Imagem: Ronaldo Kotscho/Revista Placar
Repórter de
campo em campo
Em 1981, a
Revista Placar inovou ao colocar um repórter no gramado entre atletas
profissionais para contar com riqueza de detalhes a experiência de ser jogador
de futebol por alguns momentos
Pedro
Henrique Brandão Lopes/Universidade do Esporte
É inegável:
quase todo brasileiro, em algum momento da vida, quis ser jogador de futebol.
Lá na
infância, quando a bola era amiga inseparável, uma única vez que seja, o amigo
ou amiga leitor(a) se imaginou com a camisa do clube de coração comemorando um
gol com a torcida.
Esse fugaz
desejo quando não realizado não faz do Brasil uma nação de frustrados.
Apesar de
existir uma parcela da população frustrada por motivos que fogem a esfera
esportiva, não somos 210 milhões de “ex-futuros jogadores”.
Há quem
aponte o jornalismo esportivo como segunda opção para aqueles que não
conseguiram realizar o sonho de ser craque.
Ingenuidade.
Evidentemente
o tipo existe, mas está longe de ser predominante.
A velha
discussão voltou ao centro do debate recentemente, em parte pela ausência de
futebol por conta da pandemia do novo coronavírus, mas principalmente quando o
influencer Fred, um dos astros do canal Desimpedidos, estreou uma série — meio
em formato documental, meio reality show — , em que persegue seu antigo sonho
de ser jogador profissional e se torna atleta do Magnus Futsal.
Muito
alardeada como a primeira experiência do tipo no Brasil, a série é sucesso
absoluto entre o imenso público fiel ao canal e simpático ao inegável carisma
de Fred.
Porém, para
qualquer coisa que digam ser pioneira no Brasil, acredite: alguém fez algo
parecido antes.
Parafraseando
Chacrinha: em entretenimento, nada se cria, tudo se copia.
Pois bem, no
quesito inovação no jornalismo esportivo, no Brasil, nenhum período se aproxima
da revolução que a década de 1980 representou.
Em 1982, a TV
Globo “grampeou” o árbitro José Roberto Wright, no episódio que ficou conhecido
como o “Watergate do futebol” e fez o Brasil conhecer os impropérios que um
juiz de futebol dizia aos jogadores em campo.
Nada que
assuste atualmente quem teve acesso a uma tal reunião ministerial, mas que há
quase 40 anos, foi um escândalo.
Inaugurando
essa tendência de ousadia jornalística, em dezembro de 1981, a revista Placar
conseguiu acertar com a diretoria do São Paulo, algo impensável atualmente:
colocou um repórter no gramado do Morumbi com a camisa do Tricolor durante uma
partida do time profissional.
A missão:
contar com riqueza de detalhes jamais experimentada na imprensa esportiva
brasileira, a partir da ótica de quem vive a situação na pele, a experiência de
ser jogador de futebol.
Charles
Marzanasco Filho (foto) foi o repórter escolhido para a reportagem especial que
incluía a participação no rachão antes da partida, ida ao estádio com a
delegação, preparação no mesmo vestiário, tudo no padrão atleta.
Marzanasco
era considerado o “craque das horas vagas” pelo desempenho nas peladas da
imprensa.
Curiosamente,
não era repórter da Placar, mas sim da revista Auto Esporte e tinha muito mais
afinidade com a editoria de automobilismo, motivo pelo qual chegou a ser
assessor de imprensa de Ayrton Senna, porém um problema de desmedido e
incontrolável clubismo — digamos assim — , afastou o repórter escalado
originalmente para a cobertura e entregou ao também tricolor Marzanasco a
oportunidade única.
O jogo
marcado para o dia 6 de dezembro de 1981 foi um amistoso entre São Paulo e um
selecionado paulista com jogadores dos clubes da capital e do interior do
estado.
Apesar de não
ser uma partida oficial, havia resistência contra a participação de um
jornalista num jogo de profissionais.
A Federação
Paulista de Futebol (FPF) e Formiga, treinador são-paulino, não queriam
permitir a entrada de Charles no gramado.
No rachão,
inclusive, Formiga proibiu o repórter de treinar junto aos jogadores e
Marzanasco acabou participando de um treinamento com outros profissionais de
imprensa e dirigentes tricolores.
Jaime Franco,
então diretor e homem forte no futebol do São Paulo, foi o responsável por
amolecer Formiga e convencer a FPF que a ação seria uma justa homenagem à
imprensa.
Enfim, na
data marcada, trajado com o uniforme oficial do São Paulo, mesmo contra olhares
atravessados dos delegados da federação, Charles subiu os degraus que dão
acesso ao gramado do Morumbi de mãos dadas com Mário Sérgio.
Logo que
surgiu entre os atletas, foi para o banco de reservas e por lá ficou durante
quase toda a partida.
A reportagem
de quatro páginas intitulada “Eu joguei na máquina Tricolor”, foi publicada na
edição que chegou às bancas em 31 de dezembro de 1981 e é um relato em primeira
pessoa sobre a experiência.
O repórter
não escondeu seu sonho de infância de jogar no São Paulo.
Além disso,
comentou como durante a semana que antecedeu a partida, confundiu sua ação como
jornalista e a responsabilidade de reportar os fatos com a possibilidade de
entrar em campo e ter que jogar bem.
Por isso,
revelou o medo “de fazer um papelão” quando entrasse em campo e a “obrigação de
pelo menos, tocar na bola”.
Quando o
árbitro Dulcídio Wanderley Boschilia apitou para a bola rolar, com certa
tranquilidade, o time tricolor abriu vantagem no placar e o repórter acreditou
que sua entrada seria facilitada.
Porém, no
início do segundo tempo, a Seleção Paulista conseguiu uma reação que em poucos
minutos transformou a vantagem são-paulina de 3 a 1 em derrota de virada por 4
a 3.
Assim,
Formiga começou a fazer as alterações na equipe e Marzanasco foi deixado no
banco de reservas.
Por isso, grande
parte da reportagem é feita a partir dos comentários feitos entre os suplentes
sobre o que acontecia em campo.
Com o
resultado praticamente garantido, os atletas apenas esperavam o apito final.
Marzanasco se
viu sozinho no banco com Formiga, tomou coragem e pediu para entrar.
Aos 43
minutos, o treinador atendeu ao pedido e o repórter entrou com tempo apenas de
retomar a bola de Éderson, volante adversário, e armar um contra-ataque com
Tatu, que sofreu falta e após a cobrança, Dulcídio encerrou o amistoso.
O apito final
foi um sinal de alívio para o repórter que afirmou: “finalmente, minha tensão
terminava”. A entrada em campo, ainda que por apenas dois minutos, foi o
suficiente para que no dia seguinte, a imprensa repercutisse o feito da revista
Placar, com direito a nome de Marzanasco na escalação oficial.
As
observações de Marzanasco são riquíssimas em detalhes saborosos como a confusão
e desabafo do roupeiro tricolor que resistia à ideia de entregar o uniforme do
clube ao jornalista ou na passagem em que escreve “no banco, eu só ouvia o
Formiga xingar o juiz”.
Publicada há
quase 40 anos, a reportagem preserva modernidade do ponto de vista jornalístico
e é um raro relato dos bastidores do futebol daqueles tempos — bem menos
sintético que o atual.
Nenhum comentário:
Postar um comentário