O time de Neném Prancha
João Saldanha
Já faz muito tempo, acho que
durante a guerra, os jogadores do Posto 4 FC, campeoníssimo da praia, dirigido
pelo "Trenier" mais famoso da Costa do Atlântico, Neném Pé de
Prancha, tinham resolvido dar uma festa de fim de ano, na garagem da casa de um
tio do Renato Estelita.
O Lá Vai Bola FC aderiu ao baile e compraram três
barris de chope.
Eu não topei e disse na esquina
do Café do Baltazar:
"Não vou. Na festa do ano passado, na garagem do Pé
de Chumbo, quebraram tudo e até hoje o clube não pagou a cristaleira da avó
dele que estava guardada lá. Não vou mesmo. Chega de encrenca."
Meu irmão Aristides, o Hélio
Caveira-de-Burro e o Orlando Cuíca me acompanharam na ideia de não ir ao baile
e fomos tomar um chope, sossegados, num bar vazio, na esquina da Avenida
Atlântica com Rua Constante Ramos.
A noite estava boa e o papo também.
Mais
tarde, passou por ali o Jaime Botina e disse: "Caí fora do baile. Tem
gente demais e muito nego bêbado. Vai dar galho."
E eu emendei:
"Não
disse?"
Lá pelas duas horas da manhã,
parou um táxi daqueles grandes e saltou o doutor A. Coruja, esfregando os
óculos, nervoso.
O doutor Coruja era um impetuoso lateral direito.
Só dava bico
na bola de borracha e Neném Prancha decretou:
"Só joga se cortar as
unhas. Uma bola está custando cinco pratas."
Seu controle de bola não era
dos melhores, mas quebrava o galho na lateral direita.
O galho ou o
ponta-esquerda adversário.
Mas chegou e foi falando
incisivo:
"Se vocês são machos e meus amigos, têm de ir lá comigo. Fui
desacatado mas eram muitos."
E foi logo dando ordens:
"Entrem aqui no
táxi e vamos lá."
Lá aonde?" disse o Hélio.
Coruja explicou:
"E na Rua Joaquim Silva. A mulher me desacatou, ofendeu
minha mãe e não pude reagir porque ela estava com três caras na mesa. Vocês têm
de ir comigo ou não são meus amigos."
Repetiu isto umas cinco vezes e
completou:
"Como é, poetas? Vamos ou não vamos? Vocês agora deram para
medrar?"
Eu cochichei para o Cuíca:
"O Coruja está de porre. Não vou me meter nisto."
O Cuíca respondeu:
"Ele vai chatear a gente o ano inteiro por causa disso. O Coruja quando
bebe é assim. Fica remoendo os troços. Olha, ele veio de lá até aqui e gastou
meia hora. Para voltar, outra meia hora. Os caras já não estão mais lá, a
pensão já deve estar fechada e a mulher dormindo com alguém."
E virando-se
para o doutor Coruja:
"Tá bem, nós vamos, mas vem tomar um chopinho com a
gente."
Coruja topou e mandou o português do táxi esperar.
Tomamos o chope bem devagarinho e
fomos, ainda devagar, para a Rua Joaquim Silva.
O táxi "disse" que
não esperava mais e foi embora.
Subimos a escada de madeira, comprida e
estreitinha, e demos numa sala de uns três metros por quatro, se tanto.
Quatro
mesinhas, só duas ocupadas por fregueses, e, nas outras, umas três mulheres com
cara de sono.
O diabo é que numa das mesas estava a tal mulher papeando com os
três caras.
Doutor Coruja partiu direto e foi dizendo:
"Repete agora, sua
vaca."
Os homens levantaram, o que
estava mais perto levou um soco do doutor e o pau comeu solto.
O lugar era
apertado e eu me lembrei da cristaleira da avó do Renato.
Um dos caras era uma
parada, brigava bem.
O garçom não parecia homem mas era e as mulheres fizeram
uma gritaria dos diabos.
As mesas e as cadeiras foram para o vinagre, um dos
caras se mandou escada abaixo, quando alguém apagou a luz. Escutei a voz de
Hélio Caveira-de-Burro, que era muito experiente:
"Vamos dar o fora."
Saímos rápido e ainda levei com
uns detritos atirados pelas mulheres da janela.
Um guarda apitou e saímos pelas
ruas da Lapa.
Uns se mandaram pela Conde Laje e outros pela Glória.
Eu fui
parar no Passeio Público, arrumei um táxi e voltei para o ponto de saída.
Quando cheguei, Orlando Cuíca já estava e disse:
"O guarda começou a dar
tiro e quase me pega. Tive sorte."
Depois chegaram Hélio e meu
irmão, que vieram noutro táxi. Hélio falou:
"O grande era uma parada. Mas
peguei ele bem com a perna da cadeira. Senão a gente não ganhava."
Meu
irmão estava com a camisa rasgada e disse que foi a mulher que se atracou
nele.
"Não bati mas tive de dar uma 'banda' nela. Juntou pé com cabeça.
Depois que Hélio dominou o grandalhão, foi barbada. Dei uma no de terno marrom
que ele se mandou pela escada."
E eu disse:
"Ficou tudo quebrado e a
mulher que o Coruja bateu não levantou, mas eu não vi sangue."
E ficamos relaxando um pouco
quando chegou um táxi e o doutor Coruja saltou esfregando os óculos com um
lanho no rosto.
Hélio perguntou:
"Como é doutor, se machucou?"
"Nada, um arranhãozinho à toa."
E prosseguiu:
"Puxa, agora estou
satisfeito. Há mais de três meses que eu estava para ir a esta forra."
"O quê?" — berramos em
coro — "O negócio foi há três meses!?"
E Coruja explicou, calmamente:
"Foi sim e eu não bati nela porque estava acompanhada."
Então meu
irmão perguntou:
"Quer dizer que os caras que apanharam não eram os
mesmos?"
Coruja respondeu:
"Claro que não, meus poetas, mas o que tem
isto demais?"
Nesta altura, o sol já estava
aparecendo lá na Ponta do Boi, iluminando o primeiro dia do ano e desejando
boas entradas para a excelentíssima senhora mãe do doutor A. Coruja.
João Saldanha era gaúcho e nasceu
em 1917 na cidade de Alegrete.
Jornalista combativo, treinador, apaixonado pelo
futebol, conseguiu unir o Brasil — então politicamente dividido — em 1969, por
ocasião das eliminatórias para aquela que seria a Copa do tricampeonato no
México.
De temperamento difícil, extremamente corajoso, fez muitos inimigos na
vida.
Mas todos admiravam aquele homem (ainda que muitas vezes não o perdoando
pelas aventuras que dizia — e acreditava — ter vivido) que assistiu a todas as
Copas do Mundo de futebol; que, como jornalista, cobriu a guerra da Coréia; que
desembarcou na Normandia com Montgomery e que fez a grande marcha com Mao
Tse-Tung. Faleceu no dia 12 de julho de 1990, durante a Copa do Mundo.
O texto
acima consta do livro "Nelson Rodrigues e João Saldanha - a crônica e o
futebol", compilado por Ivan Candido Proença, - Rio de Janeiro - Educom -
1976, págln96-98, e extraído do livro "As cem melhores crônicas
brasileiras", Editora Objetiva - Rio de Janeiro - 2007 - pág. 206,
organização e introdução de Joaquim Ferreira dos Santos.
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