muito mais comum do que as
pessoas de fora do circuito imaginam.
“Em geral, clubes tratam atletas
como mercadoria e são coniventes com abusadores. Essa é a realidade do futebol”.
P. No seu caso, como aconteceu o assédio?
R. Comecei a sofrer assédio sexual mais forte quando fui jogar no
interior de São Paulo. Geralmente, a abordagem acontecia no alojamento por
parte treinadores, preparadores e dirigentes com atletas que vinham de outras
cidades. Mas também acontecia fora da concentração. A gente estava na boate,
por exemplo, e chegava alguém do clube dizendo que fulano de tal queria pagar
uma bebida, que o cara estava a fim de sair comigo e poderia dar uma força na
carreira. Eu sempre consegui me desvencilhar, mas convivi com outros jogadores
que cediam.
P. Uma espécie de aliciamento para programas sexuais?
R. Sim. Em alguns casos, a prática sexual era forçada. Em outros,
consentida. De qualquer forma, mesmo concordando, uma criança ou adolescente
não tem discernimento suficiente para medir o impacto futuro de uma decisão
como essa. A maioria que passa por esse processo de assédio e abuso acaba
levando um trauma enorme para o resto da vida. Isso talvez explique parte dos
episódios de depressão e alcoolismo vividos por muitos jogadores.
P. Tem esperança de que essa situação mude nos próximos anos?
R. Não vejo medidas sendo tomadas, muito menos uma evolução. Pelo
contrário. A CBF precisa agir. É o órgão que tem poder para viabilizar uma grande
campanha de conscientização sobre abuso sexual no futebol brasileiro. Não
podemos jogar a sujeira para debaixo do tapete.
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