segunda-feira, junho 01, 2020

Repórter de campo em campo...

Imagem: Ronaldo Kotscho/Revista Placar

Repórter de campo em campo

Em 1981, a Revista Placar inovou ao colocar um repórter no gramado entre atletas profissionais para contar com riqueza de detalhes a experiência de ser jogador de futebol por alguns momentos

Pedro Henrique Brandão Lopes/Universidade do Esporte
  
É inegável: quase todo brasileiro, em algum momento da vida, quis ser jogador de futebol.

Lá na infância, quando a bola era amiga inseparável, uma única vez que seja, o amigo ou amiga leitor(a) se imaginou com a camisa do clube de coração comemorando um gol com a torcida.

Esse fugaz desejo quando não realizado não faz do Brasil uma nação de frustrados.

Apesar de existir uma parcela da população frustrada por motivos que fogem a esfera esportiva, não somos 210 milhões de “ex-futuros jogadores”.

Há quem aponte o jornalismo esportivo como segunda opção para aqueles que não conseguiram realizar o sonho de ser craque.

Ingenuidade.

Evidentemente o tipo existe, mas está longe de ser predominante.

A velha discussão voltou ao centro do debate recentemente, em parte pela ausência de futebol por conta da pandemia do novo coronavírus, mas principalmente quando o influencer Fred, um dos astros do canal Desimpedidos, estreou uma série — meio em formato documental, meio reality show — , em que persegue seu antigo sonho de ser jogador profissional e se torna atleta do Magnus Futsal.

Muito alardeada como a primeira experiência do tipo no Brasil, a série é sucesso absoluto entre o imenso público fiel ao canal e simpático ao inegável carisma de Fred.

Porém, para qualquer coisa que digam ser pioneira no Brasil, acredite: alguém fez algo parecido antes.

Parafraseando Chacrinha: em entretenimento, nada se cria, tudo se copia.

Pois bem, no quesito inovação no jornalismo esportivo, no Brasil, nenhum período se aproxima da revolução que a década de 1980 representou.

Em 1982, a TV Globo “grampeou” o árbitro José Roberto Wright, no episódio que ficou conhecido como o “Watergate do futebol” e fez o Brasil conhecer os impropérios que um juiz de futebol dizia aos jogadores em campo.

Nada que assuste atualmente quem teve acesso a uma tal reunião ministerial, mas que há quase 40 anos, foi um escândalo.

Inaugurando essa tendência de ousadia jornalística, em dezembro de 1981, a revista Placar conseguiu acertar com a diretoria do São Paulo, algo impensável atualmente: colocou um repórter no gramado do Morumbi com a camisa do Tricolor durante uma partida do time profissional.

A missão: contar com riqueza de detalhes jamais experimentada na imprensa esportiva brasileira, a partir da ótica de quem vive a situação na pele, a experiência de ser jogador de futebol.

Charles Marzanasco Filho (foto) foi o repórter escolhido para a reportagem especial que incluía a participação no rachão antes da partida, ida ao estádio com a delegação, preparação no mesmo vestiário, tudo no padrão atleta.

Marzanasco era considerado o “craque das horas vagas” pelo desempenho nas peladas da imprensa.

Curiosamente, não era repórter da Placar, mas sim da revista Auto Esporte e tinha muito mais afinidade com a editoria de automobilismo, motivo pelo qual chegou a ser assessor de imprensa de Ayrton Senna, porém um problema de desmedido e incontrolável clubismo — digamos assim — , afastou o repórter escalado originalmente para a cobertura e entregou ao também tricolor Marzanasco a oportunidade única.

O jogo marcado para o dia 6 de dezembro de 1981 foi um amistoso entre São Paulo e um selecionado paulista com jogadores dos clubes da capital e do interior do estado.

Apesar de não ser uma partida oficial, havia resistência contra a participação de um jornalista num jogo de profissionais.

A Federação Paulista de Futebol (FPF) e Formiga, treinador são-paulino, não queriam permitir a entrada de Charles no gramado.

No rachão, inclusive, Formiga proibiu o repórter de treinar junto aos jogadores e Marzanasco acabou participando de um treinamento com outros profissionais de imprensa e dirigentes tricolores.

Jaime Franco, então diretor e homem forte no futebol do São Paulo, foi o responsável por amolecer Formiga e convencer a FPF que a ação seria uma justa homenagem à imprensa.

Enfim, na data marcada, trajado com o uniforme oficial do São Paulo, mesmo contra olhares atravessados dos delegados da federação, Charles subiu os degraus que dão acesso ao gramado do Morumbi de mãos dadas com Mário Sérgio.

Logo que surgiu entre os atletas, foi para o banco de reservas e por lá ficou durante quase toda a partida.

A reportagem de quatro páginas intitulada “Eu joguei na máquina Tricolor”, foi publicada na edição que chegou às bancas em 31 de dezembro de 1981 e é um relato em primeira pessoa sobre a experiência.

O repórter não escondeu seu sonho de infância de jogar no São Paulo.

Além disso, comentou como durante a semana que antecedeu a partida, confundiu sua ação como jornalista e a responsabilidade de reportar os fatos com a possibilidade de entrar em campo e ter que jogar bem.

Por isso, revelou o medo “de fazer um papelão” quando entrasse em campo e a “obrigação de pelo menos, tocar na bola”.

Quando o árbitro Dulcídio Wanderley Boschilia apitou para a bola rolar, com certa tranquilidade, o time tricolor abriu vantagem no placar e o repórter acreditou que sua entrada seria facilitada.

Porém, no início do segundo tempo, a Seleção Paulista conseguiu uma reação que em poucos minutos transformou a vantagem são-paulina de 3 a 1 em derrota de virada por 4 a 3.

Assim, Formiga começou a fazer as alterações na equipe e Marzanasco foi deixado no banco de reservas.

Por isso, grande parte da reportagem é feita a partir dos comentários feitos entre os suplentes sobre o que acontecia em campo.

Com o resultado praticamente garantido, os atletas apenas esperavam o apito final.

Marzanasco se viu sozinho no banco com Formiga, tomou coragem e pediu para entrar.

Aos 43 minutos, o treinador atendeu ao pedido e o repórter entrou com tempo apenas de retomar a bola de Éderson, volante adversário, e armar um contra-ataque com Tatu, que sofreu falta e após a cobrança, Dulcídio encerrou o amistoso.

O apito final foi um sinal de alívio para o repórter que afirmou: “finalmente, minha tensão terminava”. A entrada em campo, ainda que por apenas dois minutos, foi o suficiente para que no dia seguinte, a imprensa repercutisse o feito da revista Placar, com direito a nome de Marzanasco na escalação oficial.

As observações de Marzanasco são riquíssimas em detalhes saborosos como a confusão e desabafo do roupeiro tricolor que resistia à ideia de entregar o uniforme do clube ao jornalista ou na passagem em que escreve “no banco, eu só ouvia o Formiga xingar o juiz”.

Publicada há quase 40 anos, a reportagem preserva modernidade do ponto de vista jornalístico e é um raro relato dos bastidores do futebol daqueles tempos — bem menos sintético que o atual.

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